24 de março de 2007

Dois discursos diabólicos

Depois de não sei quantos meses, finalmente consegui recuperar um dos meus vários livros que andam emprestados por aí. Trata-se do Surpreendido pela alegria (Surprised by joy), uma obra autobiográfica na qual C. S. Lewis não apenas nos conta como se converteu ao cristianismo (o que constitui o objetivo principal do livro), mas também relata uma porção de interessantes episódios de sua infância, adolescência e juventude e extrai daí uma profunda análise de si mesmo e de várias coisas mais. Pensei em falar mais sobre esse livro hoje, a fim de comemorar o retorno do meu exemplar, mas achei melhor deixar isso pra outro dia. Ainda assim, inspirado por esse acontecimento, vou escrever sobre um tema relacionado com ele.


Estive pensando que provavelmente a maioria dos leitores de Lewis conhece pouco de seu trabalho e suas idéias anteriores à conversão. Em grande parte, sem dúvida, isso se deve ao fato de que ele se tornou cristão relativamente jovem, aos 32 anos, de modo que quase todas as suas dezenas de obras foram escritas depois disso, incluindo-se aí, naturalmente, as que evidenciam uma maior maturidade. Porém, muitas das concepções de Lewis podem ser apreendidas com maior exatidão e profundidade se analisadas contra o pano de fundo das suas experiências de vida. Isso é verdade também para muitos outros escritores e intelectuais, mas é particularmente evidente no caso dele. É essa uma das principais razões pelas quais considero interessante conhecer também, por assim dizer, o Lewis pré-cristão.


Escritor por vocação e desde a infância, ele publicou seu primeiro livro em 1919, quando contava com 21 anos, usando o pseudônimo Clive Hamilton (Hamilton era o sobrenome de solteira de sua mãe). Intitulado Spirits in bondage ("espíritos em cativeiro"), o livro consiste de uma coleção de quarenta poemas, dos quais vários são muito belos, e outros tantos são no mínimo interessantes. Ao que parece, a maior parte desses poemas foi escrita entre 1915 e 1918, um período conturbado da vida do escritor: ele estudou intensamente para entrar numa universidade e, pouco depois de ser admitido em Oxford, foi enviado às trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

Destacam-se nesses poemas vários aspectos da personalidade e dos pensamentos de Lewis nos anos de sua juventude, em especial seu pessimismo filosófico, seu incurável romantismo e, é claro, seu ateísmo. Conforme se depreende dos versos e das memórias expressas quatro décadas depois em sua autobiografia, as idéias dele nessa época, ao mesmo tempo em que padeciam de várias inconsistências fundamentais, possuíam uma série de particularidades muito interessantes. A fim de exemplificar isso, selecionei dois poemas de Spirits in bondage, o primeiro e o décimo-terceiro, sobre os quais farei alguns comentários. Ambos possuem o mesmo título, Satan speaks ("Satanás fala") e, embora não haja uma seqüência lógica ou cronológica bem definida ao longo dos quarenta poemas, esses dois estão intimamente relacionados, como pretendo mostrar.

Traduzi esses poemas a fim de facilitar o entendimento por parte de leitores que porventura não saibam ler em inglês. Mas devo advertir que, sendo esse o objetivo principal e não sendo eu um bom tradutor (e muito menos um bom poeta - aliás, não chego sequer a ser um poeta ruim), me preocupei apenas em captar o sentido dos versos, deixando de lado todos os aspectos estéticos possíveis. A fim de não prejudicar os demais leitores, porém, disponibilizei os poemas também na língua original.

O primeiro poema leva-me a fazer várias associações, em especial com a autodescrição dada por Krishna naquela célebre passagem do Bhagavad Gita (e conseqüentemente, é claro, com a canção Gita, de Raul Seixas) e com o poema The tyger, de William Blake. Não sei até que ponto Lewis conhecia a literatura religiosa hindu, mas é provável que ele conhecesse a obra de Blake, e é certo que não conhecia a de Raul. Mas não convém especular sobre os modelos literários do poeta, de modo que faço esse comentário apenas de passagem, e prossigo para o que mais importa, que é a mensagem transmitida em sua obra.

O Satanás de Lewis, conforme definido por si mesmo no primeiro poema, obviamente não corresponde ao ser que a tradição judaico-cristã designa por essa palavra, exceto pelo fato de que ele se opõe a Deus. Ele é a personificação poética do mundo material, da natureza, ou seja, da realidade como um todo, conforme vista pela filosofia materialista que Lewis então esposava. Satanás abarca tudo o que há de mais singelo e bonito, assim como tudo o que há de mais perverso e doloroso, não apenas no mundo natural, mas também na vida dos homens. Não poderia ser de outra forma, aliás, já que o materialismo, por razões óbvias, não pode admitir qualquer elemento imaterial na natureza humana, de modo que esta se torna qualitativamente apenas um subconjunto do universo físico, e não uma intersecção entre dois níveis de realidade.

