29 de junho de 2009

Confusão na vizinhança - parte 1

Dado o contraste entre o elevado número de posts sobre minhas raras viagens e a baixa quantidade de textos sobre o que me ocorre enquanto estou em minha cidade, algum leitor poderia imaginar que nunca acontece nada de interessante em São Carlos. Mas isso seria uma injustiça: acontecem, sim, coisas interessantes aqui, principalmente enquanto viajo. Graças à minha ida à França perdi não só a defesa de mestrado de um colega de laboratório, como também - o que é ainda pior - o churrasco comemorativo. Além disso, em virtude dessa viagem perdi um evento que para mim é muito mais importante: o físico Adauto Lourenço defendendo o criacionismo numa palestra realizada em pleno campus da Universidade de São Paulo. O título da palestra foi O universo – teorias sobre a origem - criacionismo científico. Meu amigo Fernando me avisou por e-mail no dia de minha chegada à França, mas só pude ler o aviso mais tarde, no dia do acontecimento propriamente dito. Eu não teria podido ir, de qualquer forma, mas ele foi e me contou, quando retornei ao Brasil, que circulou por lá um manifesto contra o evento: na opinião dos assinantes, a presença do palestrante violou os princípios do laicismo.

O Fernando me contou ainda que muita gente compareceu e tomou parte na discussão, tentando por todos os meios demonstrar que a argumentação do palestrante era furada. Mas sem sucesso: o sujeito deu respostas satisfatórias a todas as objeções. E isso não me surpreende nem um pouquinho. Mas para mim o assunto se encerrou por aí, com um lamento por eu ter perdido tão magnífico espetáculo. Recentemente, porém, estive lendo o blog de um outro amigo, o Fortes, e encontrei transcrito ali o tal manifesto, redigido por nove pessoas, incluindo dois professores e seis alunos de pós-graduação dos departamentos de biologia da Universidade Federal de São Carlos. A carta foi dirigida aos professores Glaucius Oliva, diretor do Instituto de Física de São Carlos, e Richard Garratt, chefe do Departamento de Física e Informática, órgãos diretamente envolvidos na promoção do evento. Mesmo tendo-se passado já oito meses, não pude deixar de ficar algo impressionado com o que li, de modo que decidi fazer alguns comentários a respeito. Esses comentários aparecerão neste post e no próximo.

O texto começa citando com aprovação o fato de que o pró-reitor de pós-graduação e pesquisa da UFSCar havia cancelado, três semanas antes, uma palestra que seria dada pelo professor Marcos Eberlin, da Universidade Estadual de Campinas, em defesa do design inteligente, que os signatários qualificam como "um dogma religioso". Menciona também que a mesma palestra havia sido cancelada na própria Unicamp pelo coordenador da sexagésima reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Menciona ainda que em 2007 houve uma série de palestras na UFSCar nas quais se discutia o tema "evolução ou criação", e que tal iniciativa foi condenada pelo MEC. Em alusão à palestra no IFSC, os signatários da carta lamentam que tal reprimenda "parece não ter surtido o efeito esperado para todas as universidades públicas". O tom, até aqui, é claramente de intimidação, e mais adiante se converte em ameaça explícita, quando é dito aos destinatários que "sentir-nos-emos na obrigação de relatar o uso indevido de recursos públicos junto a autoridades competentes". Mas os remetentes têm a bondade de oferecer-lhes uma saída honrosa ao declarar: "estamos certos que esta palestra esteja ocorrendo à vossa revelia e que os senhores farão o necessário para que vosso nome não fique indelevelmente associado a palestras como esta". Agora examinemos as razões que levam os nove indivíduos a um desespero tal que torna justificável, na opinião deles, vociferar ameaças encobertas sob um manto de polidez formal. (Advirto que eventuais erros de português ou frases mal construídas nas citações seguintes não são de minha responsabilidade.)

