26 de julho de 2008

De volta à velha ordem

Com a publicação deste texto concluo a série de posts sobre crítica textual bíblica a que dei início em novembro do ano passado. Tendo discorrido sobre os fatores que causaram o aparecimento das variantes textuais (aqui), citado alguns exemplos das mesmas (aqui), contado a história das famílias de manuscritos e de como os pesquisadores puderam reconstituí-la, e tudo isso tanto para o Novo (aqui e aqui) quanto para o Antigo Testamento (aqui) - embora com grau de detalhamento notavelmente superior no primeiro caso - , estou, enfim, em condições de apresentar os critérios efetivamente utilizados na escolha entre as variantes. Os autores que estudei divergem quanto à forma de enunciar e enumerar os critérios, mas na realidade todos estão expressando um mesmo método. Sigo aqui o esquema geral descrito por Archer. Acredito que essas divergências aparentes se devem ao fato de que a crítica textual não é uma ciência exata, e a aplicação de seus critérios não é (e não pode ser, como ficará claro adiante) feita de modo mecânico, algorítmico. Voltarei a essa questão depois de listar os critérios adotados:

1. A variante mais antiga deve ter preferência. Em muitas situações isso significa que certas variantes merecem preferência por serem típicas de uma família de manuscritos mais antiga. No caso do Antigo Testamento, trata-se do Texto Massorético (embora variantes típicas de outras famílias possam, em princípio, ser mais antigas); para o Novo Testamento, significa que a variante escolhida deve encontrar apoio no texto alexandrino ou no texto ocidental. Note-se, pois, que não se trata da antiguidade do manuscrito, e sim da antiguidade do texto que ele contém. A idade dos manuscritos propriamente ditos só deve ser levada em conta quando o estudo das tendências gerais das famílias não fornece uma resposta conclusiva para o caso em questão. E, mesmo assim, deve-se ter em mente que a determinação da qualidade de um manuscrito requer a análise de vários outros fatores, alguns dos quais são mais importantes que a data da cópia.

2. A variante mais difícil deve ter preferência. Esse critério fundamenta-se no fato de que o copista, ao introduzir modificações intencionais no texto, nunca faz isso com intenção de torná-lo mais complicado, obscuro ou grosseiro, e sim mais simples, claro e elegante. Portanto, a existência de variantes do primeiro tipo se explica mais facilmente pela hipótese de que são essas as verdadeiras. A aplicabilidade desse critério é atenuada, entretanto, pela existência das variantes não intencionais e pela possibilidade de erros de interpretação por parte do copista, pois nesses casos ele pode inadvertidamente ter introduzido uma complicação desnecessária, chegando, em casos extremos, a produzir um texto sem sentido ou que contradiz claramente a intenção expressa pelo autor no conjunto da obra.

3. A variante mais breve deve ter preferência. Analogamente ao que foi dito no item anterior, a tendência dos escribas é acrescentar porções de texto, a título de esclarecimento ou comentário, e não omitir o que encontraram nos manuscritos que têm em mãos. Assim como no caso anterior, contudo, esse critério só se aplica aos casos em que a alteração é intencional. As variantes acidentais muitas vezes podem ser facilmente identificadas como tais, mas ainda assim a sua existência impõe um limite a esse critério.

4. A variante que melhor explica a existência das demais deve ter preferência. Esse critério se aplica especialmente (embora não exclusivamente) a passagens que possuem um número relativamente elevado de formulações alternativas. Obviamente só uma delas pode ser a correta. A questão, portanto, pode ser colocada da seguinte forma: levando em conta os processos usuais de origem dos erros e o que se conhece da história da transmissão da passagem em questão, qual das variantes, se tomada como autêntica, explica com maior naturalidade a origem das outras? Esse critério inspira-se no método proposto por Karl Lachmann no século XIX, o qual é ainda hoje utilizado na crítica textual da literatura clássica, mas inaplicável aos textos bíblicos, especialmente ao Novo Testamento. Mas, ao invés de reconstituir a árvore genealógica dos manuscritos, conforme a proposta de Lachmann, reconstitui-se a genealogia de cada uma das variantes, consideradas individualmente. Esse critério também pode ser aplicado, embora com maior cautela, à análise das traduções do texto para outros idiomas, procedimento que também fornece resultados seguros em alguns casos. E, é claro, o critério encontra uma limitação natural nos casos em que duas ou mais variantes explicam-se mutuamente de maneira igualmente satisfatória.