As manifestações de Satanás escolhidas como exemplo para compor o poema mostram claramente que Lewis considerava que o aspecto tenebroso da realidade era forte o suficiente para eclipsar quase totalmente os bons aspectos. Aliás, a própria designação da natureza como Satanás é, por si mesma, bastante reveladora. O monismo materialista de Lewis era uma caricatura invertida do monismo espiritualista do sufismo islâmico e do Vedanta hindu. Ele subscrevia inteiramente a doutrina gnóstica, tão veementemente condenada pelo cristianismo histórico, segundo a qual o universo material é ontologicamente mau. A diferença em relação ao gnosticismo é que, segundo o materialismo, essa coisa ruim é tudo o que existe, não havendo, portanto, um lugar para onde se possa fugir. O pessimismo do jovem Lewis decorria diretamente do fato de que ele era um gnóstico em quase tudo, exceto no apego ao transcendente, que é o único ponto de acordo entre aquela doutrina e a fé cristã.

Isso nos leva ao segundo poema, no qual, após ter se apresentado devidamente, Satanás discursa justamente contra esse Deus supostamente maior que ele próprio. É fácil notar que esses versos são uma paródia das advertências proféticas do Antigo Testamento contra a idolatria do povo de Israel. Satanás queixa-se de que ele, a única divindade realmente existente, é sistematicamente desprezado por seus súditos humanos, que insistem em buscar refúgio num fantasioso Deus transcendente ao mundo material, e promete castigá-los por sua infidelidade.

Refletindo em sua poesia uma das características mais marcantes da modernidade ocidental, Lewis convivia com um profundo e intransponível abismo entre o que lhe dizia sua razão e o que exigiam as demais necessidades psicológicas dele e de todo homem. A única rota de fuga passava pela negação da razão e da realidade. A religião era vista por ele como enganadora e perniciosa, no sentido de que prometia algo que não poderia ser encontrado em parte alguma. Tudo o que existe não parecia suficiente para contentar o ser humano, de modo que ele alimentava ilusões como a religião, a mitologia e os contos de fadas na vã tentativa de amenizar o sentimento de decepção decorrente daí. Estranhamente, o homem, mesmo não sendo mais que matéria produzida a partir de matéria, não parecia bem adaptado ao mundo de pura matéria. E a constatação desse interessante fato psicológico foi um dos importantes fatores que acabaram por transformar as concepções de Lewis muito mais do que ele mesmo esperava ou mesmo desejava aos 21 anos.

Satanás fala
Eu sou a Natureza, a Poderosa Mãe;
eu sou a lei, e não tens nenhuma outra.

Eu sou a flor e a fresca gota de orvalho,
eu sou a luxúria que coça em tua carne.

Eu sou a sujeira e a tensão da batalha,
eu sou a dor vazia da viúva.

Eu sou o mar que suprime o teu fôlego,
eu sou a bomba, a morte que cai.

Eu sou o fato e a razão esmagadora
que frustra a recém-nascida traição da tua fantasia.

Eu sou a aranha fazendo sua teia,
eu sou a fera de dentes ensangüentados.

Eu sou um lobo que persegue o sol
e eu o pegarei antes que o dia se acabe.

Satan Speaks
I am Nature, the Mighty Mother,
I am the law: ye have none other.

I am the flower and the dewdrop fresh,
I am the lust in your itching flesh.

I am the battle's filth and strain,
I am the widow's empty pain.

I am the sea to smother your breath,
I am the bomb, the falling death.

I am the fact and the crushing reason
To thwart you fantasy's new-born treason.

I am the spider making her net,
I am the beast with jaws blood-wet.

I am a wolf that follows the sun
And I will catch him ere day be done.

Satanás fala
Eu sou o Senhor vosso Deus, o mesmo que fez
as coisas materiais e ordenou todos esses sinais
acima de vós, e os fixou sob a raça
dos humanos, que se esquecem da face de seu Pai
e mesmo enquanto bebem da minha luz diurna
sonham com outros deuses quaisquer e desobedecem
minhas admoestações, e desprezam minhas santas leis,
muito embora seu pecado acabe por matá-los. Por causa dele
há sonhos sonhados em vão, um desejo nunca satisfeito,
e no íntimo da carne um fogo espiritual,
uma sede pelo bem que sua espécie não atingirá,
um retrocesso à selvageria,
uma aversão à vida que eu dei,
uma alma assombrada, torcida e para sempre dividida
entre a vontade deles e a minha - tanta coisa eu dou
enquanto avesso a mim o verme continua vivendo.
Eles odeiam meu mundo! Então que aquele outro Deus
venha dos espaços exteriores de falsa glória,
e deste castelo que eu construí sobre a Noite
leve embora os filhos do meu próprio pensamento para a luz,
se tal existir. Mas muito longe
ele caminha nos campos aéreos do dia sem fim,
e meus filhos rebeldes o chamaram por muito tempo
e chamaram em vão. Minha ordem ainda é forte,
e como eu não há outro que eu conheça.
Para onde o mamute foi esta criatura também irá.

