30 de novembro de 2010

Sobre o recente protesto contra a Universidade Presbiteriana Mackenzie

Em protesto ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), publicado desde 2007 no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie contra o PL 122/2006 (conhecido como “lei anti-homofobia”), um grupo de ativistas organizou uma manifestação no dia 24 de novembro de 2010, por volta das 18h, em frente à universidade. Com previsão de mais de três mil participantes, o evento contou somente com cerca de 400, que se postaram diante dos portões da instituição, na Rua Itambé. Em seguida, o grupo deslocou-se do Mackenzie para a Avenida Paulista com um número já bastante reduzido, conforme anunciado por diversos veículos de comunicação como a Globo News, a Folha de São Paulo, a CET, o site da UOL e dezenas de outros sites informativos. Na universidade, as aulas transcorreram normalmente.

A oposição da IPB ao projeto de lei se baseia não só no senso comum e em análises jurídicas especializadas (que consideraram o projeto “inconstitucional”), mas sobretudo nos princípios cristãos que norteiam tanto a denominação quanto o Mackenzie. Não há novidade nisso: quando se matriculam na instituição, os alunos assinam o contrato de serviços educacionais, em que há uma cláusula explicando esse caráter confessional. Isso não significa perseguição a quem não subscreve essas bases cristãs, muito pelo contrário: não há registro na história da universidade de casos de discriminação de qualquer tipo, seja contra alunos homossexuais, seja contra alunos que professam outras religiões, ou nenhuma. Todos têm acesso aos mesmos benefícios, como bolsas de estudo.

No entanto, desde o momento em que a publicação do texto da IPB no site do Mackenzie foi “descoberta” pelos ativistas neste ano, a igreja, a universidade e a pessoa de seu Chanceler têm sido duramente atacados e acusados de “homofobia”. Filmados em vídeo, os manifestantes pediam a demissão do Chanceler, cuja foto foi estampada em diversos sites homossexuais acompanhada de palavras de ódio. A virulência que caracterizou essas expressões de indignação, mesmo antes da aprovação do projeto, confirma o quanto é perigoso que a sociedade se veja refém de uma minoria militante, que procura impor seus pontos de vista por meio de pressão e difamação, não admitindo que pessoas, igrejas e organizações cristãs simplesmente afirmem ser a conduta homossexual um pecado.

Para detalhar melhor sua postura bíblica — que se fundamenta no amor, não no separatismo, e prega o respeito a todos —, cristãos que partilham da mesma visão sobre o homossexualismo se uniram para elaborar o manifesto “Universidade Mackenzie: Em Defesa da Liberdade de Expressão Religiosa”. O texto foi reproduzido em cerca de oito mil sites cristãos e conservadores, recebendo mais de 36mil citações na internet. Traduzido para idiomas como alemão, espanhol, francês, holandês e inglês, foi postado em sites de diversos países estrangeiros, como Estados Unidos, França, Alemanha e Portugal. Centenas de manifestações de solidariedade à postura do Mackenzie foram veiculadas em diversos meios, inclusive no conhecido blog de Reinaldo Azevedo (articulista da revista Veja), um dos comentaristas políticos mais lidos e respeitados do país. Respondendo às acusações de “homofobia” com argumentos sólidos e bíblicos, os cristãos creem que sua postura contribuiu para que a manifestação de repúdio ao documento da IPB tenha recebido tão pouca adesão do público.

Nós, cristãos, estamos alegres e gratos por todo o apoio recebido e pelas orações do povo de Deus em favor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de seu Chanceler, o Rev. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Instamos o povo de Deus a que se una também em súplicas e intercessões para que o Deus todo-poderoso derrame seu Espírito Santo sobre a igreja evangélica neste país. Necessitamos com urgência de um avivamento, de forma que o Cristo crucificado seja exaltado, os crentes sejam santificados, a Escritura Sagrada seja pregada com liberdade, pecadores se convertam e nosso país seja transformado, para a glória do Deus trino da graça.

Este pronunciamento é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

19 de novembro de 2010

Universidade Mackenzie: em defesa da liberdade de expressão religiosa

A Universidade Presbiteriana Mackenzie vem recebendo ataques e críticas por um texto alegadamente “homofóbico” veiculado em seu site desde 2007. Nós, de várias denominações cristãs, vimos prestar solidariedade à instituição. Nós nos levantamos contra o uso indiscriminado do termo “homofobia”, que pretende aplicar-se tanto a assassinos, agressores e discriminadores de homossexuais quanto a líderes religiosos cristãos que, à luz da Escritura Sagrada, consideram a homossexualidade um pecado. Ora, nossa liberdade de consciência e de expressão não nos pode ser negada, nem confundida com violência. Consideramos que mencionar pecados para chamar os homens a um arrependimento voluntário é parte integrante do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nenhum discurso de ódio pode se calcar na pregação do amor e da graça de Deus.