Segundo o texto, "o Criacionismo ou 'Design Inteligente' é uma doutrina mascarada cujos defensores dão uma roupagem supostamente científica a essas crenças para propagá-las dentro de universidades e escolas". Essa definição apenas ignora um ponto fundamental da questão ao deixar de reconhecer, para início de conversa, que criacionismo e design inteligente são coisas diferentes, tanto na opinião dos próprios adeptos de uma ou outra vertente quanto na de todos os críticos sérios de ambas. (Não vou tentar explicar essa diferença simplesmente porque já fiz isso aqui.) Os críticos mais superficiais do design inteligente costumam acusá-lo de ser um criacionismo camuflado com fins estratégicos, isto é, a fim de parecer "ciência pura", isenta de pressupostos teológicos. A carta ora sob análise ignora tudo isso, e simplesmente apresenta os termos "criacionismo" e "design inteligente" como sinônimos, como se a idéia de usar esses nomes para distinguir dois movimentos distintos não houvesse jamais passado pela cabeça de quem quer que seja, mesmo que apenas a título de desconversa. E essa informação, garantem os autores, é fornecida "para esclarecimento".

Eles continuam "esclarecendo" aos destinatários que o híbrido por eles inventado - isto é, o tal "criacionismo ou design inteligente" - "pretende concluir a existência de deus e da criação a partir da impossibilidade da ciência atual de explicar todos os fenômenos naturais e distorce descaradamente conhecimentos há muito consolidados". O design inteligente, na verdade, sequer tem a pretensão de demonstrar a existência de Deus - nem mesmo de um deus com inicial minúscula, como o ostentado no texto em questão -, o que por si só já demonstra o poço de ignorância com que estamos lidando. Já no caso do criacionismo há pelo menos isto de verdadeiro: seus defensores de fato pretendem demonstrar cientificamente a existência de Deus e da criação, embora não necessariamente com o tipo de argumento mencionado na carta, a "impossibilidade da ciência atual de explicar todos os fenômenos naturais". Note-se, aliás, que a palavra atual está aí justamente para proclamar a fé dos autores na existência de uma explicação futura para aquelas questões fundamentais que permanecem sem respostas válidas após dois séculos de pesquisas. Boa parte do rancor alimentado contra os criacionistas pelos partidários do evolucionismo está justamente no fato de que aqueles se recusam a aderir a esse dogma. E aqui não uso essas palavras - e dogma - em seu sentido cristão original, autêntico e saudável, e sim no sentido pejorativo que elas costumeiramente possuem nas bocas e nos textos de pessoas como essas que redigiram a carta. Devo assinalar ainda que não há, ao longo de todo o documento, justificativa alguma para a afirmação de que o tal "criacionismo ou design inteligente" "distorce descaradamente conhecimentos há muito consolidados". Acusar de distorção os criacionistas e defensores do design inteligente é procedimento já antigo e bem estabelecido pela tradição darwiniana, e universalmente adotado por todos os devotos que diariamente sacrificam nos altares da razão e da ciência. Mas isso não justifica que se omitam as provas; se não da distorção, ao menos do descaramento. Sem isso, tais acusações são pura e simples difamação.