5. A variante com apoio em tradições independentes deve ter preferência. Esse critério encontra aplicação mais limitada, embora não de todo inexistente, na crítica textual do Novo Testamento, pois as famílias cesareense e bizantina foram influenciadas pelas suas predecessoras. Seu fundamento reside no fato de que, havendo uma mesma variante em tradições textuais independentes, é inverossímil atribuir esse fato à ocorrência repetida de um mesmo erro. Evidentemente, esse critério é tanto mais significativo quanto mais longa e complexa for a variante em questão, ou quanto menos comum for o tipo de alteração (intencional ou não) que poderia tê-la produzido. Embora a aplicação do critério se dê principalmente na comparação entre famílias, também pode ser feita do ponto de vista puramente geográfico, já que, como foi explicado anteriormente, os dois aspectos estão intimamente relacionados.

6. A variante mais de acordo com o estilo do autor deve ter preferência. Naturalmente, esse critério requer muita cautela, pois sua aplicação indiscriminada pode eliminar traços de autêntica originalidade e espontaneidade do autor no momento da composição, tornando o texto mais uniforme e padronizado do que deveria ser. E, de fato, muitos abusos e arbitrariedades já foram cometidos dessa maneira. Uma precaução adicional contra esse critério deve ser empregada quando existe a possibilidade de o autor do texto ter usado outros materiais, escritos ou orais, como fontes para a composição do trecho em questão, pois nesse caso ele pode perfeitamente ter preferido manter as palavras da fonte utilizada, o que impediria a manifestação do seu próprio estilo. Esse critério não tem, portanto, nada de absoluto, mas pode lançar alguma luz sobre situações indecidíveis por outros meios.

7. A variante doutrinariamente neutra deve ter preferência. Aquelas variantes que podem ser satisfatoriamente explicadas como tentativas de contornar alguma dificuldade imposta pelo texto devem ser rejeitadas em favor das que mantêm essa dificuldade, visto não ser verossímil a criação intencional de dificuldades. Porém (e isso é importantíssimo), o estudioso deve levar em conta aquilo que seria considerado uma dificuldade do ponto de vista do copista ou dos autores da variante em questão, e não do seu próprio ponto de vista. Por isso, a análise desse ponto requer um estudo intenso da evidência externa ao texto, a fim de se conhecer, tanto quanto possível, a mentalidade e as circunstâncias dominantes no meio em que o texto foi produzido.

Não é difícil perceber, a partir de uma consideração atenta do que foi dito acima, que os critérios não necessariamente apontarão numa mesma direção para um dado caso. E, na verdade, a possibilidade de contradição entre eles concretiza-se muito freqüentemente. A variante mais difícil pode não ser a que melhor se ajusta ao estilo do autor, a provavelmente mais antiga pode ter contra si testemunhos independentes, a mais breve pode conter indícios de sectarismo, e assim por diante. E, não havendo uma rígida hierarquia entre os critérios, não se pode apelar a nada parecido com uma contagem de pontos em favor desta ou daquela alternativa.

Sendo fruto de um processo histórico bastante complexo e não conhecido em todos os seus detalhes, o objeto de estudo da crítica textual consiste, entretanto, essencialmente em detalhes. Por essa razão os critérios acima, embora objetivamente válidos como normas gerais, não podem ser devidamente aplicados sem um conhecimento adequado dos muitos aspectos envolvidos no caso particular sob análise. E o conhecimento desses aspectos, pela sua própria natureza, não é passível de sistematização num conjunto de normas semelhante. Não existe um manuscrito, conjunto ou mesmo família de manuscritos que se possa seguir cegamente: toda decisão em crítica textual deve ser tomada analisando-se passagem por passagem, variante por variante, tradução por tradução, manuscrito por manuscrito, discussão por discussão dentre tudo o que foi dito sobre a passagem em questão. Embora sejam, em grande medida, objetiva e racionalmente justificáveis, a tal ponto que os desacordos entre os estudiosos do assunto são raros e de importância bastante reduzida, os resultados de uma investigação apropriada requerem aquela intimidade entre o pesquisador e seu objeto que só se atinge mediante uma longa e respeitosa convivência.

4 de julho de 2008

A esposa e o marido

Nota introdutória: este post é continuação do post O primeiro e o último. Os dois formam, na verdade, um único texto. Por isso, é recomendável ler aquele antes de dar início a este.