Como cristãos, temos o mandato bíblico de oferecer o Evangelho da salvação a todas as pessoas. Jesus Cristo morreu para salvar e reconciliar o ser humano com Deus. Cremos, de acordo com as Escrituras, que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Somos pecadores, todos nós. Não existe uma divisão entre “pecadores” e “não-pecadores”. A Bíblia apresenta longas listas de pecado e informa que sem o perdão de Deus o homem está perdido e condenado. Sabemos que são pecado: “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, rivalidades, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias” (Gálatas 5.19). Em sua interpretação tradicional e histórica, as Escrituras judaico-cristãs tratam da conduta homossexual como um pecado, como demonstram os textos de Levítico 18.22, 1Coríntios 6.9-10, Romanos 1.18-32, entre outros. Se queremos o arrependimento e a conversão do perdido, precisamos nomear também esse pecado. Não desejamos mudança de comportamento por força de lei, mas sim, a conversão do coração. E a conversão do coração não passa por pressão externa, mas pela ação graciosa e persuasiva do Espírito Santo de Deus, que, como ensinou o Senhor Jesus Cristo, convence “do pecado, da justiça e do juízo” (João 16.8).

Queremos assim nos certificar de que a eventual aprovação de leis chamadas anti-homofobia não nos impedirá de estender esse convite livremente a todos, um convite que também pode ser recusado. Não somos a favor de nenhum tipo de lei que proíba a conduta homossexual; da mesma forma, somos contrários a qualquer lei que atente contra um princípio caro à sociedade brasileira: a liberdade de consciência. A Constituição Federal (artigo 5º) assegura que “todos são iguais perante a lei”, “estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença” e “estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. Também nos opomos a qualquer força exterior – intimidação, ameaças, agressões verbais e físicas – que vise à mudança de mentalidades. Não aceitamos que a criminalização da opinião seja um instrumento válido para transformações sociais, pois, além de inconstitucional, fomenta uma indesejável onda de autoritarismo, ferindo as bases da democracia. Assim como não buscamos reprimir a conduta homossexual por esses meios coercivos, não queremos que os mesmos meios sejam utilizados para que deixemos de pregar o que cremos. Queremos manter nossa liberdade de anunciar o arrependimento e o perdão de Deus publicamente. Queremos sustentar nosso direito de abrir instituições de ensino confessionais, que reflitam a cosmovisão cristã. Queremos garantir que a comunidade religiosa possa exprimir-se sobre todos os assuntos importantes para a sociedade.

Manifestamos, portanto, nosso total apoio ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil publicado no ano de 2007 e reproduzido parcialmente, também em 2007, no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie, por seu chanceler, Reverendo Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Se ativistas homossexuais pretendem criminalizar a postura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, devem se preparar para confrontar igualmente a Igreja Presbiteriana do Brasil, as igrejas evangélicas de todo o país, a Igreja Católica Apostólica Romana, a Congregação Judaica do Brasil e, em última instância, censurar as próprias Escrituras judaico-cristãs. Indivíduos, grupos religiosos e instituições têm o direito garantido por lei de expressar sua confessionalidade e sua consciência sujeitas à Palavra de Deus. Postamo-nos firmemente para que essa liberdade não nos seja tirada.

Este manifesto é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

15 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 4

Nos posts anteriores critiquei as teses de Crampton do ponto de vista lógico e histórico, apontando a superficialidade com que lê seus antagonistas e também demonstrando a inconsistência dos argumentos com que pretende construir sua própria alternativa. Terminei o último post apontando como plausível a hipótese de que o autor deve elementos importantes de seu pensamento a uma fonte essencialmente antibíblica. Contudo, não apontei nenhuma evidência positiva disso, e tampouco abordei a questão de um ponto de vista teológico. É o que pretendo fazer nesta última postagem.

Como vimos, boa parte do argumento de Crampton consiste em apontar semelhanças entre as declarações de seus antagonistas conservadores e as de teólogos neo-ortodoxos. Sendo assim, ele não poderá reclamar se eu adotar o mesmo procedimento e disser com o que se parecem seus louvores à razão. Parecem-se com os de todos os descendentes do cartesianismo e do iluminismo, incluindo-se aí os racionalistas do século XVII, os enciclopedistas do XVIII, os positivistas e teólogos liberais do XIX, os materialistas darwinistas, comunistas e outros cientificistas do século XX. Se Voltaire, Marx, T. H. Huxley, Kardec, Lênin, Russell, Bultmann, Sagan ou Dawkins lessem a Confissão de Fé de Westminster e o artigo de Crampton, sem dúvida veriam nesse contraste uma evidência do "progresso" do calvinismo ao longo dos séculos em direção às luzes da razão. Todos eles repeliam (ou repelem) horrorizados a mera ideia de que algo na realidade pudesse exceder os limites de nossa razão, pondo-se logo a tecer considerações alarmadas sobre os perigos do "irracionalismo".


Não é meu desejo, de forma alguma, tomar partido num debate entre racionalistas e irracionalistas. Inclusive tenho um
post, que recomendo aos interessados nessa pendenga, no qual acuso ambos de serem farinha do mesmo saco. Já li racionalistas cientificistas e também já li irracionalistas pós-modernos, e é em parte por isso que sei que ambos são igualmente perniciosos, e que não se pode evitar um pecado caindo em outro. Crampton, porém, não sabe disso, e acabou por cair no mesmo dualismo que acomete o mundo: elegeu um dos erros como o vilão e se encaminhou para o erro oposto como se fosse o herói. E seu herói, concorde ele ou não com o nome que lhe dou, é o racionalismo. Trata-se, devo dizer, de um velho conhecido meu. Encontrei-o ainda na adolescência, e o Departamento de Física que frequentei por cinco anos em nada me incentivou a abandoná-lo. O racionalismo foi a minha tentação intelectual até os vinte anos, e é por isso que conheço de perto, de dentro, o perigo espiritual que ele representa. E é também por isso que não pude ficar em silêncio ao me deparar com um racionalismo com roupagens de teologia calvinista conservadora.