Satan Speaks
I am the Lord your God: even he that made
Material things, and all these signs arrayed
Above you and have set beneath the race
Of mankind, who forget their Father's face
And even while they drink my light of day
Dream of some other gods and disobey
My warnings, and despise my holy laws,
Even tho'their sin shall slay them. For which cause,
Dreams dreamed in vain, a never-filled desire
And in close flesh a spiritual fire,
A thirst for good their kind shall not attain,
A backward cleaving to the beast again.
A loathing for the life that I have given,
A haunted, twisted soul for ever riven
Between their will and mine-such lot I give
While still in my despite the vermin live.
They hate my world! Then let that other God
Come from the outer spaces glory-shod,
And from this castle I have built on Night
Steal forth my own thought's children into light,
If such an one there be. But far away
He walks the airy fields of endless day,
And my rebellious sons have called Him long
And vainly called. My order still is strong
And like to me nor second none I know.
Whither the mammoth went this creature too shall go.

17 de março de 2007

Os três primeiros pilares

"Pois assim como há quatro quadrantes no mundo em que vivemos, e quatro ventos universais, e como está a Igreja disseminada sobre a terra inteira, e o Evangelho é o pilar e fundamento da Igreja e o sopro da vida, assim é natural que tivesse quatro pilares, infundindo imortalidade de cada quadrante e comunicando nova vida às humanas criaturas." (Irineu de Lyon)

Mencionei num texto anterior que Albert Einstein tinha uma convicção inabalável na existência histórica de Jesus, o qual era visto por ele como o maior mestre de moral que já existiu. E mencionei também que o grande físico sustentava essa opinião com base nos ensinos de Jesus registrados na Bíblia, muito embora duvidasse da historicidade de grande parte dos eventos ali narrados. Por razões óbvias, essa questão da credibilidade das fontes é sempre crucial para a investigação histórica. No que se refere a Jesus, as principais fontes de que dispomos são os quatro livros da Bíblia comumente chamados de "evangelhos", e distinguidos entre si pelos nomes dos homens que a tradição cristã admite, desde os primórdios e de maneira unânime, como seus principais autores: Mateus, Marcos, Lucas e João.

Independentemente de qual seja o valor histórico desses documentos, não há dúvida de que ninguém que tenha alguma vez pensado acerca de Jesus pôde ignorá-los. E Jesus é uma figura de importância fundamental na história da nossa cultura e civilização. Não pretendo discutir hoje opiniões a respeito de sua identidade, sejam as de um amador eminente como Einstein ou as de um amador nada eminente como eu. Apenas discorrerei sobre os documentos em si, e mesmo assim de uma perspectiva muito limitada: pretendo esboçar algumas teorias que foram levantadas na tentativa de desvendar a história da formação dos evangelhos a partir da análise comparativa entre eles.

Pra começar, convém assinalar alguns fatos importantes. Quem quer que já tenha lido esses quatro textos, mesmo que uma vez só, apressadamente e aos dez anos de idade, certamente não pôde deixar de notar que o quarto evangelho difere de todos os outros três muito mais do que quaisquer dois deles diferem entre si. Os três primeiros são, por causa dessa semelhança que os une, denominados "sinóticos", e é deles que falarei mais detidamente agora.

Os sinóticos têm uma porção de diferenças importantes entre si, mas suas semelhanças são de fato surpreendentes. Não poucas passagens são iguais quase palavra por palavra. Comparando minuciosamente os textos gregos originais (segundo as melhores versões proporcionadas pela crítica textual), especialmente os trechos que aparecem em dois ou nos três evangelhos, os especialistas no assunto perceberam outro fato interessante. As semelhanças entre Mateus e Lucas são consideravelmente menos freqüentes que as de qualquer um dos dois com Marcos. Isso é verdade em vários sentidos, como quanto à proporção de passagens análogas ou à semelhança das construções de frases nessas passagens. Cabe observar ainda que Marcos é o mais curto dos quatro evangelhos, embora suas descrições que encontram paralelos nos outros sejam, individualmente, menos resumidas que nestes. Além disso, o enfoque de Marcos é predominantemente narrativo. Há bem poucos trechos discursivos ou dissertativos. Ele quase sempre se limita a registrar as andanças e os milagres: poucas palavras e muitos atos. Isso não acontece em Mateus e Lucas, e muito menos em João.

Esses são alguns dos fatos mais básicos a respeito do tema. As teorias que tentam explicar esses fatos, assim como muitos outros, são muito variadas, e há uma infinidade de questões envolvidas, muitas das quais são altamente técnicas. Eu não poderia ter a pretensão de pintar aqui um quadro tão abrangente, mesmo que eu dominasse suficientemente o assunto. Mas passo a descrever em linhas gerais os principais caminhos propostos na tentativa de elucidar o algo obscuro desenrolar da composição desses documentos que acabaram por transformar o mundo.

Muitos eruditos do Novo Testamento acreditam que a melhor explicação para esse conjunto de elementos é que Marcos é o mais antigo dos evangelhos, e os outros dois autores sinóticos utilizaram-no posteriormente como fonte para escrever suas próprias obras. Essa teoria tem sido muito popular pelo menos desde 1835, graças ao trabalho de Carl Lachmann. João pertenceria a uma tradição inteiramente independente, ou quase, que só viria a se tornar em livro algum tempo depois. Mateus e Lucas seriam, no fim das contas, pouco mais que expansões de Marcos, adaptando o conteúdo desse evangelho aos seus próprios propósitos imediatos e acrescentando-lhe informações provenientes de outras fontes.

