23 de junho de 2008

Uma dúzia de tiranos

Enfim estou livre de três das quatro disciplinas em que me matriculei neste semestre, e com isso espero voltar a ter tempo para escrever neste blog. Mas primeiro preciso colocar em dia algumas leituras, correspondências, debates e certas atividades pessoais, coisas que foram negligenciadas por mais tempo do que eu gostaria (minha primeira providência foi fazer a barba, que cresceu impunemente durante mais de quarenta dias). Em vista de tudo isso, provavelmente vai demorar mais um pouco até que eu retome as atividades por aqui. Até lá, fiquem com o texto abaixo, que contém os três parágrafos iniciais e os dois finais de um livro que mencionei no meu último post e que enfim consegui terminar de ler: Os intelectuais (Intellectuals), de Paul Johnson. Os trechos que transcrevo dão uma boa idéia da proposta da obra e de suas principais conclusões. O restante do livro é apenas uma extensa compilação dos fatos históricos e biográficos que as fundamentam, fatos esses retirados das vidas de algumas das mais notáveis figuras enquadradas na categoria de pessoas que dá nome ao título do livro.

"Ao longo dos últimos duzentos anos, a influência dos intelectuais vem crescendo regularmente. Na verdade, o surgimento do intelectual secular foi um fator decisivo para dar forma ao mundo moderno. Visto de uma perspectiva histórica ampla, trata-se, em muitos aspectos, de um fenômeno novo. Não há dúvida de que desde suas primeiras encarnações como sacerdotes, escribas ou profetas, os intelectuais exigiram para si a tarefa de orientar a sociedade. Porém, sendo eles guardiães de culturas hieráticas, fossem primitivas ou sofisticadas, as inovações morais e ideológicas que eles propunham eram limitadas pelos cânones da autoridade externa e pela herança da tradição. Eles não eram, nem podiam ser, espíritos livres ou aventureiros do pensamento.

Com o declínio do poder do clero no século XVIII, um novo tipo de mentor surgiu para preencher o vazio e conquistar os ouvidos da sociedade. O intelectual secular, mesmo sendo deísta, cético ou ateu, estava tão disposto quanto qualquer pontífice ou presbítero a dizer como os homens deviam agir diante dos problemas dessa sociedade. Desde o princípio, expressou uma devoção especial para com os interesses da humanidade e uma predisposição evangélica para fazê-la avançar graças a seu ensino. Deu a essa tarefa auto-imposta um sentido muito mais radical do que tinham dado seus predecessores do clero. Não se sentiam limitados por nenhum corpus de uma religião revelada. A sabedoria coletiva do passado, o legado da tradição e os códigos prescritos por uma experiência ancestral existiam para ser seletivamente seguidos ou para ser completamente rejeitados, dependendo apenas do bom senso de cada um. Pela primeira vez na história humana - e com uma arrogância e uma audácia crescentes - os homens se diziam capazes de diagnosticar os males da sociedade e curá-los com sua inteligência auto-suficiente; e mais: diziam ser capazes de traçar um plano pelo qual não apenas a estrutura social, mas os hábitos básicos do ser humano podiam ser transformados para melhor. Ao contrário de seus antecessores sacerdotais, eles não eram servos nem intérpretes dos deuses; eram seus substitutos. O herói deles era Prometeu, que roubou o fogo celestial e o trouxe para a Terra.

Uma das características mais marcantes dos novos intelectuais seculares era o prazer com que submetiam a religião e os respectivos protagonistas a uma análise crítica. Até que ponto esses grandes sistemas de fé trouxeram benefícios ou malefícios à humanidade? Em que medida esses papas e pastores viveram de acordo com seus próprios preceitos de castidade e sinceridade, de caridade e benevolência? Tanto no caso das igrejas como no do clero, os vereditos foram rigorosos. Hoje, depois de dois séculos durante os quais a influência da religião continuou decrescendo e os intelectuais seculares desempenharam um papel cada vez mais importante no caráter de nossas atitudes e instituições, já é hora de examinarmos as vidas deles, tanto em âmbito público quanto em privado. Pretendo avaliar particularmente as credenciais morais e de julgamento que os intelectuais possuíam ou não para ditar regras de conduta à humanidade. Como administravam suas próprias vidas? Que grau de retidão demonstravam para com a família, os amigos e os companheiros? Eles eram honestos em seus relacionamentos sexuais e financeiros? Será que falavam e escreviam a verdade? E até que ponto seus sistemas teóricos resistiram ao teste do tempo e da práxis?"

