7 de julho de 2009

Confusão na vizinhança - parte 2

1. "Não podemos aceitar que ideais religiosos de qualquer vertente sejam apresentados a nossa comunidade como alternativa ao pensamento racional, crítico e científico."

O problema é que os signatários do manifesto demonstraram, em todo o texto precedente, uma ignorância abissal sobre as propostas do criacionismo em geral, e sobre o tema da palestra em particular. Meu amigo que esteve lá informou que o palestrante nada mais fez que apresentar argumentos científicos - com direito a deduções matemáticas do tipo que agrada a maioria dos físicos - em favor de seu ponto de vista, e nenhum dos presentes conseguiu refutá-lo. De onde, então, foi retirada a idéia de que alguém pretendia apresentar uma alternativa ao pensamento "racional, crítico e científico"? Aliás, o que é isso que os autores qualificam com tão sublimes adjetivos? Esse amontoado de bobagens desfilado ao longo de toda a carta? Por aí se nota que já não se fazem críticos racionalistas como antigamente. (Isso é só força de expressão, é claro, pois os de antigamente também não eram grande coisa.)

2. "Esse tipo de evento, que visa a promover uma ideologia religiosa disfarçada de ciência alcança a inconstitucionalidade, segundo a Constituição Federal do Brasil (CF/88 - Art. 19). O Brasil é um país laico, e assim, nenhuma crença ou religião pode exercer pressão ideológica junto aos cidadãos livres, nem imprimir sua presença em órgãos e espaços públicos (que é o caso da USP). Caso a supracitada palestra ocorra, o Instituto de Física de São Carlos (com a conivência da USP) estará infringindo a lei ao fazer uso de recursos públicos para a promoção e divulgação de um pensamento dogmático baseado na religião cristã – por meio do oxímoro 'Criacionismo Científico' – como suposta alternativa ao método científico universalmente aceito pela comunidade acadêmica mundial."

Em primeiro lugar, note-se a linguagem utilizada. Na opinião dos autores do texto, um físico que defende suas convicções sobre a origem do universo com os argumentos científicos que lhe parecem apropriados diante de uma platéia de estudantes e professores universitários que comparecem ao evento por livre decisão, e não por obrigação acadêmica ou outra de qualquer espécie, está exercendo "pressão ideológica junto aos cidadãos livres". Além disso, não importa o que ele faça - e a carta deixa claro que seus signatários não tinham idéia do que ele faria -, trata-se da proposição de uma "alternativa ao método científico universalmente aceito pela comunidade acadêmica mundial". Não passa jamais pela cabeça desses senhores que alguém possa usar o mesmo método para defender conclusões opostas às "universalmente" aceitas pela "comunidade acadêmica mundial". Aliás, não parece existir sequer a mais leve consciência de que discordar quanto aos resultados a que leva um dado método não é o mesmo que rejeitar o método. Tal percepção deveria ser fácil para pessoas envolvidas em atividades de pesquisa científica. Lamentavelmente, isso não ocorre no texto em questão.

Sobre a questão da suposta ilegalidade do evento, visto que o texto do Artigo 19 da Constituição Federal do Brasil não foi transcrito na carta, tive de ir buscá-lo em outro lugar. Em meio a outras coisas irrelevantes para o presente contexto, o Artigo 19 declara que é "vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios [...] estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". Qual dessas ações descreve corretamente a palestra de Adauto Lourenço no IFSC? Não entendo grande coisa de assuntos jurídicos, mas, visto que os signatários da carta não deram sinais de entender mais que eu, exerço meu direito de falar na condição de mero cidadão brasileiro que sabe ler: não vejo relação alguma entre o conteúdo do artigo e o evento que causou toda essa polêmica. A Constituição fala apenas de "cultos religiosos ou igrejas" e proíbe - com restrições - que o governo estabeleça com essas instituições ou seus representantes "relações de dependência ou aliança". Portanto, quem quer que deseje usar esse artigo contra a palestra em questão deve demonstrar, antes de tudo, que o palestrante foi enviado como reepresentante de alguma igreja ou culto religioso. É desnecessário dizer que não há provas desse tipo na carta. Até que se demonstre o contrário, portanto, Adauto Lourenço veio a São Carlos para falar apenas em seu próprio nome, e não há nada - no Artigo 19 ou em qualquer outro - que proíba isso.

Cabe acrescentar um dado interessante: já ouvi falar de palestras ministradas em universidades defendendo a ufologia, o gnosticismo, a teosofia, o espiritismo, os cultos afro-brasileiros, a astrologia e o hinduísmo. Todos esses casos caracterizam-se como crenças religiosas ou pseudocientíficas. Entretanto, não me lembro de ter ouvido os defensores da tal "razão científica" fazendo tamanho barulho - ou mesmo o mais leve ruído - contra esses eventos. A menos que alguém possa me mostrar evidências da participação de nossos nove cruzados em batalhas desse tipo, eu gostaria de saber por qual motivo o cristianismo e o "criacionismo ou design inteligente" recebem um tratamento diferenciado. Por que se incomodar tanto com algo que é só mais uma crença religiosa e pseudocientífica?

3. "Além disso, é missão vital de uma democracia a proteção das minorias religiosas, que não devem sofrer discriminação ou desconforto pela promoção de alguma religião majoritária dentro de espaços públicos."