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O terceiro lugar deste temível quarteto é o único a ser ocupado por uma mulher: minha possível futura esposa. Aqui caberia uma série de minuciosos esclarecimentos sobre o modo como encaro essa questão. Pois eu costumo ser muito cuidadoso ao falar de assuntos importantes, e poucas coisas me parecem mais sagradas que o casamento. Mas farei uma tentativa de me refrear e dizer apenas o essencial para o propósito deste texto. E provavelmente nada é mais importante do que dizer que, diferentemente do que parece ocorrer com muitos solteiros, eu estou muito longe de ter certeza de que um dia vou me casar, ou de que não vou. O matrimônio é para mim uma dentre duas opções, e não posso afirmar que seja a mais atraente. A outra opção - o celibato - oferece vantagens no mínimo igualmente interessantes. Creio que alguns tomarão essas declarações como evidência de que estou acima dos prazeres da carne, e a maioria suporá tratar-se apenas de um exemplo daquela afetação de auto-suficiência adolescente que todos conhecemos tão bem. Mas ambos os grupos estarão enganados a meu respeito: não estou acima de nada, e tampouco sou auto-suficiente, ou penso sê-lo, ou penso que devo fingir que sou. Apenas levo muito a sério aquela história de "antes só que mal acompanhado", e reservo-me o direito inalienável de ser exigente; afinal, só uma mulher muito especial seria capaz de suportar a convivência com alguém como eu. Estou dizendo tudo isso apenas para deixar claro que, embora eu não saiba se vou me casar ou não, e embora não dedique nem uma fração do meu tempo à tentativa de concretizar essa possibilidade, nem por isso deixo de considerá-la aquilo que é: uma possibilidade que, aliás, não merece nenhum desprezo, tal é a seriedade e importância do assunto.

Feitos esses esclarecimentos, devo dizer algo sobre como espero que seja a minha possível futura esposa, a mulher pela qual eu deverei abrir mão de todas as outras. Faz vários anos que, sempre que penso nisso, me vem à mente em primeiro lugar uma mesma idéia. E ela me vem com ainda maior nitidez desde que li a peça O velho estadista (The elder statesman), que considero a segunda mais bela de T. S. Eliot (pois Murder in the cathedral permanece imbatível) e que contém uma admirável dedicatória à esposa do grande poeta. Talvez eu possa dizer simplesmente que estou me referindo ao desejo de conhecer e de ser conhecido. Mas haverá, de fato, alguma simplicidade nisso? Não ignoro que é praticamente impossível permanecer desconhecido por alguém com quem convivemos o tempo todo e em tão alto grau de intimidade. Mesmo assim, parece-me que um instinto de auto-preservação, um empenho em evitar conflitos desnecessários ou mesmo o mero desejo de sermos admirados por alguém que admiramos pode nos levar a ocultar algo da parte mais profunda do nosso ser, aquela da qual eu mesmo só me atrevo a falar durante as minhas orações - e mesmo assim nem sempre. Eliot expressou isso muito bem através destas palavras do seu idoso protagonista, quando falava à filha e ao genro sobre sua relação com sua falecida esposa e com certos dilemas que sempre o haviam afligido (a tradução é de Ivo Barroso, e o texto original está no final do post):

E se não há nada que dela você oculte
- ainda que possa considerar importante
ocultá-lo do resto do mundo - sua alma está salva.
Se na vida de um homem há uma pessoa, uma só que seja,
a quem ele esteja disposto a confessar tudo -
e isto inclui, veja bem, não apenas atos criminosos,
não apenas torpezas, mesquinharias e covardias,
mas igualmente situações que são apenas ridículas,
nas quais agiu como tolo (e quem nunca o foi?) -
então ele ama essa pessoa e seu amor irá salvá-lo.
Quanto a mim, jamais amei alguém de fato. [...]
Passei a vida tentando esquecer-me a mim mesmo,
tentando identificar-me com o papel
que escolhi representar. E quanto mais fingimos,
tanto mais difícil se torna livrar-nos do fingimento,
sair do palco, vestir nossas próprias roupas
e falar como nós mesmos. [...]
Sua mãe nada sabia a esse respeito. E sei
que nunca conheci sua mãe, nem ela me conheceu.
Imagino que ela jamais compreenderia
ou então teria ciúmes dos fantasmas que me perseguem.
Ainda sou dessa opinião. Como abrir seu coração
quando se está certo da reação contrária?
Como confessar-se sem esperança de absolvição?
Ela não teve culpa. Nunca nos entendemos propriamente.
Por isso, vivemos com um profundo silêncio entre nós dois,
e ela morreu em silêncio. Nada tinha a me dizer.

Creio que o que mais temo no casamento é a possibilidade de jamais vencer essa barreira. Talvez as pequenas máscaras do dia a dia sejam muito difíceis de tirar; talvez algumas pequenas e insignificantes mentiras ou omissões se reforcem mutuamente e se consolidem com o passar do tempo, bloqueando para sempre o acesso dela a certas obscuras regiões da minha alma. Talvez isso afinal resulte em alguma medida de incompreensão, frieza e solidão, mesmo que o amor verdadeiro jamais deixe de existir. É por isso que, mesmo sem saber sequer se terei ou não uma esposa, adquiri muito cedo a convicção de que ela seria alguém de quem eu jamais desejaria esconder nada. Hoje percebo que isso não é assim tão simples, mas permanece como um ideal a ser atingido e constantemente buscado. E assim coloca-se inevitavelmente, com relação aos meus maus atos, a seguinte questão: como será se um dia, movido pela necessidade de ser sincero, eu tiver de confessar esses atos à minha esposa? Deve ser terrível contemplar a decepção nos olhos da mulher amada. O problema é semelhante ao que ocorre no caso do primeiro acusador, com o agravante de que desta vez não se trata de um artifício da minha mente, mas sim de uma possibilidade real de ocorrência futura, e com uma pessoa não menos real. Os olhos dela, olhos cuja cor eu ignoro, me seguem incessantemente.

