26 de novembro de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 7

Embora já tenha se passado mais de um ano desde que voltei da França, ainda tenho algumas aventuras para narrar. Neste post começarei a contar sobre os aspectos mais importantes de minha viagem a Paris, tarefa que continuará no próximo texto. Fiquei lá apenas um fim de semana. Mais precisamente, cheguei no sábado, pouco antes do horário de almoço, e parti de volta para Toulon no domingo, pouco depois do anoitecer. Eu, na verdade, já havia estado na cidade-luz ao chegar à França, tendo permanecido nela cerca de quatro horas. Esse tempo é evidentemente curto demais para se conhecer Paris, e eu o gastei todo com o desembarque, a mudança de aeroporto e o reembarque. Além do mais, ambos os aeroportos parecem ficar longe de tudo o que há de interessante na cidade. Tudo isso fez com que meu desejo por um bom passeio na capital francesa apenas aumentasse.

Felizmente, surgiu uma oportunidade de satisfazer esse desejo. Minha amiga Marcia, sãocarlense e ex-companheira de coral que atualmente mora e estuda em Bruxelas, havia me convidado a ir visitá-la enquanto estivesse na França. Eu também desejava, é claro, conhecer a capital belga. Porém, Bruxelas é consideravelmente mais longe de Toulon que Paris, o que inviabilizou minha ida tanto por motivos financeiros quanto pelo pouco tempo de que eu dispunha: tendo de ir num dia e voltar no seguinte, eu passaria dentro do trem a maior parte do tempo útil. Por isso, sugeri que nos encontrássemos em Paris, por ficar mais ou menos no meio do caminho. A Marcia topou e levou junto a Régine, sua amiga belga.


A aventura começou muito antes que eu voltasse a colocar os pés em Paris. Fui comprar a passagem com uma semana de antecedência. Eu já tinha alguma experiência em comprar coisas na França. Achei que seria simples: eu diria que quero ir a Paris em tal dia, a moça me diria os horários disponíveis, eu escolheria um, ela diria o preço, eu pagaria, ela me daria a passagem e eu iria embora. Acabei descobrindo que andar de trem é uma das coisas mais complicadas que alguém pode fazer naquele país. O preço da passagem varia de acordo com uma infinidade de fatores: o dia da semana, o horário, o tipo e a posição da poltrona, o tempo que resta até a viagem, a compra ou não da passagem de volta junto com a de ida, as escalas que o trem faz e provavelmente outros dados de que já me esqueci. Eu não estava em condições de travar um diálogo tão complexo, e a atendente não tinha lá muita paciência - aliás, se bem me lembro, ela foi a única com quem tive problemas dessa ordem em toda a região de Toulon. Desisti, fui fazer outras coisas e voltei horas mais tarde, sendo desta vez atendido por uma mulher que não só era bem mais atenciosa, mas também falava um inglês perfeitamente compreensível - o que é uma raridade naquele canto do mundo, como já tive oportunidade de mencionar em outro post. O problema estava resolvido, enfim.


O próximo passo era certificar-me de que encontraria minhas duas companheiras de turismo naquela cidade enorme e indecifrável. Combinamos, por e-mail, um encontro sob a Torre Eiffel. A primeira questão, portanto, era: como ir da Gare de Lyon, a estação de trem parisiense, até o célebre ponto turístico? Eu não tinha a menor ideia. Quem resolveu meu problema foi o Google Maps. Logo vi que o caminho mais curto era consideravelmente complicado: eu teria de fazer umas quinze curvas, e não sabia se as ruas de Paris eram bem sinalizadas e identificadas; tampouco sabia se poderia contar com a paciência e a presteza do povo da cidade. Optei por um caminho algo mais longo, mas muito mais fácil: acompanhar o rio Sena (La Seyne), que passava perto tanto da estação quanto da torre. Ele não seguia em linha reta, mas seguir o curso de um rio é bem mais fácil que fazer quinze curvas corretamente numa cidade que se desconhece de todo e cujo idioma se ignora quase de todo. Essa consideração resolveu a questão quanto à estratégia a ser adotada.