E que outras fontes seriam essas? A mais famosa e controvertida candidata seria um certo documento que Julius Wellhausen chamou de Q (do alemão quelle, que significa "fonte"), ao mesmo tempo em que, numa curiosa coincidência acadêmica, J. A. Robinson lhe deu o mesmo nome por razões inteiramente diversas. Esse seria um documento complementar ao estilo de Marcos, registrando quase exclusivamente os sermões e parábolas de Jesus e dando pouco espaço a questões mais biográficas. Q seria, então, uma composição no estilo de alguns dos livros proféticos do Antigo Testamento, e há de fato boas evidências de que teria sido escrito originalmente em hebraico ou aramaico. Não há, na verdade, provas concretas de que esse documento tenha sequer existido, mas algumas referências indiretas ao menos sugerem essa possibilidade. Lucas afirma que seu evangelho é o resultado de intensas pesquisas sobre o assunto, o que possivelmente incluiu o acesso a documentos mais antigos. E Papias, um cristão do início do século II muito interessado nessas questões, e que conheceu e entrevistou pessoas que haviam convivido diretamente com os apóstolos, afirmou que Mateus compusera um texto em hebraico antes de existir a versão em grego. Alguns acreditam que esse pode ser o tão falado Q. Mas a principal razão pela qual o hipotético Q é tão aceito reside em suas conveniências teóricas: ele ajuda a explicar semelhanças entre Mateus e Lucas em passagens que não possuem paralelo em Marcos, bem como outras características daqueles que não podem ser explicadas recorrendo a este.

Marcos e Q, porém, não podem ser considerados as únicas fontes para Mateus e Lucas. Sendo assim, é provável que, em última instância, todos esses textos sejam na verdade reuniões organizadas de fragmentos ainda mais antigos. Os eruditos da crítica de forma (uma escola de interpretação do Novo Testamento altamente influente na história dos estudos do século XX), entre os quais Martin Dibelius e Rudolf Bultmann, chamavam esses fragmentos de "perícopes", que seriam episódios curtos e independentes envolvendo Jesus: uma parábola, um trecho de sermão, uma conversa com alguém ou uma narrativa de algum milagre. As perícopes teriam circulado amplamente e em grande quantidade na igreja primitiva por escrito ou, mais provavelmente, via tradição oral. Os evangelhos e documentos semelhantes, escritos décadas mais tarde, seriam pouco mais que compilações de parte dessas unidades disponíveis, organizadas segundo os interesses e conhecimentos de cada autor ou grupo regional e postas numa seqüência narrativa lógica.

Há historiadores, porém, que não crêem que Marcos seja anterior aos demais evangelhos. Tem sido defendido nas últimas décadas que na verdade foi Marcos quem se utilizou de Mateus e Lucas como fontes e, nos pontos em que estes divergiam, ele se guiava ora por um, ora por outro. É relativamente fácil inverter dessa forma todos os argumentos já levantados em favor da precedência de Marcos. Os adeptos dessa teoria geralmente acreditam, tanto com base em considerações lingüísticas (e outras referentes à evidência interna) quanto no testemunho da tradição, que o evangelho mais antigo na verdade é o de Mateus.

Existe ainda um grupo de estudiosos que sustenta que, assim como em relação a João, a influência mútua dos evangelhos sinóticos, ou seja, dos mais antigos na composição dos mais recentes, foi praticamente nula. Segundo essa hipótese, as evidentes e abundantes semelhanças entre os respectivos textos explicam-se diretamente pela tradição oral, que, transmitida na forma de perícopes, seria, contudo, mais uniforme do que a descrição anterior pode dar a entender. Aqui não há muito espaço para Q e outros documentos hipotéticos. Para os adeptos dessa teoria, tais postulados são apenas artificialidades anacrônicas que inconscientemente projetam na comunidade cristã do século I características que na verdade pertencem à cultura moderna. Em ambientes como a cultura judaica daquela época, de onde emergiu o cristianismo, a tradição oral ocupava um papel muito mais importante do que hoje no que diz respeito à transmissão de informações, e portanto dispunha-se de uma grande quantidade de recursos mnemônicos para salvaguardar a fidelidade da informação transmitida. Alguns desses recursos são, aliás, evidentes nos evangelhos. Em decorrência disso, obtinha-se freqüentemente uma eficiência na transmissão que chega a ser quase inimaginável para pessoas que, como nós, vivem numa cultura quase inteiramente literária. Essa teoria também concede um papel mais importante à influência direta das testemunhas oculares dos eventos descritos nos evangelhos.

Esses são os temas básicos nas atuais discussões acadêmicas sobre o assunto. Não sei muito bem qual dessas teorias é mais forte atualmente, e devo avisar que deixei de lado uma porção de interessantes variações das teorias acima que também são defendidas por certos eruditos. Quanto a mim, embora tenha algumas opiniões sobre o que me parecem ser alguns pontos fortes ou fracos em cada uma, não vou expô-las aqui hoje. Provavelmente voltarei a falar esporadicamente sobre esse tema, ou outros relacionados, em posts futuros. Por enquanto, essa visão panorâmica serve pelo menos como lembrete dado por mim a mim mesmo para voltar a estudar, mais cedo ou mais tarde, essas questões nada simples. E nisso, é claro, aceito a colaboração de leitores que porventura conheçam o assunto melhor que eu.