Como argumento contra a associação feita por Crampton entre calvinistas e neo-ortodoxos, citar semelhanças entre as concepções do autor e as de eminentes pensadores racionalistas, dentro ou fora da igreja, é resposta suficiente. Mas é preciso ir além e demonstrar que minha associação não é falaciosa como a dele. Para isso, nada melhor que explorar os efeitos dessa mentalidade no próprio texto de Crampton. Na última página, antes de apresentar sua conclusão, o autor enumera os
"três obstáculos insuperáveis" propostos por Robert Reymond para quem sustenta a existência de paradoxos lógicos nas Escrituras. O primeiro é o da suposta subjetividade da afirmação dos paradoxos, obstáculo que já superei no primeiro post. Os outros dois estão intimamente ligados e são bastante reveladores.

Segundo o autor, o problema com a afirmação de que as contradições bíblicas são apenas aparentes é que
"se nenhuma quantidade de estudo ou reflexão pode remover a contradição, não há meios disponíveis para distinguir essa contradição 'aparente' de uma contradição real". Crampton pergunta: "Como, então, o homem sabe se está abraçando uma contradição real (a qual, se encontrada na Bíblia [...], reduziria a Escritura ao mesmo nível do contraditório Alcorão do islamismo) ou uma contradição aparente?" Esse foi o segundo obstáculo. O terceiro trata da afirmação de que a verdade pode estar em declarações mutuamente irreconciliáveis. Quem crê nisso "abandonou toda possibilidade de detectar uma falsidade real". Qualquer coisa que contradiga algum ensino das Escrituras poderia ser aceita como apenas mais uma contradição aparente. Nesse caso, Crampton conclui, "a exclusividade do cristianismo como a única religião verdadeira revelada morrerá a morte de milhares de qualificações".

Tenho várias coisas a dizer sobre esse argumento bicéfalo. A primeira é que todas as razões levantadas contra a ideia da contradição aparente apenas desenvolvem suas supostas consequências, mas de modo algum tornam implausível sua realidade. Para ilustrar o que digo, retomarei o exemplo da conciliação entre a predestinação e a liberdade humana. Suponhamos que haja uma solução racionalmente impecável para o impasse, e que o homem mais inteligente e bem preparado que já houve ou haverá pudesse chegar a ela se a perseguisse com todas as forças durante mil anos. Nesse caso, é claro que todos os esforços dariam em nada. Isso mostra que Crampton tem razão ao dizer que, na prática, não é possível distinguir logicamente uma contradição real de uma aparente, e é por isso mesmo que não fiz nenhuma tentativa nesse sentido. Mas também mostra que não há nada de inverossímil na suposição de que algumas verdades podem ser, na prática, inapreensíveis pela razão humana, ainda que não o sejam em teoria. Por isso, para defender a existência de mistérios, não é necessário negar que a coerência lógica seja um atributo divino, nem afirmar que
"nenhuma quantidade de estudo ou reflexão pode remover a contradição". Talvez alguma quantidade seja suficiente, mas não praticável para nós. E Crampton não levantou uma única objeção válida a essa possibilidade.

Deve ser observado que, também nesse contexto, a predição do fim apocalíptico da teologia bíblica não se justifica. Ao aceitar a existência de mistérios nas Escrituras, Calvino, os teólogos de Westminster e os citados por Crampton não pretendiam promover - e não promoveram - uma debandada geral dos domínios da razão. Ao contrário, a asseveração de um mistério só é aceita depois de completado o árduo trabalho da exegese bíblica, no qual, sem dúvida, a razão toma parte, assistida pelo Espírito Santo. Para afirmar que a dupla natureza de Cristo é um mistério, foi necessário ler atentamente a Bíblia e constatar que tanto a divindade quanto a humanidade de Cristo são ali claramente ensinadas, e então constatar os impasses a que isso leva. Da mesma forma, a doutrina da Trindade foi inferida a partir da constatação exegética de que o Pai, o Filho e o Espírito são distintos entre si, que cada um deles é Deus e que só há um Deus. É depois de constatados os fatos, e não antes, que alguém pode tentar explicar o que vê nas Escrituras e, não conseguindo, declarar que o assunto é um mistério. É assim que, contrariando os medos de Crampton, a razão sempre teve seu papel assegurado, sem exageros, na tradição reformada.


Aliás, o medo do colapso da racionalidade face ao mistério é um dos vários pontos que Crampton e os racionalistas seculares têm em comum. Um dos principais motivos que levam os cientificistas a rejeitar
a priori o design inteligente, por exemplo, é claramente análogo: eles temem que, com a admissão da insuficiência das leis naturais, todos os cientistas do mundo interrompam suas pesquisas e experimentos e passem a atribuir todos os eventos a alguma inescrutável inteligência superior. Trata-se de um absurdo, evidentemente, mas o poder paralisante que o medo exerce sobre a razão não diminui em nada quando o apavorado em questão é um racionalista.