Saí de casa - isto é, da casa da Caroline, minha anfitriã - às cinco da madrugada, e consegui tomar o trem sem grandes dificuldades. A paisagem era linda, mas não pude vê-la porque dormi quase o tempo todo, já que havia dormido pouco durante a noite e acordado muito cedo. De vez em quando eu despertava, olhava para fora e divisava uma daquelas paisagens até então só vistas nas mais belas produções do cinema europeu: campos, pinheirais, fazendas, plantações de uva, de trigo e outras coisas. "Que maravilha!", pensava eu, segundos antes de adormecer novamente. Uma das coisas que mais lamento quanto ao tempo em que permaneci na França é justamente não ter conseguido permanecer de olhos abertos durante essa viagem.


Cheguei à Gare de Lyon, desembarquei e pus-me a tentar descobrir para que lado ficava o Sena. Descobri depois de uns dez minutos, e parti. As diferenças entre Paris e Toulon começaram a se manifestar no fato de que ali todo mundo caminhava com pressa. Evidência adicional surgiu quando um mendigo me pediu esmolas ainda dentro da estação, e duas moças fizeram a mesma coisa antes que eu tivesse me afastado trinta metros dela. Em Toulon, conforme já mencionei aqui, recebi três pedidos de esmola em trinta dias; em Paris, esse número foi alcançado bem antes dos trinta minutos.


Andei uma hora e meia pela margem do Sena, carregando minha mala, até chegar à Torre Eiffel. Uma vez mais, não fiquei suado. Aliás, nesse dia passei mais frio que em qualquer outro, embora houvesse sol. (É notável a diferença de temperatura entre Paris e o sul da França.) Ainda assim, teria sido uma caminhada bastante cansativa, não fosse a beleza deslumbrante do cenário. Já teriam sido suficientes o Sena e os barcos que navegam sobre ele, a avenida que o circunda, suas árvores e suas esculturas, mas também passei pelos museus do Louvre e Orsay, a catedral de Notre Dame e muitas outras belíssimas construções de que agora não me lembro. Havia beleza em todas as direções. Me convenci naquele momento de que Paris devia ser a cidade mais bonita do mundo. (Mais tarde descobri que partilham dessa opinião muitos conhecidos bem mais experientes em viagens internacionais.)


De longe comecei a ver, enfim, o topo da torre. Quando me aproximei dela, contudo, algumas máculas começaram a aparecer naquele cenário deslumbrante. A primeira coisa que vi foi uma jovem refugiada da Bósnia, que veio me pedir esmolas por meio de um bilhete velho escrito em inglês. Dei-lhe mais dinheiro que a qualquer outro pedinte que já encontrei, na França ou no Brasil. Embora eu não tenha tido de pedir dinheiro a ninguém naquelas minhas poucas semanas como estrangeiro, dependi da boa vontade de pessoas desconhecidas para muitas coisas, e isso bastou para que eu compreendesse que, se mendigar é péssimo, mendigar no país dos outros é muito pior. Por causa dessa viagem, pude sentir com maior clareza e intensidade a benevolência contida na Lei dada por Moisés aos hebreus, quando disse: "Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito" (Deuteronômio 10.19). A segunda coisa que vi ao me aproximar da torre foi um cartaz. Não pude compreender a mensagem toda, mas eu conhecia palavras francesas em quantidade suficiente para entender que se tratava de um alerta aos turistas para que tomassem cuidado com os batedores de carteiras. Era uma prova de que a tranquilidade paradisíaca de Toulon ficara mesmo a centenas de quilômetros de distância. E a terceira coisa que vi eliminou de vez qualquer possibilidade de dúvida quanto a esse ponto: um grupo de policiais passou por mim conduzindo um jovem algemado.


