10 de março de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 4

Num texto anterior falei algo sobre o que há no litoral de Toulon e descrevi o sentimento que me acometeu quando coloquei os olhos no Mediterrâneo, mas nada falei sobre o mar em si, e tampouco sobre a praia. Corrigirei essa falha agora. Falando de maneira sucinta, posso dizer que o mar é lindo e a praia é horrível. Mas explicarei isso um pouco melhor. Andei muitas vezes na beira do Mediterrâneo, e estive sobre ele em quatro ocasiões. A água é linda, límpida, com os mesmos tons de azul e verde que costumamos ver nos pontos mais belos do litoral brasileiro. Em alguns locais é possível ver os corais pouco abaixo da superfície da água. O litoral em si é muito bonito, e fez com que eu me lembrasse de fotos das costas gregas que vi há muito tempo. Talvez não haja nisso nenhuma coincidência, e essa seja a paisagem predominante em toda a extensão setentrional daquele velho mar. É tudo lindo, mas trata-se de um litoral sem praia, sempre rochoso. A solução encontrada pelos habitantes do sul da França foi a criação de praias artificiais. Em Toulon, porém, umas pedrinhas - cujo diâmetro pode chegar a alguns milímetros - exercem o papel que deveria caber à areia. Não é muito confortável caminhar sobre elas. As quatro praias são dispostas em formato de meia-lua, e no ponto onde duas delas se tocam há barreiras de grandes pedras coladas entre si com argamassa. Sua razão de ser, presumo, é quebrar a força das ondas. O bairro onde se situam essas praias chama-se Mourillon. Embora o local seja bem freqüentado em dias ensolarados, pouquíssimas pessoas usam roupas de banho, seja para tomar sol, seja para entrar na água. A maioria, aliás, não faz nada disso. Quando digo que as praias são horríveis, digo-o num sentido muito específico. É um belo lugar, mas como arquitetura, não como natureza. Depois de passear pelas praias do Mourillon, creio ter compreendido melhor a razão pela qual os europeus costumam ficar deslumbrados com o litoral brasileiro.

As águas que banham Toulon pertencem a uma baía cercada por uma península que inclui as cidades de La Seyne e Saint-Mandrier. Isso torna impossível ver o mar aberto a partir das praias da cidade (ou do Mourillon, pelo menos, pois talvez ao leste haja praias que não visitei): vê-se a costa dessas duas cidades no horizonte. Não completamente satisfeito com esse panorama - pois eu queria ver água até não mais poder na direção da velha África -, tive de cruzar a baía de barco (o batobus, como o chamam os franceses: uma versão reduzida do catamarã carioca) até a praia setentrional de Saint-Mandrier e depois atravessar essa pequena cidade para chegar ao litoral sul, fora da baía de Toulon. Ali a costa também é rochosa, tanto quanto em qualquer outro lugar. Mas em alguns pontos - as "praias" - o solo é composto de seixos redondos e lisos cujo diâmetro típico varia de um a dezenas de centímetros. As ondas que batem provocam o deslizamento de muitos deles sobre os que estão mais embaixo, produzindo um ruído adicional muito agradável. Estive ali no final da tarde, completamente só, e desfrutei de alguns instantes de grande beleza. O Mediterrâneo parecia infinito diante de meus olhos, o sol se punha atrás de algumas rochas à minha direita, meus pés iam sendo constantemente molhados pelas ondas moribundas e os ouvidos eram inundados por um som deliciosamente interminável. Naquele momento, assim como em vários outros, tive de me esforçar para fotografar a cena, pensando nas pessoas queridas que ficaram no Brasil. Se não fosse por elas, eu preferiria guardar essas recordações apenas na memória, e muitas das fotos que trouxe para casa não existiriam. Não porque seja ruim ter imagens para contemplar mais tarde, e sim porque o simples ato de desviar a atenção para a câmera diminui a grandiosidade do momento. Quem já passou por uma situação semelhante sabe do que estou falando.

Talvez valha a pena mencionar mais um detalhe desse passeio: enquanto estive ali naquela praia de seixos de cujo nome já não me lembro, vi três objetos no céu, os quais deslocavam-se com uma certa rapidez e possuíam caudas que lembravam as dos cometas. Na verdade, não eram muito mais que riscos móveis no firmamento. Visto que não fui capaz de identificá-los, é perfeitamente lícito dizer que eram objetos voadores não identificados, à parte de quaisquer questões ufológicas que possam ser levantadas. Mas, se eu tivesse de arriscar um palpite sobre que coisas eram aquelas, diria que eram algum tipo de aeronave militar. Pois a presença das forças armadas francesas é particularmente forte naquela região: estimo que pelo menos metade da extensão do litoral é território militar, assim como os picos de alguns dos montes dos arredores; há instalações bélicas por toda parte, e as cercas de arame farpado e cartazes de advertência contra intrusos são visíveis em muitos lugares; Toulon abriga um porto militar, a segunda maior base da marinha francesa (e a maior da porção mediterrânea do litoral da França) e ali está ancorado o porta-aviões Charles de Gaulle. A presença dos militares naquela cidade é muito forte, e em La Seyne ainda mais.