O medo, na verdade, nos levará diretamente ao coração do problema. O maior medo de Crampton é que a abdicação da razão destrua o próprio fundamento da superioridade da fé bíblica. Ao admitir que há na doutrina cristã fatos que nossa razão não pode abarcar, perderemos o direito de apontar para as contradições de outros sistemas religiosos como provas de sua falsidade. Sem esse que é o grande argumento de muitos apologetas - a Bíblia não se contradiz, mas todo o resto sim - resta apenas um relativismo e uma equivalência de todas as religiões, e perdemos a própria justificativa para sermos cristãos.


Minha experiência pessoal não corresponde a nada disso. Tornei-me cristão porque Deus me regenerou, tirou meu coração de pedra e me deu um coração de carne, aplicou a mim o valor expiatório da obra de Cristo, capacitou-me a desejar a reconciliação com Deus e a ter fé em Cristo como único mediador da nova aliança. E continuo a ser cristão porque Deus tem levado minha fé a perseverar, de modo a completar a obra iniciada, conforme sua promessa, e porque o Espírito Santo testifica com meu espírito que sou filho de Deus e abre meus olhos para a compreensão das verdades reveladas nas Escrituras. O caso de Crampton, ao que parece, é bem diferente do meu: ele se tornou cristão porque o Espírito deu satisfações impecáveis à sua razão, a qual então se dobrou diante da evidência. E só continuará a ser cristão até o dia em que sua razão, como árbitro soberano, detectar na Bíblia alguma contradição (real ou aparente, pois ambas são indistinguíveis) e o Espírito não for capaz de lhe dar uma explicação convincente para tamanho disparate.


No parágrafo anterior, descrevi minha experiência com Deus em termos calvinistas e bíblicos não apenas porque tais termos de fato descrevem com perfeição o cerne dessa experiência, mas também para evidenciar o contraste com as declarações de Crampton sobre os motivos pelos quais se deve ser cristão. O grande problema com o racionalismo, teológico ou não, está bem ilustrado aqui: o autor não mais descreve a razão de sua esperança com base na experiência concreta da graça de Deus, e sim a partir da robustez do esquema teórico e racional que foi capaz de erigir. É esse o resultado natural da crença no domínio absoluto da razão: o olhar desviado de Cristo e sua misericórdia para questões secundárias.


O terceiro perigo também decorre do medo, e também está exposto acima: a suposta vulnerabilidade da doutrina cristã frente a doutrinas concorrentes como resultado da admissão de paradoxos na Bíblia. Quanto a isso, observo, em primeiro lugar, que a redução do valor de uma doutrina à coerência racional de suas construções teóricas é em si um critério bastante deficiente que só poderia mesmo brotar da cabeça de um racionalista. O valor de uma doutrina se mede também pelo tipo de homem que ela produz. E esse fato, dentre muitas outras coisas, torna perfeitamente possível comparar duas religiões (ou dois sistemas quaisquer), ainda que haja contradições (reais ou aparentes) em ambas. Mesmo a comparação racional é possível, no entanto, pois o tipo, o lugar e o efeito das inconsistências lógicas varia muito entre as diversas doutrinas. Acima de tudo, porém, é necessário ter em mente a doutrina bíblica e reformada da depravação total, da qual um dos corolários é que ninguém jamais se tornou ou se tornará cristão pela persuasão racional, e sim apenas pela operação regeneradora do Espírito nos corações.


A propósito, é inconcebível para mim que um teólogo reformado se aventure a discorrer sobre o assunto da justificação racional da fé bíblica sem tocar no tema importantíssimo do papel do pecado enquanto obscurecedor da inteligência humana, especialmente em assuntos diretamente relacionados a Deus e à salvação, que é uma das ênfases primordiais da doutrina reformada sobre a cognoscibilidade de Deus. Crampton, no entanto, faz justamente isso. Se sua argumentação já é deficiente frente à constatação da finitude humana em contraste com a infinitude divina, torna-se ainda mais reprovável quando lembramos que essa finitude está corrompida pelo pecado e que, como nos lembra Calvino nas
Institutas, ninguém pode obter um conhecimento autêntico de Deus ou das Escrituras sem a iluminação do Espírito de Deus e sem a santificação correspondente. Esse é mais um exemplo das ênfases erradas a que o racionalismo leva.

