6 de outubro de 2009

Retratando

"Que rios bastariam para nos lavar de tanta ignorância quanto a que, pela misericórdia do Senhor, se corrige a cada dia?" (João Calvino)

Nos últimos tempos tenho escrito pouco neste blog - digo, com baixa assiduidade, pois o tamanho dos posts tem sido, estatisticamente, o mesmo de sempre. E tenho gasto muito espaço com coisas que qualquer criança poderia fazer, como relatos de viagens, resumos de livros velhos e críticas a textos ateístas e modernistas. Várias pessoas já me disseram, diretamente ou não, que preferem essa nova fase, e eu de fato creio que faria mais sucesso se decidisse permanecer nela. Talvez alguém pudesse, de uma comparação entre a fase inicial e a posterior, extrair ao menos uma de duas conclusões: primeira, que mudei o estilo e os assuntos para conquistar maior público; e segunda, que as questões intelectuais que sempre tiveram proeminência por aqui - relativas a teologia, filosofia, ciências, literatura, história - têm agora me interessado menos, e talvez até minha vida intelectual esteja estacionada.

A primeira possível conclusão não seria verdadeira. Como afirmei já na postagem inaugural deste blog, "meus objetivos são primariamente egocêntricos". Não significa, é claro, que eu não goste de ter leitores ou de receber comentários. Através deste blog já recebi comentários úteis e inúteis, elogios e críticas, arrumei novos contatos e até algumas amizades, bem como algumas briguinhas. De modo geral, gosto muito de ter passado por tudo isso. No fundo, porém, devo admitir que não é só para os leitores que escrevo, e talvez nem em primeiro lugar. Outro dia um amigo me perguntou por qual razão eu escrevo num blog. É uma questão sobre a qual eu nunca havia refletido detidamente. Ao abrir este blog, listei minhas razões para fazê-lo. Mas os motivos para dar início a um procedimento não podem coincidir de todo com os motivos para persistir nele depois de quase três anos, ainda que essa última classe de razões não chegue a contradizer a primeira. Assim, a pergunta de meu amigo obrigou-me a sondar meu próprio interior quanto a essas novas justificativas. Dei-lhe, assim, uma resposta improvisada, mas que, depois de ter refletido de maneira mais demorada a respeito, considero inteiramente correta.

Escrevo para registrar o que me passa pela cabeça. Trata-se de uma espécie muito peculiar de diário: um diário que, além de não ser atualizado diariamente, é público, sem periodicidade definida e sobre assuntos não confidenciais. Embora eu escreva por prazer e necessidade pessoal, preciso ter algum outro leitor em mente, ainda que hipotético e abstrato. Do contrário, não tenho com quem me comunicar. Escrever para mim mesmo é muito fácil, pois sou capaz de entender o que eu mesmo quero dizer ainda que não o explique bem. Em vista disso, na ausência de leitores sou acometido de uma certa preguiça de me empenhar em prol de uma clareza que não requer empenho algum, e assim tornar o texto abreviado e mal construído demais, como um rascunho. E tenho plena consciência do risco que isso acarreta. Nunca tive um diário, mas já guardei velhos cadernos de anotações e rascunhos durante anos. Quando voltei a abri-los, descobri que era incapaz de discernir algum sentido na maior parte do que estava ali anotado: coisas que me pareciam perfeitamente claras quando as coloquei no papel, mas que se tornaram indecifráveis depois que minha mente se desligou delas por tempo suficiente. A fim de evitar isso, publico meus textos. Mesmo que ninguém jamais lesse nenhum deles, a simples possibilidade desse acontecimento já bastaria para me obrigar a uma atitude diferente dessa que acabo de descrever. Preciso me esforçar para transferir a clareza para o texto, pois nenhum leitor é obrigado a adivinhar o que não está ali. Assim, o respeito pelo leitor me leva a buscar o aprimoramento da expressão escrita. E além de tudo isso, é claro, existe a possibilidade de que o que digo faça bem a algum leitor, conhecido ou desconhecido.

De maneira análoga, o respeito pelo leitor me leva também a aprimorar o conteúdo. Não é que eu me preocupe em dizer coisas interessantes. Na verdade, boa parte do que escrevo certamente não pode interessar a muita gente. Mas me preocupo em não dizer besteiras. É claro que o espaço é meu e tenho o direito de publicar nele o que bem entender, já que não há compromisso algum de meus textos com quem quer que seja. Entretanto, creio que a publicação de qualquer coisa traz consigo uma obrigação intrínseca de tomar cuidado. No meu caderno de rascunhos posso escrever as besteiras que quiser e substituir o conhecimento pela imaginação sempre que me der vontade. Não tem problema, porque ninguém vai ver. É apenas um backup de partes de meu cérebro, e nada mais que isso. Um blog é isso também, mas ao mesmo tempo é muito mais que isso. Não tenho a obrigação de ser infalível, é claro, mas tenho a de não tratar os assuntos de maneira imprudente. Todos esses esclarecimentos, ressalvas e especificações esclarecem o que eu quis dizer ao afirmar que este blog é um diário muito peculiar. Porém, a despeito de todos os esforços, bobagens acabam sendo ditas. Jamais tive ilusões quanto a isso. Ao abrir o blog, declarei:

"Pode ser que daqui a alguns ou muitos anos eu releia tudo e ache uma tremenda porcaria, repleta de simplificações, ingenuidades, futilidades e tosquices. Não ficarei triste se isso vier a acontecer. Aliás, é justamente o que eu espero que aconteça."