Antes de transcrever o veredito, vou apenas mencionar que a ênfase do livro recai sobre uma dúzia de pessoas muito influentes, cada uma a seu modo, todas as quais se enquadram na categoria de "intelectuais", no sentido explicado acima: quatro são filósofos, ou pelo menos costumam ser assim denominados (Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Bertrand Russell e Jean-Paul Sartre), três são dramaturgos (Henrik Ibsen, Bertolt Brecht e Lillian Hellman) e três são romancistas (Leon Tolstoi, Ernest Hemingway e Edmund Wilson). Há ainda um poeta, Percy Shelley, e até um editor, Victor Gollancz. No último capítulo muitos outros casos são apresentados em rápida sucessão, e em grau consideravelmente menor de detalhamento.

"Chegamos agora ao final de nossa investigação. Foi há apenas duzentos anos que os intelectuais seculares começaram a substituir a antiga classe dos letrados como guias e mentores dos homens. Vimos um grande número de casos individuais de pessoas que pretenderam aconselhar a humanidade. Analisamos as qualificações morais e de julgamento que tinham para exercer tal tarefa. Em particular, examinamos a atitude delas em relação à verdade, a maneira como pesquisavam e avaliavam as provas, a resposta delas não apenas à humanidade em geral, mas aos seres humanos em particular; o modo como tratavam seus amigos, colegas, criados e sobretudo suas próprias famílias. Abordamos as conseqüências sociais e políticas que houve em seguir seus conselhos.

Que conclusões podem ser tiradas? Os leitores julgarão por si mesmos. Porém, creio que revelei uma certa descrença popular diante dos intelectuais que tentam nos dar conselhos, uma tendência crescente entre as pessoas comuns de questionar o direito que têm os eruditos, escritores e filósofos, não importa quão notáveis sejam eles, de nos dizer como devemos nos comportar e gerir nossos negócios. Parece estar se difundindo a crença de que os intelectuais não são tão sábios como mentores, nem têm o mesmo valor dos homens exemplares, dos curandeiros e sacerdotes do passado. Eu compartilho dessa descrença. Uma dúzia de pessoas escolhidas ao acaso no meio da rua são no mínimo tão capazes de oferecer opiniões sensatas sobre assuntos morais e políticos quanto um grupo típico da intelligentsia. Porém, eu iria mais longe. Uma das lições mais importantes de nosso século trágico, em que assistimos a milhões de vidas inocentes serem sacrificadas em planejamentos para beneficiar a maior parte da humanidade, é: cuidado com os intelectuais. Eles não apenas devem ser mantidos bem afastados das engrenagens do poder como devem ser objeto de uma desconfiança particular quando procuram dar conselhos coletivos. Cuidado com as comissões, conferências e associações de intelectuais. Não confie em declarações públicas emitidas de suas fileiras cerradas. Não leve em conta suas opiniões a respeito de líderes políticos e de acontecimentos importantes. Isso porque os intelectuais, que estão longe de ser pessoas em alto grau individualistas e não-conformistas, seguem certos padrões de comportamento constantes. Considerados como um grupo, eles geralmente são ultraconformistas no interior dos círculos formados por aqueles cuja aprovação eles desejam e valorizam. Isso é o que os faz, en masse, tão perigosos, pois lhes permite criar ondas de opinião e ortodoxias dominantes, as quais geralmente originam uma série de ações irracionais e destrutivas. Sobretudo, devemos nos lembrar, a todo momento, daquilo que os intelectuais com freqüência esquecem: que as pessoas são mais importantes que os conceitos e devem vir em primeiro lugar. O pior dos despotismos é a insensível tirania das idéias."

1 de junho de 2008

Madrugada de aventuras

Hoje vou fazer algo que nunca fiz neste blog: começar a escrever sem saber exatamente o que devo dizer. Logo veremos aonde isso nos leva. É madrugada, e eu deveria estar dormindo ou estudando, mas não consigo fazer nenhuma das duas coisas. Comecei a ler uns artigos sobre temas que o André Luiz me mandou, e que as disciplinas do mestrado têm me impedido de ler com a rapidez que eu gostaria. Entre os artigos que li hoje há um com citações de um ativista homossexual protestando contra a terrível intolerância da nossa sociedade contra os praticantes da pedofilia. Há também um artigo mostrando que o governo de Uganda tem conseguido, por meio de campanhas em favor da castidade (para os solteiros) e da fidelidade (para os casados), reduzir drasticamente os índices de contaminação por AIDS em seu país (que chegou a atingir 30% da população, e hoje está perto de 6%), coisa que jamais conseguimos com as idéias moderninhas e politicamente corretas que resultam apenas na distribuição de preservativos. Li também notícias sobre o triunfo do velho (e genocida) maoísmo no Nepal. Creio que tudo isso serviu para reativar meus instintos de debate cultural, que ultimamente andavam meio dormentes. Então li mais um texto mandado pelo André, escrito por Mário Ferreira dos Santos, provavelmente o maior filósofo que o Brasil já teve (o que, num país tão medíocre, automaticamente faz dele um completo desconhecido).