O "esclarecimento" continua no parágrafo seguinte: "O 'Design Inteligente', ou 'Criacionismo Científico', é reconhecidamente uma forma de criacionismo cristão." (De novo o uso de uma expressão pela outra, que comentei dois parágrafos atrás.) Pergunte-se o leitor: reconhecidamente? Quem foi que reconheceu isso? No caso, o advérbio não se refere aos adeptos do próprio movimento, como se poderia esperar num primeiro momento, e sim aos juízes que, em várias instâncias, proibiram o ensino do criacionismo científico e do design inteligente nas escolas públicas americanas, bem como aos indivíduos que protestaram contra o diretor de educação da Royal Society inglesa - que, segundo nos contam os autores da carta, foi demitido por supostamente ter defendido a inclusão do criacionismo no currículo escolar. A fim de não me desviar demais do assunto, não me estenderei sobre os pormenores dessas histórias todas, que têm sido mal contadas por toda a grande imprensa, aqui e no exterior. Mas fico deveras impressionado quando um grupo de cientistas (e aspirantes a cientistas, no caso) sente necessidade de buscar em decisões judiciais uma confirmação de suas opiniões sobre o que é e o que não é ciência. Já é ridículo o suficiente quando se faz isso recorrendo à autoridade de uma tal "comunidade científica", isto é, da opinião predominante entre os cientistas, como se não houvesse centenas ou milhares de cientistas defendendo o criacionismo (como Adauto Lourenço) e o design inteligente (como Marcos Eberlin) e como se, aliás, questões em ciência pudessem ser decididas por votação. Nossos signatários, entretanto, vão mais longe, indo buscar a opinião de pessoas que sequer praticam ciência, e desconsiderando a priori a hipótese de que fatores alheios às questões de filosofia da ciência possam ter influenciado decisivamente o resultado dos processos judiciais em questão, como aqueles que Phillip Johnson tem denunciado em seus livros e artigos. Mas Johnson é advogado, o que - como nos dizia Stephen Jay Gould - o torna automaticamente inapto para opinar sobre ciência; só tem importância a opinião do juiz John Jones, manifesta na decisão do caso Dover, e é a autoridade desse juiz que estabelece o melhor argumento apresentado na carta contra o caráter científico do tal "criacionismo ou design inteligente".

Além do mais, que história é essa de "criacionismo cristão"? Este mundo está cheio de criacionistas judeus e muçulmanos que defendem com argumentos científicos suas respectivas crenças sobre a origem das coisas exatamente da mesma forma que os cristãos, que apenas aparecem mais aqui no Ocidente por serem mais numerosos. E se o criacionismo não é cristão por excelência, o o design inteligente o é menos ainda: sei da existência de pelo menos dois cientistas adeptos desse ponto de vista que são agnósticos, além de um que é ateu. Duvido que algum deles esteja convencido de que aderiu a "uma forma de criacionismo cristão". Portanto, os autores da carta colocam em prática aqui a mesma desconsideração pelas minorias religiosas que condenam em outra parte do mesmo texto, conforme comentarei adiante. Antes devo analisar outros argumentos ali expostos. Não há, na verdade, novas objeções ao caráter científico do "criacionismo ou design inteligente", pois os autores aparentemente julgaram que as decisões judiciais e administrativas acima mencionadas são mais que suficientes para impugná-lo, a ponto de dispensar, inclusive, argumentos científicos e filosóficos. Mas são levantados argumentos adicionais contra a apresentação da palestra sobre criacionismo no IFSC, os quais vale a pena examinar brevemente, o que farei no próximo post.

Para encerrar este aqui, um esclarecimento precisa ser feito a fim de que eu não cometa uma injustiça contra meu amigo Fortes, que aparentemente endossou boa parte do conteúdo da carta. Embora a tenha publicado, ele acrescentou o seguinte comentário: "Talvez ao invés de boicotar fosse mais interessante que os que escreveram a carta estivessem presentes na palestra para gerar um debate". E esse é, na verdade, o único plano de ação que poderia passar pela cabeça de pessoas decentes e sensatas. Não sei se os signatários da carta estiveram presentes na palestra e, caso tenham estado, não sei se contribuíram para a promoção de um debate saudável. Mas o resultado típico de eventos como esse - e que, segundo me foi dito, repetiu-se nesse caso - ilustra a razão pela qual pessoas assim morrem de medo de debater. Os bons resultados obtidos pelos criacionistas em quase todos os debates públicos realizados nas universidades americanas, frustrando aqueles que esperavam poder demonstrar a imbecilidade de suas propostas, serviu de alerta para os que não suportam ver suas "verdades" desafiadas.