9 de março de 2007

Crianças mutiladas

Guilherme (ou William) de Ockham foi um dos maiores pensadores do final da Idade Média, o período conhecido na história da filosofia como "escolástica posterior". Hoje em dia pouca gente sabe alguma coisa importante a respeito dele, ou da escolástica em geral. Guilherme é conhecido quase exclusivamente pelo dispositivo metodológico que leva o seu nome, embora não seja exatamente de sua autoria: a Navalha de Ockham. Ela declara que uma teoria (seja ela científica, filosófica ou o que for), propondo-se a explicar determinado aspecto da realidade, deve fazê-lo da maneira mais simples possível. Isso significa que, se dispomos de duas teorias que explicam de modo igualmente coerente uma determinada ordem de fatos, devemos optar pela que o faz articulando a menor quantidade de elementos. Se é possível dar conta dos fatos sem recorrer a certos elementos, segue-se que eles são desnecessários na explicação dos tais fatos, de modo que na realidade não ajudam a explicá-lo, mas apenas acrescentam abstrações que obstruem a real compreensão do assunto.

A partir desse interessante aspecto da filosofia de Guilherme de Ockham e de sua bem conhecida simpatia pelo empirismo, algumas pessoas concluíram que ele foi um precursor do pensamento moderno, um empirista no sentido em que o são os agnósticos e céticos dos últimos cento e cinqüenta anos, ou talvez até um materialista e ateu enrustido. É verdade, sem dúvida, que Guilherme defendeu, contra o consenso de sua época, várias idéias que depois se tornaram muito mais comuns. Mas a única razão pela qual alguns o consideram um típico racionalista moderno está no fato de que desconhecem todo o restante da filosofia do sujeito, bem como a de seus contemporâneos e predecessores imediatos e, de maneira geral, o ambiente histórico e cultural no qual ele viveu. Em vista disso, são obrigados a preencher o vazio deixado por essa ignorância com suas próprias idéias infundadas sobre como as coisas deviam ser, o que resulta na necessidade de elaborar independentemente conceitos sobre o que é ou não filosoficamente aceitável para depois, sem perceber o que estão fazendo, atribuí-los ao filósofo em questão. Só assim se explica que seja considerado suspeito de ateísmo um monge franciscano que, em total acordo com a tradição escolástica, não só acreditava poder demonstrar cabalmente a existência de Deus como também inventou ele próprio um argumento para esse fim (o qual, na verdade, foi um aperfeiçoamento do argumento de Duns Scotus).

Não há dúvida de que a Navalha foi uma grande contribuição não só à filosofia e às ciências físicas, mas também a toda forma de conhecimento objetivo. Mas, sendo um dispositivo lógico, sofre do mesmo tipo de restrição que limita o alcance da lógica. Esta ensina a pensar corretamente, a extrair as conclusões corretas a partir das premissas. Ela é a arte do pensamento, mas não pode fornecer as premissas a partir das quais se deve pensar. Semelhantemente, a Navalha de Ockham assegura a necessidade de eliminar o supérfluo, sem, no entanto, fornecer meios de distinguir a abstração desnecessária do dado essencial da realidade. É justamente aí que o indivíduo pensante, em sua tentativa de fornecer uma interpretação dessa realidade, deve entrar com seu poder de observação, sua inteligência e, sobretudo, sua sensatez. O rigor lógico não pode dispensar nem substituir nada disso.

São justamente essas qualidades essenciais que abundavam por aí no tempo dos velhos escolásticos (bem como na época dos ainda mais velhos patrísticos ou na idade de ouro da filosofia grega) e que andam tão difíceis de se encontrar hoje em dia. Há exceções, é claro, como sempre houve. Mas a Navalha de Ockham exemplifica de maneira admirável um fenômeno deveras interessante na história das idéias. Quem a inventou e utilizou primeiro possuía a necessária integridade intelectual para fazer bom uso dela. Alguns erros, é claro, foram cometidos. Mas esses pensadores utilizavam seus instrumentos com maturidade e com elevada consciência dos riscos que seu mau uso poderia acarretar. Mas Guilherme de Ockham e os escolásticos se foram, e seu legado, tendo sofrido pela degeneração que desde então se apossou da filosofia ocidental, veio a encontrar aqueles intelectuais que, mesmo estando entre os maiores de sua época, já não tinham condições de tirar bom proveito dele. Restaram apenas um empirismo ingênuo e um racionalismo restrito e dogmático. Aquela tão necessária sensatez dos antigos havia desaparecido, cedendo a uma lógica vazia e independente de qualquer intuição das realidades subjacentes. Nesse ambiente, a Navalha de Ockham continuou servindo como arma contra as teorizações supérfluas e abstratas, deixando apenas as estritamente necessárias. O problema é que, a essa altura, já quase ninguém sabia distinguir uma coisa da outra.