Termino aqui esta série sobre o artigo de Crampton e sobre o racionalismo pseudocalvinista ali exposto. Se eu fosse um incrédulo racionalista insatisfeito e tivesse meu primeiro contato com o calvinismo através de Crampton, provavelmente teria me aborrecido e repelido de imediato a fé reformada, desanimado com a perspectiva de trocar um racionalismo secular por um religioso. Felizmente conheci a doutrina reformada por outros meios, e graças a isso posso avaliar a extensão do desserviço prestado pelo autor (e por quantos porventura pensem como ele) à doutrina bíblica. Esse procedimento incentiva os crentes a depositar sua confiança na própria razão, e não na obra consumada de Cristo; e a buscar segurança na coerência racional, e não nas promessas de Cristo. Talvez seja por isso mesmo que Deus não nos deu respostas exaustivas, quer nas Escrituras, quer na revelação geral: Ele não deseja que nos recusemos a reconhecer nossas limitações também nessa área, e muito menos que lhe imponhamos condições para permanecer firmes na adoração bíblica, ao invés de humildemente solicitar sua graça para permanecermos. De modo que devemos aceitar de Cristo o que quer que Ele deseje nos dar, sejam explicações racionais, sejam indícios a partir dos quais podemos chegar a respostas logicamente válidas, sejam mistérios nos quais só podemos crer.


De qualquer modo, estou feliz e grato a Deus porque ele me curou do racionalismo que outrora foi parte de mim. Meu desejo é que outros cristãos reformados também venham a perceber que há alguns mistérios entre os céus e a terra, apesar do que sonha a vã filosofia de W. Gary Crampton.


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Adendo: Não deixem de ler o texto da Norma, minha esposa, sobre um tema relacionado a este, envolvendo Calvino e Chesterton, nem o posicionamento do pastor Augustus Nicodemus Lopes, um dos maiores teólogos calvinistas do país. No mesmo post, aliás, há um extenso e muito esclarecedor comentário do pastor Hermisten Maia, grande estudioso de Calvino, acerca das posições do reformador sobre o assunto. Os trechos que citei de Calvino na terceira parte estão todos ali, embora não necessariamente na mesma tradução.

6 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 3

Demonstrei no primeiro post desta série que o pensamento de W. Gary Crampton no que diz respeito às potencialidades da mente humana para a compreensão dos assuntos divinos não encontra apoio entre os puritanos que redigiram a Confissão de Fé de Westminster, ao contrário do que pensa o próprio. E terminei a segunda postagem mostrando que esse fato bastaria para lançar por terra sua acusação de que declarações do mesmo teor feitas por eminentes teólogos calvinistas conservadores do século XX se devem à influência da neo-ortodoxia. Mas, antes de passar ao próximo ponto, não devo perder a oportunidade de fazer um trabalho um pouco melhor e mostrar o que tinha a dizer a respeito o próprio João Calvino, um sujeito cujas opiniões, por motivos óbvios, devem ser levadas em conta quando o assunto é o calvinismo. Seja notado que a primeira sentença do trecho a seguir, extraído do comentário sobre a Epístola aos Romanos composto pelo reformador, se parece muito com aquelas declarações de teólogos reformados do século XX que Crampton cita no início de seu artigo: "Toda verdade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo prisma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que Ele prova ser destruição para os ímpios, em contrapartida Ele será sempre ressurreição para os fiéis." O trecho seguinte, retirado das Institutas, esclarece qual deve ser, na opinião de Calvino, a correta atitude diante de mistérios como o da predestinação, explicando também que a razão disso reside na limitação da mente humana:

"A primeira coisa é que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto do qual não pode sair. Porque não é justo que, daquilo em que o Senhor desejou que fosse oculto em si e acessível somente ao entendimento divino, o homem se meta a falar sem temor algum, nem que revolva e esquadrinhe desde a eternidade mesma a majestade e grandeza da sabedoria divina, que Ele quis que adorássemos, e não que a compreendêssemos, a fim de ser para nós dessa maneira admirável. [...] Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas coisas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, e a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura."

A essência do pensamento de Calvino em questões como o valor da lógica humana para os assuntos divinos e a ausência de paradoxos nas Escrituras foi muito bem resumida por Edward Dowey Jr. em The Knowledge of God in Calvin's Theology: "Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e compreensibilidade nos temas individuais da Bíblia, mas estava, também, tão submisso ante o mistério divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas inconsistências de lógica, ao invés de optar por um todo racionalmente coerente. [...] Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas interrelações - essa é a marca registrada da teologia de Calvino."

Espero que esteja claro que não transcrevo essas citações por julgar inadmissível que um calvinista discorde de Calvino. Eu mesmo discordo de vez em quando. Tudo o que pretendo mostrar aqui é que as declarações a respeito dos paradoxos lógicos nas Escrituras, que tanto escandalizam Crampton e os que pensam como ele, não devem nada à neo-ortodoxia, nem a nenhuma outra corrente moderna, e sim estão de acordo com o mais puro espírito do calvinismo, conforme manifestado desde seus primórdios. Quem quiser discordar de Calvino tem todo o direito de fazê-lo, desde que não atribua à própria posição um acordo com a tradição reformada que não existe.