Cheguei à torre e parei com um suspiro de desânimo. Conforme já relatei, havíamos combinado um encontro bem embaixo dela. Eu havia imaginado ingenuamente que chegaria ao local e encontraria minhas duas companheiras de turismo calmamente sentadas num banquinho, acenando para mim; eu iria até lá e tudo estaria resolvido. Mas o que encontrei foi uma multidão de pelo menos duas mil pessoas, andando para todos os lados, ou enfrentando filas gigantescas que davam acesso aos elevadores da torre, ou ainda entrando e saindo das lojas que vendiam cartões postais, miniaturas da torre, chaveiros e outras bugigangas do tipo. Não havia meios de encontrar a Marcia e a Régine naquela multidão, a não ser me enfiando no meio dela. E foi o que fiz: andei por todos os cantos, inspecionei todas as filas, entrei em todas as lojas, várias vezes. No começo, estava achando tudo isso divertido. Afinal, havia mesmo coisas interessantes para se ver: os souvenirs das lojas, a paisagem do Champ de Mars, a estrutura gigantesca e toda entrelaçada da própria torre vista de baixo, e mesmo as pessoas: a diversidade de rostos, roupas e idiomas constituía por si mesma um espetáculo.


Tudo isso, porém, começou a me cansar depois de um tempo, pois eu havia viajado e caminhado bastante, e estava agora faminto, com as mãos e os ombros doloridos por causa da mala e já começando a pensar no que faria se as duas não aparecessem. Toulon era um lugar bem mais acolhedor que Paris, e eu sequer tinha o endereço do hotel em que a Marcia havia feito as reservas para nós. Após meia hora de procura, desisti de andar e decidi ficar parado perto de uma das lojas - que ficava alguns degraus acima do restante do terreno - e ficar observando dali a multidão.


Ao depositar a mala no chão, apertada entre meus pés (eu não me esquecera do cartaz que alertava sobre os ladrões), olhei para o aglomerado de pessoas e vi, no primeiro ponto em que pousei os olhos, a Marcia apontando uma câmera fotográfica para mim; a Régine estava ao seu lado. Sorri, feliz por encontrar pessoas queridas naquela cidade de rostos estranhos, e aliviado por estar agora na companhia de alguém que sabia se virar naquele lugar. Enquanto elas vinham em minha direção, ainda pensei: "mas será que elas estão me fotografando e rindo de mim há meia hora?". Felizmente, elas garantiram que haviam acabado de chegar.

5 de novembro de 2009

Reflexões nagelianas

Em contraste com este blog, em que costumam aparecer textos longos, detalhados e algo sisudos, no blog de meu amigo Gustavo Nagel predominam os pensamentos curtos, aforísticos e bem-humorados. Faz tempo que tenho vontade de me aventurar um pouco nesse ramo, apenas para fugir momentaneamente da rotina. Inspirado pelo exemplo de meu amigo, comecei, portanto, a escrever algumas coisas que me passavam pela cabeça, e agora as publico, devidamente divididas por temas. Nem todas são aforísticas ou bem-humoradas, mas ao menos são curtas.

Ciência

Quando dizemos que a ciência moderna só pôde surgir graças à cosmovisão teísta e cristã, alguns materialistas pensam que com isso estamos tentando justificar e preservar o cristianismo. Porém, o que estamos tentando fazer é justificar e preservar a ciência.

Um dos efeitos mais palpáveis de meu envolvimento pessoal em atividades de pesquisa científica foi a perda da confiança, compartilhada por tanta gente hoje em dia, na autoridade da ciência e dos cientistas.

César Lattes, o maior físico que o Brasil já teve, o que por duas vezes chegou perto de ganhar o Nobel, nunca fez pós-graduação e achava que tal empreendimento era perda de tempo. Deve ter sido, pois, a título de insulto, e não de homenagem, que deram seu nome à plataforma nacional de currículos acadêmicos.

Saber das coisas é ótimo, mas o ato de aprender é demasiado árduo e desagradável. Felizmente temos no MEC pessoas que sabem disso e fazem de tudo para nos proteger de semelhante experiência.