Mais do que em soldados e armas, porém, o militarismo - no sentido não pejorativo da palavra - está presente também na mente e na memória do povo francês, e evidências disso se encontram em todos os cantos. A praça central de Toulon se chama Place de la Liberté, e nela se ergue uma imponente estátua-chafariz que celebra a retomada da cidade pelos aliados no fim da Segunda Guerra Mundial e homenageia os soldados que tomaram parte nessa operação. Em outro lugar há um monumento à memória dos habitantes da cidade mortos na Primeira Guerra. Um outro homenageia os militares franceses mortos em alto mar. E assim por diante: aqui, celebra-se um herói de guerra; ali, são lembrados os cidadãos de Toulon executados durante a Revolução; acolá, todos os mortos pela França que nasceram num determinado bairro. Há ainda monumentos aos membros de determinados batalhões, celebrações da resistência francesa em geral, louvores aos mortos de diversas categorias. Em cidades menores como Saint-Mandrier os monumentos geralmente contêm uma lista de todos os incluídos na homenagem, nome por nome. E no Mont Faron, uma montanha de cerca de 600m de altitude que fica próxima a Toulon, existe um autêntico museu militar no que um dia foi uma fortaleza, e na qual só não entrei por não ter chegado a tempo. (Mas caminhei em volta e vi antigos abrigos de soldados, trincheiras cavadas e longas muralhas parcialmente destroçadas.) Qualquer que seja o lugar por onde se ande, porém, é quase impossível caminhar alguns quarteirões e não ver uma homenagem qualquer desse tipo, mesmo que discreta. São tantas que eu, embora naturalmente afeito a memoriais e monumentos históricos, acabei desistindo de fotografar todas.

Nada disso deveria surpreender num país que tantas vezes ao longo de sua milenar história esteve no centro de guerras e revoluções diversas. Mas me surpreendi mesmo assim. Talvez em parte por estar inconscientemente habituado a um país onde as virtudes militares foram há muito esquecidas, e cujos representantes locais - dignos ou não - só são mencionados em meio a queixas contra a ditadura de antigamente ou em defesa dos bandidos da atualidade. Mesmo desconsiderando-se a hegemonia esquerdista em nossos meios de difusão de idéias, porém, é compreensível que não tenhamos muito respeito por nossa tradição militar. Afinal, o espaço para esse tipo de heroísmo é bastante limitado num país cuja maior guerra (ou única, dependendo do ponto de vista) foi contra um país tão minúsculo quanto o Paraguai. (Devo essa percepção ao meu amigo Gustavo Nagel.)

Seja como for, os franceses parecem ter uma saudável consciência do fato de que devem muito do que são e possuem de bom a uma verdadeira multidão de heróis do passado, e que sua prosperidade atual ergue-se sobre milhares de vidas sacrificadas. Tal consciência é bastante limitada, na verdade: quem tivesse os monumentos de Toulon como única fonte de informação histórica sobre as batalhas da França jamais suspeitaria que o país existia antes de 1789. Essas homenagens públicas exemplificam em pequena escala aquele rompimento com suas raízes medievais e cristãs que se abateu sobre toda a Europa, tornando sua cultura frágil e sem autoconsciência, como fatalmente acontece a qualquer secularismo. E, conforme ensinou Ortega y Gasset, os homens correm um sério risco de colocar tudo a perder quando herdam algum bem das gerações passadas desconhecendo os fatores que possibilitaram sua aquisição e sustentação. A despeito de tão importantes restrições, no entanto, essa saudável consciência existe, e para apreciá-la, reconhecendo nela seus bons elementos, não é necessário possuir inclinações pessoais ao militarismo ou vocação para o ofício - coisas que eu mesmo não tenho.

Todo esse espírito pode ser ilustrado pelo que presenciei no dia 11 de novembro, feriado nacional em que foram comemorados os noventa anos do fim da Primeira Guerra Mundial. Fiquei em casa pela manhã - por causa do frio e da chuva, se bem me lembro -, e assim não compareci aos desfiles e comemorações oficiais. Mas à tarde, quando saí para dar meu último passeio pela cidade, vi que todos os monumentos haviam sido ornamentados com flores. E à noite, quando fiquei diante da televisão procurando alguma programação minimamente interessante que pudesse exercitar minha compreensão do idioma (assim, inesperadamente, transformando o referido aparelho num objeto útil para mim, que sou o sujeito menos afeiçoado à TV que eu mesmo já vi), acabei assistindo um documentário inteiro sobre a guerra. Havia explicações históricas e táticas e reconstituições de eventos importantes, mas nada disso me impressionou, inclusive porque minhas inabilidades com o francês não me permitiram entender muita coisa. No entanto, havia também cenas verídicas, filmadas com aquela qualidade horrível típica dos primórdios do último século. E ali eu vi faces cobertas de angústia, soldados morrendo ou arrastando companheiros feridos, hospitais lotados, multidões de civis fugindo em desespero, mulheres trabalhando nas fábricas de munição, imensas filas de caixões sendo carregados. Mas havia também momentos alegres entre uma batalha e outra, vividos com a consciência de que poderiam ser os últimos, e afinal a explosão de festas improvisadas com a promulgação do Armistício. Fui invadido por um vívido sentimento tolkieniano de eucatástrofe, mas sem o atenuante da fantasia: eram pessoas de verdade ali, milhões delas, vivendo e morrendo, sofrendo e resistindo. E suas lágrimas, tanto as de dor quanto as de regozijo, trouxeram lágrimas também aos meus olhos.