Uma vez constatado que esse acordo não existe, resta comentar sob outros pontos de vista o desacordo que existe. Até aqui demonstrei a falsidade histórica das reivindicações de Crampton, mas há outros aspectos sob os quais seu posicionamento pode ser criticado. Um deles se encontra na última sentença do artigo, onde é dito que "qualquer tropeço nessa área conduzirá (no mínimo) a uma queda no absurdo neo-ortodoxo". Ele se refere, naturalmente, à admissão da existência de paradoxos lógicos na Bíblia. Mas, já que estamos falando de paradoxos lógicos, convém observar que essa declaração é negada por outra feita pelo próprio Crampton em outra parte do artigo. Depois de afirmar que essa admissão equivale a "sustentar, pelo menos implicitamente, uma visão muito baixa da infalível Palavra de Deus", ele se apressa em acrescentar: "Esse declaração não deve de forma alguma ser entendida como uma difamação contra o Dr. Palmer, o Dr. Packer e o Dr. Van Til, todos os quais sustentam uma visão elevada da inspiração bíblica". Se isso é verdade, só pode ser porque esses senhores não caíram no "absurdo neo-ortodoxo", que, como afirma o autor adiante, é o mínimo que pode acontecer a alguém disposto a admitir o que eles admitem. Essa contradição pode parecer de pouca importância, mas é na verdade um indício de um fenômeno muito relevante: entre os que atribuem uma importância excessiva à razão, não é nada raro constatar que a qualidade de seu raciocínio e a precisão de suas declarações não são exatamente o que seria de se esperar.

Na verdade, há uma falha lógica muito mais séria em toda a estrutura do artigo, a qual já foi indicada acima, mas convém explicitá-la e desenvolvê-la agora. Ela se encontra, uma vez mais, na própria associação entre a teologia neo-ortodoxa e a teologia conservadora dos antagonistas de Crampton acima citados. Como vimos, nenhum esforço foi feito no sentido de estabelecer uma relação de parentesco histórico entre as duas correntes. O autor espera nos convencer da influência daquela sobre esta apenas pela enumeração de semelhanças de conteúdo. Trata-se, sem dúvida, de um procedimento insuficiente. Mas Crampton vai além: visto que se dirige a calvinistas conservadores (que, como tais, são naturalmente antipáticos à neo-ortodoxia), está certo de que qualquer semelhança apontada será entendida como sintoma de que algo não vai bem em certos segmentos do mundo teológico reformado. Nisso reside o valor retórico de tudo quanto é dito no artigo acerca da neo-ortodoxia. Contudo, há razões pelas quais esse valor retórico não possui um valor lógico equivalente.

Antes que essas razões sejam expostas, é necessário compreender que estamos falando apenas do lado ofensivo do artigo, ou seja, o lado que ataca a posição do oponente, e não do que defende a legitimidade de sua própria posição. É importante, contudo, que prestemos alguma atenção ao que é dito num sentido mais positivo e propositivo. A essência da tese de Crampton, que é agostiniana e que ele parece ter assimilado via Clark, é que "a lógica é um atributo do próprio Deus", uma ideia que ele abstrai de versículos bíblicos que associam Deus e Cristo à verdade, à sabedoria e ao conhecimento, além de recorrer pela terceira vez à malfadada tentativa de provar seu argumento por meio de 1 Coríntios 14.22 (o versículo sobre o "Deus de confusão", que ele cita três vezes ao todo, sempre no mesmo sentido equivocado). Contudo, nenhum desses textos fala explicitamente da razão, e muito menos da lógica. É natural esperar que o componente racional e lógico esteja incluído na verdade, sabedoria e conhecimento divinos, mas esses versículos não são de nenhuma ajuda quando a questão é saber se a lógica humana pode apreender integralmente os pensamentos divinos e as verdades espirituais mais profundas, ou mesmo se o aspecto lógico e racional está em primeiro plano na sabedoria divina e no conhecimento que podemos obter de Deus. Parece-me que a resposta é forçosamente negativa, pois considero essa ideia uma influência deletéria da filosofia grega sobre o pensamento cristão. E, aos que gostam de salientar que Cristo é o Logos, respondo que não nego que haja alguma semelhança com o conceito grego, mas considero convincente a tese exposta por F. F. Bruce em seu comentário ao Evangelho segundo João, de acordo com a qual o uso do termo grego naquela obra pode ser explicado inteiramente dentro do ambiente judaico, não sendo necessário supor que João reconhecesse (ou mesmo conhecesse) o conceito dos filósofos gregos ou fosse por eles influenciado. Seja como for, o fundamento proposto por Crampton para sua tese é absolutamente insuficiente.

Devo esclarecer que, embora eu não me oponha à ideia de que a coerência lógica seja um atributo divino, nem por isso concordo com Crampton quanto às consequências que ele extrai, quer da asseveração, quer da negação dessa tese. O que se vê aqui é o mesmo que já apontei no post anterior, a saber, a incapacidade de sequer conceber posições intermediárias. É o caso do comentário do autor sobre a discussão gerada por Isaías 55.3-9: que significa a declaração bíblica de que os pensamentos de Deus são mais altos que os nossos? Crampton critica a tese de que a passagem afirma uma total diferença entre a mente divina e a humana, e pensa com isso firmar como inevitável sua posição de que "a diferença entre os pensamentos de Deus e os pensamentos do homem é de grau, não de tipo". Mas por que seriam essas as únicas alternativas disponíveis? Por que os pensamentos de Deus não poderiam ter algo em comum com os nossos - o suficiente para tornar válidos muitos destes últimos - e ao mesmo tempo transcendê-los infinitamente em qualidade, e não apenas em grau?