Nenhum olhar se compara, entretanto, ao do quarto acusador, a começar pelo fato de que este, ao contrário dos três primeiros, não é uma metáfora, nem uma figura do passado, nem uma possibilidade não concretizada, mas uma pessoa real, ainda mais real que eu mesmo. Possui planos mais sublimes e grandiosos para o meu futuro do que eu fui capaz de imaginar durante a infância, e é ele próprio mais puro do que jamais fui em qualquer momento da mesma. Sua sabedoria é infinitamente maior que o máximo que poderei obter dela até minha velhice. Seu amor por mim é incomparavelmente superior ao de qualquer mulher, assim como a intensidade do seu sofrimento em decorrência das minhas faltas, passadas ou futuras. Por tudo isso, e por várias outras razões, ele requer, com muita justiça, maior fidelidade que todos os outros. Nele se reúnem, enfim, todos os elementos presentes nos três primeiros: a pureza, a sabedoria, a morte, o tempo, a fidelidade, o amor. Quão doloroso, portanto, não deverá ser o dia da minha morte, ou o dia em que o Senhor ressurreto surgir entre as nuvens para buscar sua noiva!

Sei que o que eu disse pode parecer chocante e dar margem facilmente a más interpretações. Nós cristãos estamos acostumados, e não sem razão, a pensar nesse dia com os corações cheios de alegria e esperança. Pois a Bíblia nos fala de Cristo como perdoador e consolador, e não como acusador e vingador, daqueles que nele depositaram sua fé. E talvez, de fato, no último dia seja totalmente ausente todo sofrimento em decorrência de pecados já cometidos, embora eu ache isso pouco provável. Mas haverá qualquer contradição real entre a severidade do olhar divino e a abundância da misericórdia divina? Ao contrário, parece-me que a profundidade insondável desse amor deve apenas tornar mais pungente a dor do nosso arrependimento. Quando chegamos à presença do Rei cobertos pelas nossas porcarias, causa-nos alívio a promessa de que seremos limpos pelo poder dele; mas, enquanto isso não acontece, o amor que encontramos em seu olhar apenas torna mais esmagador o peso da nossa sujeira. A dor na consciência decorrente da desobediência a um código moral abstrato, imposto por um princípio metafísico ou uma divindade distante, não pode se comparar à visão das cicatrizes nas mãos e nos pés do próprio Criador, que somam sobre todas as nossas faltas o peso da suprema ingratidão. Pois nossos pecados, especialmente os voluntários, revelam a nossa indiferença, mesmo que momentânea, em relação à eterna dor, sofrida com o fim de nos livrar deles. O desprezo pela cruz é pior que o desprezo pelos sofrimentos humanos. Ela nos livra da ira, mas apenas aumenta nossa responsabilidade. Pois o sangue de Cristo fala coisas superiores às que fala o sangue de Abel.

Os quatro personagens estão agora apresentados. Só o que me falta é fazer deles instrumentos eficazes no combate ao meu mal interior, ou seja, lembrar-me deles não apenas ao refletir sobre os erros que cometi, mas também sobre os que ainda posso cometer; e assim, quem sabe, evitar ao menos alguns deles. Eis a meta. Que Deus me ajude.

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And if there is nothing you conceal from her
however important you may consider it
to conceal from the rest of the world - your soul is safe.
If a man has one person, just one in his life,
to whom he is willing to confess everything -
and that includes, mind you, not only things criminal,
not only turpitude, meanness and cowardice,
but also situations which are simply ridiculous,
when he has played the fool (and who has not?) -
then he loves that person, and his love will save him.
I'm afraid that I've never loved anyone, really. [...]
I've spent my life in trying to forget myself,
in trying to identify myself with the part
I had chosen to play. And the longer we pretend
the harder it becomes to drop the pretence,
walk off the stage, change into our own clothes
and speak as ourselves. [...]
Your mother knew nothing about them. And I know
that I never knew your mother, as she never knew me.
I thought that she would never undestand
or that she would be jealous of the ghosts who haunted me.
And I'm still of that opinion. How open one's heart
when one is sure of the wrong response?
How make a confession with no hope of absolution?
It was not her fault. We never understood each other.
And so we lived, with a deep silence between us,
and she died silently. She had nothing to say to me.