Irreligião

Em entrevista à Veja, o matemático anticristão John Allen Paulos afirmou que o fato de grandes matemáticos terem sido cristãos nada diz em favor da religião. O Gustavo replicou (num dos posts excluídos junto com seu antigo blog, creio eu) que "prova apenas que só um atrasado mental para opor uma coisa à outra". Eu concordo, mas vou além. Quem foi que disse que a religião precisa do aval da matemática? Na verdade, tal fato nada prova em favor da religião; mas talvez prove alguma coisa em favor da matemática.

Muita tinta é gasta pelos céticos quando eles tentam esclarecer para si mesmos as razões pelas quais seus argumentos antirreligiosos, que a eles próprios parecem irresistivelmente convincentes, não surtem o efeito desejado na conversão dos crentes ao seu "descredo". Quase todas as teorias propostas começam tecendo considerações sobre a falta de humildade das pessoas que invariavelmente aderem a sistemas de crenças que concedem importância cósmica às suas existências. E quase todas terminam com louvores indisfarçados aos que têm coragem de abrir mão de tais pretensões. Eis o ponto mais próximo a que esses senhores são capazes de chegar da verdadeira humildade.

Por mais que os ateus militantes gostem de fazer fama como mártires da razão perseguidos pelas forças tenebrosas do obscurantismo, não sou nem um pouco favorável a qualquer esforço de calá-los. Não só por causa da tal liberdade de expressão, mas também por uma questão estratégica. Um exemplo concreto deixará claro o que quero dizer: sou favorável à prisão de Dawkins, mas não para que ele se cale. Ele deveria ser enjaulado e levado numa viagem por todo o mundo, tendo a oportunidade de pregar contra a religião em cada pequeno povoado, com direito a tradução simultânea. Com base em minha própria experiência, creio que bem poucos gostariam de renegar a fé ou permanecer na descrença uma vez que vissem diante de si o próprio resultado encarnado dessas atitudes.

Não é verdade que não respeito escritores não-cristãos. Em média, respeito-os tanto mais quanto menos escrevam sobre o cristianismo.

Percepções gerais sobre a vida

Fazer fofoca nada mais é que confessar os pecados dos outros.

O problema da filosofia, da literatura, da música e do cristianismo é um e o mesmo: seus elementos menos dignos recebem muito mais publicidade que os melhores. Karl Marx, Paulo Coelho, Engenheiros do Hawaii e Bento XVI se equivalem perfeitamente na medida em que prestam aos seus respectivos campos de atuação o mesmo péssimo serviço.

Eu tinha cerca de cinco anos quando ouvi falar pela primeira vez na doutrina bíblica da eleição incondicional. Explicaram-me (não com essas palavras, creio) que Deus escolhera de antemão aqueles que seriam salvos e preordenara todos os eventos que levariam a isso, com base em critérios em nada relacionados aos méritos dos seres humanos. Ao ouvir a explicação, entendi imediatamente a razão pela qual a eleição era incondicional, mas não entendi por qual motivo um termo eleitoral deveria ser aplicado a esse caso. Na tentativa de compreender isso, logo imaginei as três pessoas da santíssima Trindade reunidas em torno de uma mesa, antes da fundação do mundo, examinando uma extensa lista de nomes e literalmente votando pela salvação ou não de cada um. "E se não houver votos brancos e nulos", pensei com satisfação, "não poderá haver empate".

O Chantilly, um dos gatos da minha namorada, adora perseguir sombras e tentar mordê-las. Quando tentamos brincar com ele agitando as mãos ou algum objeto, ele frequentemente ignora tudo isso e concentra sua atenção na sombra correspondente, que se agita no chão ou na parede. É o oposto exato da alegoria da caverna: um felino perfeitamente antiplatônico.

Poucas experiências nos alertam de maneira tão eficaz sobre a fragilidade humana quanto o ato de engasgar com a própria respiração.

Catolicismo

No centro de minha cidade há um prédio que já deve ter abrigado alguma instituição católica, a qual posteriormente cedeu lugar a um hotel. Está ainda pregado na porta um cartaz dos velhos tempos, ao qual os novos proprietários simplesmente juntaram um segundo. No primeiro se vê uma gravura da Virgem Maria com os dizeres: "O caminho da fé". E o segundo acrescenta: "Pague com Visa Electron".