Esse argumento é particularmente notável. Depois de terem se referido repetidamente em termos pejorativos não só ao cristianismo e ao conceito de criação sobrenatural em particular, mas às religiões em geral, os autores subitamente se lembraram dos devotos destas últimas e, penalizados com seus pobres e frágeis sentimentos, decidiram que argumentar contra elas, mesmo cientificamente, é uma atitude discriminatória e inadmissível. Não estou exagerando ao dizer que a carta afronta todas as religiões. Todas elas são vilipendiadas na própria definição da "missão da universidade": "a busca do saber e a propagação do pensamento crítico e racional e não a divulgação de ideologias religiosas como contraponto ao pensamento científico e racional". Fica claro que, na opinião dos signatários, religião é uma "ideologia" (será que eles conhecem o significado do termo?) incompatível com a ciência e com a razão. Eles também se referem pejorativamente aos tempos pré-científicos "onde o homem atribuía fenômenos físicos naturais, como uma tempestade ou um eclipse, a um castigo divino e não a fenômenos físicos hoje elucidados", desprezando assim todos os cultos que vêem algum elemento sobrenatural ou significado religioso em eventos da natureza. (Note-se também a falta de cuidado com a língua portuguesa que acabou resultando na atribuição de fenômenos físicos a fenômenos físicos.) Finalmente, a carta afirma que "a defesa do ensino laico e do conhecimento científico é uma questão fundamental da sociedade moderna" - o que significa, como o restante do texto já deixou claro, que todo adepto de qualquer religião tem o dever de permanecer de boca fechada na presença desses senhores, de modo que eles possam propagar sem oposição as bobagens anti-religiosas contidas nessa carta, assim como outras que porventura lhes ocorram. É verdade que sua antipatia pelo cristianismo é particularmente intensa, mas isso não chega a ser suficiente para gerar simpatia por outras religiões, a não ser superficialmente, quando interessa levá-las em conta para calar um cristão. Não há aqui consideração alguma por religião alguma. Essa pretensa preocupação democrática é pura hipocrisia, e o devoto de outra religião que porventura caísse nessa conversa seria apenas um idiota útil.

4. "Para quem está absolutamente à margem do conhecimento científico, como estão os criacionistas, o prestígio de falar em universidades de renome tem sido utilizado como moeda de reconhecimento de mérito. Isto é absolutamente preocupante, uma vez que dá-se um verniz de respeitabilitade e faz crer que na universidade ainda se discutem idéias retrógradas que já foram rechaçadas há pelo menos 150 anos."

Esse trecho poderia levar algum leitor distraído a concluir que a ausência de mérito científico entre os opositores do evolucionismo é tamanha que pisar numa universidade é, para eles, ocasião raríssima e extraordinária, e que conseguir tal proeza é motivo de intensas comemorações. Adauto Lourenço provavelmente se gabará do fato junto aos amigos em todas as ocasiões possíveis pelos próximos cinco anos. Porém, o próprio texto da carta já havia mencionado um defensor do design inteligente que é professor universitário, e atesta também que o palestrante cuja voz eles tentam calar possui mestrado em física. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, na verdade, mas vou ficar só com o do já citado Marcos Eberlin, que é professor titular de química na Unicamp. Ele certamente não precisa de suas palestras sobre evolução em "universidades de renome" como fonte de prestígio ou como "moeda de reconhecimento de mérito", pela simples razão de que fala em uma universidade de renome quase diariamente, como é de se presumir. Será que adeptos do "criacionismo ou design inteligente" angariam renome para seus pontos de vista enquanto teorias científicas com maior eficácia fazendo palestras contra a evolução numa universidade de vez em quando ou sendo pesquisadores de mérito reconhecido nessa mesma universidade (sobretudo em áreas relevantes para o debate sobre evolução)? Nada disso dá sinais de ter passado pela cabeça dos signatários da carta, que estão, portanto, preocupadíssimos com algo de importância diminuta. Mas, se é lícito proibir uma palestra para não dar uma pequena publicidade ao inimigo, o que dizer dos fatos que proporcionam uma publicidade muito maior? Professores universitários que não aderem ao evolucionismo deveriam ser demitidos a fim de não gerar publicidade aos grupos errados? Se a resposta for afirmativa, trata-se de censura e perseguição, em nada - nem mesmo no uso da ciência como pretexto - diferentes das perseguições aos acadêmicos em diversos regimes totalitários ao longo do século XX. Se for negativa, trata-se de uma inconsistência pura e simples, mas nem por isso pequena ou desprezível.

Porém, as palavras finais do trecho acima transcrito lançam alguma luz adicional sobre a questão. Provavelmente os autores da carta não são favoráveis à demissão de professores antievolucionistas, desde que eles não fiquem espalhando suas heresias por aí. Afinal de contas, a maior preocupação desses senhores consiste no fato de que eventos em que se questiona a evolução "faz[em] crer que na universidade ainda se discutem idéias retrógradas que já foram rechaçadas há pelo menos 150 anos". Bem... que há discussão, há. O simples fato de um químico e um físico com formação acadêmica estarem dispostos a fazer palestras sobre isso em universidades públicas de qualidade indiscutível é uma prova desse fato, e provas adicionais poderiam ser reunidas com os livros e ensaios já publicados na literatura acadêmica - inclusive, mas não apenas, por cientistas que, sem questionar o dogma da evolução em si, fazem severas objeções a pontos importantes de teorias amplamente aceitas. Para muitos evolucionistas, contudo, o mais importante não é que não haja discussão, e sim que ninguém fique sabendo delas. Já imaginaram o que pensarão as pessoas comuns quando descobrirem que os cientistas e seu método não são detentores da infalibilidade que costumeiramente se lhes atribui, e que ainda são consideradas idéias retrógradas que bulas papais do século XIX já haviam declarado heréticas? Não dá! No fundo, esses que adoram posar de moderninhos são mesmo um bando de tradicionalistas.