O resultado, naturalmente foi desastroso. Como disse Tolkien, "Perigosos para todos nós são os instrumentos de uma arte mais profunda que a possuída por nós mesmos." Essa verdade cai bem aqui, pois os métodos de raciocínio dos velhos filósofos sofreram o mesmo destino que certos objetos mágicos da Terra-média: de instrumentos úteis, tornaram-se armas de destruição. Uma navalha, por exemplo, pode ter muitos usos, desde o corte de cabelos até o corte de cabeças. Os novos intelectuais passaram a usá-la irresponsavelmente, como cabeleireiras malucas que não vissem grande diferença entre decapitar suas clientes e aparar-lhes os cabelos. No labor do filósofo, assim como no dos salões de beleza, é sumamente importante distinguir o essencial do supérfluo. E foi em decorrência da incapacidade de efetuar essa distinção que a velha Navalha, que já contava com vários séculos de existência, passou a ser usada para fins completamente novos: justificar teorias que dispensavam o livre arbítrio, a lógica, a ciência, a matéria, Deus, a moral, a própria personalidade.

Pra ser mais exato, não pretendo dar a entender que todas as besteiras do mundo tenham sido inspiradas em péssimas aplicações da Navalha de Ockham. Os campeões nesse hábito, na verdade, costumam ser os céticos mais empiristas, que gostam de pensar que acreditam na ciência e em nada mais (é claro que, felizmente, eles não fazem isso). E, no que diz respeito à Navalha, eu poderia terminar este texto aqui, tendo desvendado, ainda que vagamente, as razões que impedem muitas dessas pessoas de compreender Guilherme de Ockham. Mas isso é apenas uma manifestação particular de um problema muito mais abrangente, em todos os sentidos, e meu propósito ao falar sobre a Navalha não era senão o de ilustrá-lo.

Em um de seus livros, Chesterton exemplifica com precisão esse problema ao queixar-se de que a filosofia de um contemporâneo seu "não se preocupa com as coisas reais do mundo, os povos em luta, o orgulho das mães, o primeiro amor ou o medo do mar." Em resumo, aquela teoria, assim como muitas outras, simplesmente não capta a experiência humana, sendo antes a concretização do oposto simetricamente exato das intenções de Guilherme: estabelecer como princípios incontestáveis certos pressupostos altamente abstratos, e com base nisso desprezar ou ignorar todos os dados da realidade que os contradizem. Com ou sem a Navalha, o fato é que muitos dos grandes equívocos filosóficos dos últimos séculos consistem em algum tipo de amputação, ao deixar de lado aspectos da realidade que não se enquadram em seus esquemas preconcebidos, ou que simplesmente não são passíveis de investigação pelos métodos favoritos do filósofo em questão. Idealismo, ceticismo, relativismo, materialismo, behaviorismo, pragmatismo, determinismo, existencialismo e tantos outros são exemplos concretos de filosofias que, a despeito de todas as suas diferenças, têm em comum essas limitações auto-impostas em nome de um sofisma qualquer. O nome disso tudo é "reducionismo", e ele está contido em todos os "ismos" que acabo de mencionar. É, sem dúvida, uma das mais nefastas doenças intelectuais da humanidade.

Ou talvez seja mais correto dizer que é um de seus enganos mais infantis. Exceto pela malícia que muitas vezes a acompanha, essa invencível imbecilidade se assemelha em tudo à ingênua irresponsabilidade das crianças. Segue-se daí que qualquer pai consciencioso pode diagnosticar o mal da filosofia moderna. É que muitos de seus representantes são crianças brincando com instrumentos que não são capazes de manejar e cujo potencial, para o bem ou para o mal, simplesmente não entendem. Pegaram emprestada a navalha do seu pai e passaram a mutilar uns aos outros com ela, sem saber que sua verdadeira utilidade é fazer a barba, que eles ainda não têm. A comparação, aliás, é perfeitamente válida, pois o reducionismo não faz outra coisa senão arrancar de maneira ilegítima certos pedaços do mundo, e particularmente da natureza humana. A maioria das crianças está a salvo de semelhante perigo, porque suas mães não as deixam manipular objetos cortantes até que elas demonstrem maturidade para tanto. O mal de muitos pensadores nos últimos séculos foi que eles não tiveram tanta sorte.

3 de março de 2007

Idéias de um amador eminente

"Eu creio no Deus de Spinoza, que se revela na harmonia ordenadora do que existe, não em um Deus que se preocupa com os destinos e ações dos seres humanos."

Como eu disse no texto anterior, consegui com este blog várias coisas que estavam nos meus objetivos, bem como algumas que eu não esperava de modo algum. Dentro desta última categoria está um gravíssimo conflito de consciência. Hoje pretendo resolver isso. O problema é simples: eu sou um físico que tem um blog com oito posts já publicados, e nenhum deles trata sequer indiretamente de alguma coisa relacionada à física. Um dos motivos disso reside nos meus interesses publicitários. Estou ciente de que muitos dos meus leitores não têm, pelo menos na prática, qualquer interesse pelo assunto. Eles provavelmente o suportarão de vez em quando, mas certamente desapareceriam prontamente se eu começasse a falar muito sobre esse tema por aqui.