A essa altura eu já estava ficando cansado de ler e começando a ter vontade de escrever. Mas me contive. Começar a escrever a essa hora? É melhor achar outra coisa para fazer. O texto do Mário é a introdução ao seu livro A origem dos grandes erros filosóficos, que eu ainda pretendo ler. Meu amigo enviou o texto já com destaque para os dois melhores parágrafos, que transcrevo aqui:

"Se passarmos os olhos pelas diversas épocas, verificaremos desde logo que os que mais brilharam, os que receberam o afago dos elogios fáceis, os que empolgaram mais facilmente grupos imensos de admiradores não foram os maiores de sua época, mas os menores, os que encontram um lugar inexpressivo na história do conhecimento humano. [...]

O que amedronta é ver antigas concepções, que foram derruídas pela análise e confutadas por rigorosas argumentações, retornarem como fantasmas, para preocuparem outra vez mentes desprovidas, a dos que desconhecem essas refutações, e se apresentarem, então, como NOVIDADES, como confecções perfeitíssimas, segundo o último modelo intelectual, provocando em mentes não devidamente a par do que já foi realizado, espasmos de satisfação, exaltações de gozo, como se fora atingida a quintessência das coisas."

Lembrei-me então do livro que venho arduamente tentando arrumar tempo para terminar de ler: Os intelectuais, de Paul Johnson. Restam ainda cinco dos treze capítulos pela frente, de modo que me abstenho, por enquanto, de comentá-lo em detalhes. O livro trata de uma porção de intelectuais e escritores mundialmente venerados, do tipo que gosta de diagnosticar os problemas mais profundos da humanidade e que julga ter a fórmula para resolvê-los. Johnson analisa suas carreiras profissionais e, sobretudo, suas vidas pessoais a fim de verificar se essas pessoas têm ou não as qualidades morais e intelectuais que justificariam a existência de pretensões tão elevadas em suas respectivas cabeças. A resposta, obviamente, é negativa; na verdade, é ainda mais veementemente negativa do que eu esperava.

Mas no momento eu não estou com vontade de iniciar a leitura do nono capítulo. O que fazer, então? Lembrei-me de ter no computador umas gravações de palestras do Mário, que me foram enviadas (pelo André, mais uma vez) há alguns meses. É uma boa solução para um sujeito que mora sozinho, não tem televisão nem capacidade de concentração para orações longas e está sem sono, sem vontade de ler, sem coragem para começar a escrever e com a geladeira vazia. Nessas gravações, entre exposições sobre Platão e Aristóteles e dissertações sobre a metafísica e a filosofia concreta, Mário arruma tempo para descer a lenha nos neopositivistas e em Kant, chegando a dizer, com quase todas as letras, que eles deveriam ter calado a boca e ido para casa estudar um pouco.

E, com isso, meus instintos intelectuais mais agressivos voltaram a despertar, e eu não resisti ao segundo apelo para escrever alguma coisa. Mas é claro que minha sede de sangue não poderia ser aplacada por temas tão pacíficos quanto a crítica textual bíblica ou os meus dois acusadores restantes. Eu estou mesmo é com vontade de falar mal de alguém. Mas quem? A essa altura tanto faz. Mas terá de ser algo rápido, pois já gastei espaço demais contando minhas monótonas aventuras das últimas horas. E, ao mesmo tempo, terá de ser algo relativamente leve, pois não posso exigir muito dos meus neurônios cansados. Pensei em falar do próprio Kant, mas meus problemas com ele são tantos que eu prefiro deixar isso pra depois. É o mesmo que aconteceu outro dia, quando um amigo me pediu para explicar as razões de meu desacordo com Marx. O problema é que essas razões são tantas e tão variadas que, vindo todas à minha boca ao mesmo tempo, me fizeram engasgar e balbuciar qualquer coisa, resultado esse que provavelmente não bastou para satisfazer meu amigo. Para evitar isso hoje, vou dar uma olhada na minha modesta biblioteca pra ver se acho alguma coisa que sirva a esse propósito. Volto daqui a pouco.

Voltei. E vou contar uma historinha. Trago nas mãos uma edição de bolso do Tao Te Ching de Lao-Tsé, o fundador do taoísmo. Eu tenho grande interesse por livros sagrados, especialmente das religiões que sustentaram civilizações milenares. Aliás, ainda quero fazer aqui uns comentários pontuais e amadorísticos sobre o Alcorão, que passei a achar belíssimo depois que me acostumei à sua forma literária bastante peculiar. E passei a ver nele também uma boa dose de sabedoria, especialmente depois de ter lido uma boa edição com notas explicativas preparadas por Helmi Nasr. Com o livro chinês, no entanto, aconteceu o contrário: li-o pela primeira vez numa edição (essa mesma que está agora diante de mim) cheia de notas explicativas. Não tive do que reclamar no que diz respeito à estética. Mas quanto aos ensinamentos, para ser franco, achei o livro uma bela porcaria. Esse veredito me incomodou, pois eu não podia conceber a hipótese de uma civilização inteira ter se orientado durante séculos por semelhante porcaria. Até onde sei, apenas os intelectuais são capazes de fazer esse tipo de coisa.