Em suma, Crampton busca estabelecer sua posição como óbvia a partir da crítica de uma mera caricatura da posição alternativa. Some-se a isso a imensa superficialidade de sua exegese, e o resultado é uma absoluta insuficiência argumentativa na justificação de suas teses. Uma vez constatado esse fato, abre-se a possibilidade de que os elementos centrais de seu pensamento padeçam do mesmo defeito que ele supõe enxergar em seus antagonistas: a influência de alguma corrente de ideias que pouco ou nada tem de autenticamente cristã e bíblica. Explorarei melhor esse ponto no próximo post, que deverá também ser o último desta série.

3 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 2

Há duas coisas que eu poderia ter dito no post anterior e acabei me esquecendo, mas que ainda dá tempo de dizer, embora sejam meros detalhes. A primeira é a respeito do versículo citado por Crampton, que diz que Deus não é Deus de confusão - e portanto, segundo ele, não há paradoxos lógicos na Bíblia. Já demonstrei que se trata de uma péssima exegese. Faltou dizer que a primeira vez que vi essa passagem bíblica sendo usada fora de seu contexto foi numa brochura da Sociedade Torre de Vigia, a organização das testemunhas de Jeová, que o usava para atacar a doutrina da Trindade, sob a mesmíssima acusação de ser racionalmente incompreensível. Por aí se vê não só em que nível se situa a qualidade da exegese de Crampton, mas também que esse versículo parece ter um histórico de usos racionalistas indevidos. A segunda coisa é que o autor afirmou que a expressão "alto mistério", encontrada na Confissão de Fé de Westminster, significa apenas que é um assunto acerca do qual é difícil adquirir plena compreensão, mas não impossível. Contudo, ele não forneceu nenhum argumento para justificar essa conclusão, e isso basta para me convencer de que sua declaração se baseia tão somente em seus preconceitos teológicos. Dito isso, vamos em frente, analisando o restante do artigo.

Crampton prossegue defendendo a posição de Clark, segundo a qual
"depender de [...] paradoxos [...] destrói tanto a revelação como a teologia e nos deixa na completa ignorância". Ele cita declarações de teólogos da assim chamada neo-ortodoxia, como Karl Barth e Emil Brunner, para os quais as Escrituras necessariamente contêm inúmeras contradições porque Deus não pode se revelar de modo proposicional, e portanto a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus, e tampouco pode ser infalível. Segundo Crampton, a neo-ortodoxia proclama ainda que "a contradição é a marca registrada da verdade religiosa" e que o agnosticismo teológico é o resultado de tudo isso. A consequência, de acordo com o autor, é o divórcio entre a fé e a razão, o abandono da ideia agostiniana de que a lógica, por ser divinamente ordenada, deveria ser confiantemente usada pelo homem. Sem essa concepção, "o homem nunca poderia conhecer verdadeiramente coisa alguma", pois nenhuma proposição tem significado se não invalidar as proposições que a contradizem. Sem a lógica, diz ele, "No princípio criou Deus os céus e a terra" e "No princípio não criou Deus os céus e a terra" significam rigorosamente a mesma coisa.

Entre os criticados estão o filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd e toda a escola de Amsterdã, para os quais há
"um limite entre Deus, como Legislador, e o homem, como recipiente. As leis da lógica existem somente do lado humano do limite." E Crampton descreve as consequências dessa posição: "Se esse limite dooyeweerdiano realmente existe, Deus não pode revelar nada às suas criaturas e o homem não pode conhecer nada sobre Deus, incluindo a noção do limite". Um pouco adiante, o autor transcreve com satisfação as posições de Carl Henry, para quem "a insistência sobre um abismo lógico [...] não pode escapar de uma redução ao ceticismo" e "as questões que se levantam nos círculos ortodoxos sobre se a Bíblia contém paradoxo lógico, sobre o grande divórcio entre a lógica de Deus e a mera lógica humana, e assim por diante, são o resultado da epistemologia dialética da neo-ortodoxia".

Convém fazer uma pausa e tecer algumas observações antes de prosseguir com a exposição do arrazoado de Crampton. O mais importante a dizer é que tudo o que foi dito constitui uma mudança de assunto. É fácil notar que o argumento sobre a importância da validade da lógica, em especial do princípio da não-contradição, é apenas o velho argumento de Aristóteles contra os sofistas adaptado ao contexto e à linguagem da exegese bíblica reformada. E o argumento de Aristóteles foi bem empregado, pois ele estava lidando com céticos absolutos que não viam valor algum na lógica. Porém, o caso dos teólogos criticados por Crampton é evidentemente diverso. O ponto em discussão não é se podemos ou não ler na Bíblia que
"o Senhor é bom" e entender que Deus é mau. Quaisquer que sejam as razões que levam um teólogo reformado a defender a possibilidade da existência de paradoxos lógicos nas Escrituras (e pretendo mostrar algumas dessas razões adiante), elas não exigem que a lógica não valha nada, nem que toda afirmação bíblica possa ser substituída por seu contrário, e muito menos que fazer isso seja o objetivo de alguém. Nada disso vem ao caso, de modo que não se justificam as predições apocalípticas sobre o fim do conhecimento humano que abundam nesse artigo.