Ao ver seu vizinho católico ajoelhando-se diante de uma estátua, o protestante comum, apegado à simplicidade de sua fé, percebe imediatamente que catolicismo é idolatria - algo de que nós, protestantes metidos a intelectuais, às vezes chegamos a desconfiar depois de ler uns oitenta livros.

O Gustavo acha, conforme declarou aqui, que "o maior argumento contra o protestantismo talvez seja o fato de a Igreja ter subsistido 1500 anos sem ele". Eu concordo plenamente. Mas, ao passo que ele considera essa uma excelente razão para deixar de ser protestante, eu considero que a falta de argumentos melhores é um ótimo motivo para continuar a sê-lo.

Esquerdices

É curioso como aquelas mesmas pessoas que desprezam revistas como Veja, Época ou IstoÉ por seu sensacionalismo, suas fofocas ou seu direitismo tomam-nas como autoridade final e inerrante quando algo é publicado ali sobre o criacionismo, o aborto, o movimento gay, o cristianismo ou a Bíblia.

Em termos econômicos, o problema do socialismo é que, revoltados com a discrepância entre a condição de vida dos ricos e a dos pobres, seus defensores acabam apoiando planos de sociedade que levam todo mundo à miséria. Estatisticamente, o problema é que ele toma como provado o estranho teorema de que a diminuição do desvio padrão leva automaticamente à elevação da média.

Pessoas que, como Einstein, pensam que um governo mundial seria a única solução contra a opressão de algumas nações por outras parecem jamais pensar em se precaver contra a possibilidade de o próprio governo mundial oprimi-las todas.

Em sua ânsia tipicamente esquerdista de se opor a todas as "opressivas" regras, uma ardorosa militante feminista americana passou a escrever seu nome sem iniciais maiúsculas. A fim de transgredir a gramática, portanto, ela assina seus trabalhos como "bell hooks". Nada poderia ser mais apropriado para uma ideologia que despreza a personalidade e coisifica as pessoas. Diz o velho clichê que a sociedade sempre tratou a mulher como um objeto. Pois na nova sociedade as próprias mulheres tratarão a si mesmas, não como um objeto, e sim como vários deles. E agirão assim segundo o exemplo dessa que trata a si própria como um sino e um punhado de ganchos.

Filósofos

Leon Trotsky é até hoje venerado por boa parte dos socialistas que conheço não só por seus dotes intelectuais, mas também por ter se oposto a Stálin e morrido com uma picaretada na cabeça. Quanto a mim, embora condene a iniciativa de seu velho inimigo, não posso solidarizar-me com os que consideram sua partida deste mundo uma grande perda. Até onde posso ver, não havia na cabeça dele nada que fizesse valer a pena o esforço de abri-la de maneira tão violenta.

Tenho a impressão de que a filosofia de Nietzsche não é muito mais que uma racionalização literariamente talentosíssima das sensações viscerais despertadas no autor de maneira imediata por um contato apenas superficial com os objetos de sua análise. Ao contrário do que se costuma esperar de um filósofo, o órgão mais diretamente envolvido em sua atividade intelectual não é o cérebro, e sim o estômago. Não há sentido, portanto, em atribuir a Nietzsche o epíteto de "grande filósofo" com base nos textos que escreveu, a menos que se atribua o mesmo título a Pelé, em reconhecimento aos dribles e gols que fez.

Voltaire não era um filósofo, e não era sequer um intelectual no sentido legítimo dessa palavra. Era apenas um comediante; ou, se preferirem, um palhaço, no sentido não-pejorativo do termo. Mas, ao levar a sério demais suas próprias piadas, tornou-se um palhaço no sentido pejorativo.

Pretendo escrever, algum dia, um conto que narre o duelo verbal de dois reducionistas irredutíveis: de um lado, um revolucionário marxista que considera todos os desejos humanos como resultados dialeticamente determinados pela luta de classes; do outro, um psicanalista freudiano convicto de que o ímpeto de transformar o mundo é mero subproduto de desejos sexuais inconscientes e reprimidos.