Isso não significa, é claro, que eu não possa abordar o assunto de maneira mais indireta, falando, por exemplo, sobre aspectos históricos, filosóficos, biográficos ou mesmo literários da coisa. E isso está mesmo mais de acordo com minhas inclinações antiespecialistas. Mas para filosofar a partir da física é necessário conhecer física. Ficção científica não me atrai tanto assim, por motivos que explicarei em outra ocasião. História da física é muito mais história do que física. Biografias de físicos são tão interessantes quanto qualquer biografia. E as idéias dos grandes físicos sobre temas alheios ao seu domínio de especialidade, como filosofia ou religião, são geralmente mais medíocres que as dos grandes filósofos e teólogos sobre física.

O motivo da minha crise de consciência está, portanto, explicado: me sinto mal por não achar tão interessante falar sobre o tema que mais estudei na vida. A fim de atenuar isso, optei por discorrer sobre uma questão que tem pelo menos a vantagem de uma possível utilidade pública: Albert Einstein, ou, mais especificamente, algumas coisas que passavam pela cabeça dele nos momentos em que não pensava em física. Mais especificamente ainda, notei que um número não desprezível de pessoas tem curiosidade de entender os pensamentos dele acerca de questões religiosas ou quaisquer outras. Não sei se entendo bem o motivo dessa curiosidade toda, mas é fato que ela é mesmo algo tão extraordinário quanto o próprio Einstein.

Farei abaixo um resumo breve e meramente informativo. Para quem quiser mais informações e souber ler em inglês, recomendo este site, que reúne muitas interessantes declarações de Einstein sobre temas teológicos e filosóficos. Aqui neste post nada mais farei que sintetizar informações e acrescentar alguns esclarecimentos. De minha parte, a despeito da incontestável genialidade de Einstein em questões de física teórica, considero que, em muitos casos, suas opiniões sobre assuntos que fogem à sua especialidade, assim como os argumentos com que as defende, são simplistas e pueris. Talvez num post futuro eu venha a explicar as razões pelas quais penso assim, o que agora foge ao meu objetivo. Só estou dizendo isso para esclarecer que não dedico um post a expor as concepções religiosas de Einstein por julgar que tenham um grande valor filosófico, mas tão somente pela contribuição que essas informações podem trazer à compreensão adequada dessa grande personalidade.

Talvez a mais famosa declaração de Einstein sobre sua orientação religiosa pessoal seja a que transcrevi no início do texto. Comecemos por aí, então. Como é o Deus de Spinoza? O velho racionalista judeu era um monista, isto é, concebia Deus como a essência universal de todas as coisas, contendo em si todos os atributos que as coisas criadas (ou emanadas) possuem, sem, no entanto, se confundir com qualquer uma delas, ou mesmo com a totalidade delas. Isso distingue o monismo tanto do materialismo (ateísta ou não) quanto do panteísmo, que define Deus simplesmente como o conjunto de tudo o que existe. Einstein parecia pelo menos parcialmente consciente dessa distinção, pois declarou expressamente que não era ateu e não gostava de ser chamado de panteísta. A quem quiser compreender melhor o teísmo de Baruch Spinoza, recomendo um texto muito bom do meu amigo André Luiz, o qual pode ser lido no seu blog, O Eu (procurem o post Spinoza e o transcendentalismo monista). Porém, devo advertir que tenho minhas dúvidas sobre até que ponto Einstein chegou a endossar a filosofia de Spinoza.

Mas essa não foi a posição de Einstein durante toda a vida. Ele só a atingiu depois de ter passado por uma adolescência de profundo fervor religioso convencional, do qual se desligou sob a influência de obras de divulgação científica. Disso resultou uma boa dose de ceticismo contra a autoridade, o qual se estendeu para muito além da questão religiosa. Finalmente, Einstein tomou consciência de que a meta de sua vida deveria ser o abandono daquilo que ele via como "meramente pessoal" (os desejos, esperanças e sensações), trocando tudo isso pelo Absoluto impessoal buscado por tantos ao longo da história. Ele passou a considerar, inclusive, que o valor de um homem pode ser medido por seu esforço em prol desse objetivo.

A crença em um Deus pessoal acabou sendo considerada por Einstein como um enorme mal. Para ele, tal conceito só serviu para proporcionar à humanidade medos e esperanças desnecessários e infundados, além de ser legitimadora da dominação eclesiástica e incompatível com o espírito científico (e, portanto, oposto ao progresso da ciência). Ele acreditava que a observação da regularidade da natureza tornava impossível a crença em um ser capaz de interferir sobrenaturalmente nos rumos do universo físico. E, de maneira geral, Einstein cria que a convicção religiosa é inerentemente intolerante. O dever cristão de amar os inimigos está acima da capacidade humana, e portanto a intolerância prática contra os que crêem diferentemente é inevitável. Segundo ele, a incapacidade de converter o adepto de outra religião leva ao ódio ou, no mínimo, a um sentimento orgulhoso de piedade.