O uso do argumento aristotélico é equivocado, mas essa aplicação diz algo sobre o modo de raciocinar de Crampton, de modo que não devo perder a oportunidade de analisar um pouco melhor esse ponto. Se ele não percebe o que expliquei no parágrafo anterior e se apropria do argumento de Aristóteles sem pensar duas vezes, é porque considera sua situação diante de calvinistas como Palmer, Packer, Van Til e Dooyeweerd exatamente análoga à do estagirita diante dos céticos gregos. E pensa assim porque considera que só há duas posições possíveis diante da lógica: ou seu reino se estende incólume sobre todos os assuntos, inclusive os divinos, ou não vale absolutamente nada em domínio algum da realidade. Em outras palavras, Crampton padece daquela doença intelectual demasiado comum entre os modernos, a qual os torna incapazes de compreender qualquer coisa que não seja um "tudo" ou um "nada". Para eles não há exceções, restrições, ressalvas ou casos particulares, nem qualquer posicionamento intermediário entre a adesão entusiástica e a condenação irrestrita a algo. Essa insensibilidade às nuances é sempre algo triste de se ver.


(Já que toquei no assunto da filosofia, convém observar, de passagem, que o tratamento dado a Dooyeweerd foi bastante injusto. Eu mesmo não tenho muita simpatia pela ideia dooyeweerdiana do limite, mas a descrição que o autor faz dela é absolutamente caricatural. O argumento é bom contra Kant, mas não contra o holandês, assim como o argumento de Aristóteles era bom contra os sofistas de Atenas, mas não contra os teólogos calvinistas. Crampton visivelmente não tem grande talento filosófico e vive de fazer associações pueris e sem sentido.)


Isso nos leva a outro aspecto importante da argumentação de Crampton: essa insensibilidade tem como consequência direta a incapacidade de dissociar os teólogos reformados conservadores (ou ortodoxos, como os chama) dos neo-ortodoxos, que são a contraparte pós-moderna do liberalismo teológico racionalista clássico. Crampton sabe que os conservadores atribuem à Bíblia o status de infalível Palavra de Deus, que aceitam o caráter proposicional da revelação bíblica, de modo que não podem aceitar nenhuma forma de agnosticismo, e tampouco idolatram a contradição e o paradoxo como se fossem valiosos em si mesmos. Ainda assim, como vimos, ele atribui a aceitação do paradoxo nas Escrituras por parte desses teólogos a uma influência da
"epistemologia dialética da neo-ortodoxia". Convém que busquemos entender as raízes da plausibilidade de tal associação aos olhos do autor. Mas para isso precisamos fazer um breve retrospecto e analisar novamente, sob um novo ângulo, as declarações de Crampton a respeito da Confissão de Fé de Westminster feitas no início do artigo.

Agora que já foi denunciado o modo de raciocínio "tudo ou nada" de Crampton, podemos entender melhor a razão que o levou a olhar para a Confissão e ver seu próprio rosto ali refletido, a despeito do que esta realmente dizia. Ele inferiu que a doutrina bíblica da predestinação deveria ser totalmente abarcável pela mente humana a partir da recomendação de que ela
"deve ser tratada com especial prudência e cuidado" por homens que buscam "a vontade de Deus [como] revelada em sua Palavra". Para Crampton, em outras palavras, se a doutrina em questão foi revelada por Deus, e se podemos tratá-la com prudência e cuidado, deve ser porque ela é totalmente compreensível à mente humana. Agora estamos em condições de entender melhor esse non sequitur: segundo Crampton, se algo não é compreensível em sua totalidade, só pode ser porque toda afirmação é equivalente ao seu contrário e as leis da lógica não valem nada. Uma vez que sequer lhe passou pela cabeça a hipótese de que uma doutrina pode ser compreendida em parte, ou até certo ponto, mas não de todo, sua obtusidade o levou a inferir, segundo as leis de sua lógica particular, algo que não estava no texto da Confissão. Tampouco lhe ocorreu que a impossibilidade de se abarcar plenamente essa doutrina é justamente a razão que levou os autores da Confissão a recomendar "especial prudência e cuidado" com relação ao assunto.

A importância desse equívoco não pode ser menosprezada nesta altura da discussão, e é por isso que eu trouxe de volta o conteúdo da Confissão neste ponto. Pois a acusação de Crampton de que os teólogos conservadores devem sua aceitação do paradoxo à neo-ortodoxia requer, dentre outras coisas, um fundamento histórico. Crampton precisa sustentar que não havia indícios de tal coisa no meio reformado conservador antes do advento da teologia neo-ortodoxa. Assim, ele pode ocupar confortavelmente sua posição de defensor da autêntica tradição reformada contra as inovações heréticas do século XX. Porém, se for provado que era diverso do seu o espírito dos teólogos puritanos do século XVII, anteriores não só à neo-ortodoxia, mas até ao iluminismo e ao liberalismo teológico, suas afirmações perderão de imediato toda credibilidade, e ele aparecerá como o verdadeiro inovador. Nesse caso, teremos boa razão para sair em busca das fontes espúrias onde ele foi buscar sua própria inovação. Visto que indiquei no primeiro post, com base na Confissão, evidências de que a situação é exatamente essa, encarregar-me-ei dessa tarefa no próximo post, em meio a outras considerações.