Passados alguns meses, voltei e reli o livro. Mas, talvez advertido por alguma intuição semi-consciente, resolvi deixar de lado as notas explicativas e ler apenas o texto. E como foi grande a minha surpresa ao constatar que, encarado dessa forma, o livro parecia adquirir muito maior valor! Não, é claro, que agora eu o tenha entendido bem. Mesmo assim, sua sabedoria transparece. É mais ou menos como nas poesias de T. S. Eliot: não entendo nada em boa parte do tempo, mas são edificantes e lindas. A poesia de Eliot não se esgota ao ser lida e sentida; precisa também ser estudada, coisa que eu, aliás, ainda não fiz.

Também não estudei o Tao Te Ching, e nada tenho a dizer sobre seu conteúdo. Meu propósito com essa história toda é mostrar como o autor das notas quase arruinou minhas relações com o velho livro, se é que não a arruinou em parte com a própria tradução, que é obra do mesmo sujeito. Seu nome é Huberto Rohden, e quase nada sei sobre ele. Vejo seus livros por aí, e sei que escreveu sobre filosofia e espiritualidade e traduziu vários livros sagrados, como o Bhagavad Gita e o próprio Novo Testamento. Sob o peso de suas notas explicativas, o Tao Te Ching tornou-se um tratado de monismo barato, daqueles que possuem um guru em cada esquina, que pretendem ser a essência ou a versão purificada de todas as religiões do mundo e cuja pretensa sabedoria espiritual consiste de um punhado de clichês anticristãos e enunciados pseudo-místicos vagos sobre uma divindade impessoal.

Não posso estender essa acusação à totalidade da filosofia e da teologia de Rohden, pois não sei sequer se ele tinha uma filosofia ou uma teologia, no sentido apropriado dessas palavras. Mas, por tudo o que pude constatar em suas notas, e ainda mais na introdução, nada encontrei que justificasse a suposição de que ele está acima de toda essa bobagem. Rohden tem das religiões abraâmicas a mesma concepção infantil e preconceituosa que invariavelmente se encontra entre esse tipo de gente. Assim, afirma que "para muitos, Deus é uma espécie de ditador celeste, uma pessoa que vigia os homens de longe e registra os seus créditos e débitos, premiando-os ou castigando-os depois da morte", para em seguida nos contar que "esse infantilismo primitivo domina as teologias cristãs de quase dois mil anos". Assim, os grandes teólogos e filósofos cristãos da história, por um artifício verbal fundado tão somente na ignorância do acusador, tornam-se todos crianças de seis anos.

Rohden prossegue citando e endossando a afirmação, feita por Einstein, de que o monismo cósmico é a forma mais elevada de religião, e que apenas uns poucos sábios alcançaram essa concepção ao longo da história. Mas, depois de incluir São Francisco de Assis nessa categoria, o que já seria absurdo o suficiente, o autor nos diz que "os místicos cristãos, adeptos do monismo cósmico, foram por isso mesmo perseguidos, excomungados ou, pelo menos, considerados suspeitos de heresia", desgraças essas que jamais acometeram o próprio São Francisco.

Vários outros exemplos poderiam ser dados, mas esses bastam para ilustrar minhas razões para não levar Huberto Rohden a sério. Mas não posso encerrar esse texto sem deixar claro que, embora eu pudesse fazer isso, não estou dizendo nada contra o taoísmo, ou contra as formas infinitamente mais respeitáveis de monismo presentes, por exemplo, no Vedanta ou entre os sufis. Estou falando contra esse ecletismo fácil e reducionista que muitos consideram a suprema maravilha do espírito. Quem deseja conciliar as diversas tradições religiosas em bases tão pueris acaba ficando apenas com o que há de pior em cada uma delas.

Rohden explica a superioridade do seu monismo alegando que "quando uma criança pensa em termos de adulto, deixa de ser criança, e os jardins de infância a expulsam como elemento estranho". A impressão que eu tenho é que ele próprio, que se considerava muito adulto por ter sido expulso do playground, foi, na verdade, enxotado por ser pequeno demais para os brinquedos ali disponíveis.

Missão cumprida: instintos apaziguados. O sono chegou, e o dia também. Vou postar isso aqui sem revisão mesmo, pela primeira vez, e vou dormir.