Não cheguei (por enquanto, pelo menos) ao ponto de achar que tudo o que escrevi é uma porcaria. Mas já não concordo com certas coisas que eu mesmo publiquei aqui, e tampouco aprovo algumas das atitudes que adotei enquanto escrevia. Deixei documentada uma porção de erros, e só não cometi muitos outros por não ter tido tempo de escrever mais. Não é a primeira vez que isso acontece, é claro. Já me retratei de coisas que disse aqui mesmo, e já expliquei melhor declarações que poderiam transmitir uma impressão errada. Mas eram erros localizados, específicos e de correção relativamente simples. Nenhum deles envolvia revisões muito sérias de minha visão de mundo ou minhas atitudes. Mas nos últimos tempos tem acontecido tudo isso. E esse fato, diga-se de passagem, relaciona-se de perto com a segunda conclusão a que um leitor poderia chegar a partir de minhas últimas postagens: a de que meu interesse pelas grandes questões diminuiu. Tal conclusão seria um equívoco ainda maior que a primeira. Embora eu venha tendo menos tempo para ler e escrever, tenho refletido de maneira mais intensa sobre certos assuntos e acontecimentos, e mudado de maneira significativa algumas de minhas posições. A profundidade e a velocidade dessas mudanças são justamente os fatores que me impediram de falar sobre elas até o momento, e talvez continuem impedindo por mais algum tempo. Pois as grandes mudanças, ao contrários das pequenas, levam tempo para ser compreendidas pela mente e absorvidas pelo coração. Até que o processo se complete, na medida em que chega a se completar, a melhor coisa a fazer é ficar em silêncio, ao menos sobre o assunto em pauta. Eis a razão pela qual tenho dedicado este blog a outras coisas, a assuntos que não exigem de mim grande esforço. É claro que, à parte de tudo isso, a diminuição de meu tempo disponível para escrever é um fato objetivo de minha vida pessoal, e isso também me desencoraja a escrever sobre os assuntos que ocupam o centro de minhas atenções: eles me parecem importantes demais para que eu me pronuncie a respeito deles com pressa.

De qualquer forma, meus erros estão publicados, e preciso decidir o que fazer acerca deles. A solução mais fácil seria excluir o blog (ou pelo menos alguns de seus textos), de modo a eliminar a possibilidade de que alguns leitores sejam convencidos de ideias em que já não acredito, causando-lhes assim o que é, de minha perspectiva presente, um mal. Tal procedimento, porém, é objetável por duas razões. Uma delas é que, se as partes das quais hoje discordo podem fazer mal aos leitores, as partes com as quais continuo concordando podem muito bem beneficiá-los, e separar umas das outras sem mutilar profundamente alguns textos seria difícil a ponto de ser mais fácil reescrevê-los. A segunda razão é que tal procedimento seria incompatível com o propósito fundamental do blog, conforme o descrevi acima: se as ideias em questão não são mais minhas, nem por isso perdem o direito de ficar registradas. Meu blog serve, como já afirmei, para que eu registre aquilo que ocupa minha atenção; assim, o espaço possui uma história e uma continuidade próprias. Afirmei acima que ele é uma espécie de diário, mas creio que é ainda mais exato dizer que é uma espécie de álbum de fotografias: seu propósito é registrar momentos; ele é algo como um auxiliar da memória, e uma fonte de memórias para quem não vivenciou os momentos em questão. Excluir as partes que já não julgo aproveitáveis seria varrer para debaixo do tapete todo um lado de minha própria história, fingindo que jamais existiram.

Porém, a decisão de não excluir o blog deixa sem solução o problema. As ideias que repudiei continuam lá, impunes. Não seria honesto ignorá-las, pela razão mencionada no parágrafo anterior. Além disso, não quero ignorá-las, pois elas revelam informações importantes sobre mim. E tampouco é meu desejo que o leitor, qualquer que seja, deixe de tomar contato com elas. Quero que ele tenha a oportunidade de saber que errei e tomar conhecimento de como vim a desviar-me desses erros. Em outras palavras, só me resta a retratação. Não deixa de ser curioso o fato de que a palavra "retrato" está no título deste blog. Eu nunca havia percebido, até este momento, que o mesmo verbo é usado em nossa língua para designar a confecção de um retrato e o anúncio público de uma mudança de posição. Retratar-se é pintar um retrato de si mesmo, um retrato diferente do que até então vinha sendo pintado. As distorções nos retratos em exposição denunciam a miopia do artista. Quando ele próprio descobre isso, tem a obrigação de arrumar um bom par de óculos e sair consertando tudo. É o que começarei a fazer, não de imediato, por pura falta de tempo, mas assim que puder.