Não havendo personalidade acima do universo, a questão do propósito para o qual as coisas existem deixa de fazer sentido. Uma divindade impessoal não pode ter desejos a satisfazer ou metas a cumprir ao fazer as coisas. É possível ao homem, porém, tanto individualmente quanto coletivamente, estabelecer metas para si mesmo visando à satisfação de determinados desejos, e só nesses termos a questão passa a ter algum significado relevante.

É bem conhecido o fato de que, em oposição à interpretação oferecida por Niels Bohr e Werner Heisenberg do formalismo matemático da então nascente mecânica quântica, Einstein defendeu o determinismo inescapável das leis da natureza (ou "causalidade irrestrita", como ele o chamava), admitindo, porém, que no estado de conhecimento de então isso era apenas uma questão de fé. Sendo inviolável o determinismo material, não cabia sequer a possibilidade de uma interferência divina na ordem natural. Por essa razão, e coerentemente com sua visão impessoal de Deus, Einstein não cria na eficácia das orações. Spinoza havia ido ainda mais longe, afirmando ser a liberdade um atributo que nem Deus possui, visto que, em virtude de sua perfeição, não pode deixar de se manifestar da forma como o faz. O determinismo, assim, não se restringe ao domínio dos seres materiais. Einstein, porém, não chegou a se decidir acerca da liberdade divina, embora se interessasse muito por essa questão filosófica.

O determinismo de Einstein também tinha suas implicações no terreno da moral. A convicção de que o homem não tem liberdade para determinar suas decisões constitui, segundo ele, uma barreira racional contra a tentação de odiar os outros ou a si mesmo pelos erros cometidos. A aceitação de tal idéia, porém, requer um grau de integridade moral e humildade acima do que possui a maioria dos seres humanos, e é essa a única razão, além da pura falta de maturidade intelectual, pela qual essa é uma doutrina tão impopular.

A religião de Einstein consistia num sentimento de reverência e humildade diante do Absoluto, cuja grandeza vai muito além da nossa capacidade de apreensão (racional ou não), mas cuja mera sombra, o mistério vislumbrado na harmonia e beleza do universo e suas leis, já é mais que suficiente para levar o homem sensível a quedar-se maravilhado. Não há nisso, porém, nenhum aspecto moral. Moralidade é uma construção inteiramente humana elaborada em interesse próprio, não havendo qualquer fundamento para a mesma acima do homem. O Absoluto é amoral e não tem nada a dizer sobre essa questão.

Em virtude do reconhecimento desse enorme mistério e da centralidade do mesmo em sua filosofia, Einstein se identificava com o agnosticismo, chegando a declarar que sua postura diante de Deus é idêntica à de um agnóstico. Porém, ele estava mais para um "religioso descrente", como ele mesmo se definiu, do que para um agnóstico típico. Sua admiração pelo racionalismo de Spinoza não se coaduna bem com o agnosticismo, que pende muito mais na direção do empirismo positivista, e suas declarações acerca do Absoluto vão muito além do que os agnósticos se julgam capacitados a falar sobre seu Incognoscível. E, do ponto de vista emocional e contemplativo, é provável que Einstein não tivesse os pais do agnosticismo moderno, Herbert Spencer e Thomas Huxley, em mais alta conta que os militantes ateístas. Digo isso porque, apesar de compartilhar tantas idéias com o ateísmo moderno, Einstein se enfurecia diante da mera sugestão de o estar apoiando. Para ele o ateu militante era tão irracional e fanático quanto o religioso fundamentalista e, tornando-se insensível à verdadeira compreensão da divindade por trás do universo e manifesta no mesmo, cometia o erro de, como se diz, jogar fora o bebê com a água do banho.

Einstein não via no ser humano qualquer componente imaterial, e portanto não acreditava na imortalidade da alma ou na sobrevivência de qualquer aspecto da personalidade à morte do corpo. Embora tenha dito que o caminho da religião convencional é fácil demais, considerava que a crença na imortalidade da alma se origina do medo ou do egoísmo, e que deve tornar muito tristes os que crêem nela. O crescimento de movimentos espiritualistas e teosóficos era visto por ele como "nada mais que um sintoma de fraqueza e confusão". Ele cria que todas as nossas experiências internas são apenas "reproduções e combinações de impressões sensoriais" e, mesmo muito depois de ter abandonado o positivismo, ainda considerava a idéia de uma alma incorpórea como "vazia e desprovida de significado" e que a existência de um "eu" é nada mais que pura ilusão gerada pelas nossas limitações cognitivas e de linguagem.

Einstein não compartilhava do desprezo de tantos judeus e livres-pensadores por Jesus. Apesar de acreditar que os evangelhos, assim como os livros dos profetas, contêm quantidades consideráveis de embelezamento poético e mítico, o grande físico cria firmemente na realidade histórica de Jesus e na incomparável grandeza de sua personalidade, que transparecia em cada um de seus ensinamentos. De maneira geral, aliás, ele acreditava que as conquistas intelectuais e práticas dos grandes cientistas e filósofos fizeram menos pela humanidade do que fizeram os grandes luminares, como Jesus, Buda ou Moisés, ao propor elevados ideais morais.