26 de abril de 2011

Desamparo e entrega - parte 2

Terminei a primeira parte deste texto trazendo à atenção do leitor uma questão que precisa ser respondida: por que as Escrituras, os apóstolos e o próprio Cristo apresentam sua morte e ressurreição como parte essencial de sua missão entre os homens, predeterminada pelo Pai? A pergunta de Cristo na cruz quanto à causa de seu abandono é, dentre outras coisas, a do justo que sofre a injustiça nas mãos dos perversos, e é por isso mesmo que as palavras do salmo 22 se ajustaram tão bem àquela ocasião. Devemos agora prosseguir buscando o que é ensinado na Bíblia sobre o motivo subjacente a uma aparentemente tão grande inconsistência.

O Antigo Testamento, mais uma vez, oferece o substrato necessário à compreensão da vida de Jesus. Este disse aos discípulos, em Lucas 22.37, que sua morte iminente era o cumprimento de outra passagem profética: "Pois vos digo que importa que se cumpra em mim o que está escrito: 'Ele foi contado com os malfeitores'. Porque o que a mim se refere está sendo cumprido." A passagem citada encontra-se em Isaías 53.12, o versículo final de um trecho que começa em 52.13 e descreve os sofrimentos de um personagem identificado como "o servo" do Senhor. Cristo afirmou, portanto, que essa é mais uma referência profética a ele mesmo. O texto de Isaías afirma também a pureza de Cristo, que "foi oprimido e humilhado, mas não abriu a boca" (53.7) e "nunca fez injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca" (53.9). O texto descreve ainda, com brilho comparável ao dos salmos já citados, os sofrimentos de Cristo: "seu aspecto estava mui desfigurado, mais que o de outro qualquer" (52.14); "nós o reputávamos por aflito, ferido de Deus e oprimido" (53.4); "Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso" (53.3). Além disso, o texto menciona várias vezes, de modo muito explícito, a realidade da morte de Cristo: "como cordeiro foi levado ao matadouro" (53.7); "foi cortado da terra dos viventes" (53.8); "designaram-lhe sepultura com os perversos, mas com o rico esteve na sua morte" (53.9); "derramou a sua alma na morte" (53.12). Mas a passagem não deixa de mencionar a posterior exaltação de Cristo, que já foi exposta no post anterior: "será exaltado e elevado e será mui sublime" (52.13); "causará admiração às nações, e os reis fecharão a boca por causa dele" (52.13); "verá sua posteridade e prolongará os seus dias; e a vontade do Senhor prosperará nas suas mãos" (53.10); "Ele verá o fruto do penoso trabalho de sua alma e ficará satisfeito" (53.11); "Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os poderosos repartirá ele o despojo" (53.12). Devidamente analisada, essa passagem deixa clara a ressurreição de Cristo e a honra que recebeu do Pai após ter passado por sua morte humilhante, exatamente como está explicitado nas passagens já citadas do Novo Testamento. E o texto vai além, declarando precisamente aquilo que constitui a motivação principal desta postagem. Logo depois de asseverar a perfeita justiça de Cristo, Isaías afirma: "Todavia, ao Senhor agradou moê-lo" (53.10). É muito impressionante a maneira pela qual essa curta passagem profética sintetiza tudo o que foi dito até aqui.

Mas não citei todos esses trechos de Isaías 52 e 53 apenas para mostrar isso. O texto, na verdade, vai além, e revela, mais de uma vez, a motivação subjacente a tudo o que é descrito: "Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e as nossas dores levou sobre si" (53.4); "Mas ele foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados" (53.5); "o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos" (53.6); "por causa da transgressão do meu povo, foi ele ferido" (53.8); ele deu "a sua alma como oferta pelo pecado" (53.10); ele "justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará sobre si" (53.11); ele "levou sobre si os pecados de muitos" (53.12). A clareza e a abundância dessas afirmações são inequívocas: Cristo sofreu a punição por pecados que não eram os dele.

A teologia cristã deu a isso o nome de "expiação vicária", e aponta para ela como o meio pelo qual somos reconciliados com Deus. O próprio Cristo, mais uma vez, declarou que esse era o objetivo de sua missão: "Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Marcos 10.45). Como mostrei no meu velho texto Agnus Dei, a mesma ideia está claramente implicada na simples declaração de João Batista ao se encontrar com Jesus pela primeira vez: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1.28), pois a função do cordeiro na lei cerimonial judaica era precisamente a de ser morto em lugar do pecador, prefigurando assim a então futura obra do Salvador. Paulo se apropriou desse paralelo ao dizer que "Cristo, nosso cordeiro pascal, foi imolado" (1 Coríntios 5.7), e expressou o mesmo conteúdo ao declarar que "nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho" (Romanos 5.10). Também o fez João em sua epístola, ao aplicar a Cristo um termo técnico do ritual judaico, a propiciação: "Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados" (1 João 4.10). Mas quem mais aprofundou as implicações dessa analogia foi o autor da Epístola aos Hebreus, especialmente ao discorrer sobre o ofício sacerdotal de Cristo em contraste com o dos antigos sacerdotes (9.11-15): "Quando, porém, veio Cristo como sumo sacerdote dos bens já realizados, mediante o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação, não por meio de sangue de bodes e bezerros, mas pelo seu próprio sangue, entrou no Santo dos Santos, uma vez por todas, tendo obtido eterna redenção. Portanto, se o sangue de bodes e de touros e a cinza de uma novilha, aspergidos sobre os contaminados, os santificam quanto à purificação da carne, muito mais o sangue de Cristo, que, pelo Espírito eterno, a si mesmo se ofereceu sem mácula a Deus, purificará a nossa consciência de obras mortas, para servirmos ao Deus vivo! Por isso mesmo, ele é o mediador da nova aliança, a fim de que, intervindo a morte para remissão das transgressões que havia sob a primeira aliança, recebam a promessa da eterna herança aqueles que têm sido chamados."


Não há espaço suficiente para citar todas as passagens bíblicas relevantes, mas são profundas e estupendas as implicações dessa revelação. Paulo nos diz que "há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos" (1 Timóteo 2.5); essa mediação significa que "aprouve a Deus que nele residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele, reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus" (Colossenses 1.19-20). Mas, se é por meio da morte de Cristo que somos reconciliados com Deus, seguem-se duas coisas. A primeira é que é pela fé em Cristo e sua obra na cruz que somos salvos. Isso é asseverado diversas vezes no Novo Testamento, como na corajosa resposta de Pedro e João ao Sinédrio, tal como se encontra em Atos 4.12: "abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos"; ou nas exposições feitas por João em seu evangelho: "a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome" (1.12); "Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus. [...] Por isso, quem crê no Filho tem a vida eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a ira de Deus." (3.17-18,36)

A segunda implicação é que, se é pela obra de Cristo que somos reconciliados com Deus, então não é por nossas próprias "obras mortas", como é dito no trecho supracitado de Hebreus. Convém que, ao entrar na presença de Deus, deixemos de lado todos os nossos pretensos méritos e confiemos nos méritos de Cristo, que nos são oferecidos gratuitamente. É o que nos diz Paulo de diversas maneiras, como na famosa sentença de Efésios 2.8,9: "pela graça sois salvos, mediante a fé; e isso não vem de vós, é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie". O mesmo tema é aprofundado na Epístola aos Romanos, a mais bela exposição da graça de Deus já escrita. Em Romanos 3.19-26, por exemplo, Paulo explica o objetivo da lei, bem como da obra de Cristo, e diz quem será objeto da misericórdia do Senhor: "Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado. Mas agora, sem lei, se manifestou a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas; justiça de Deus mediante a fé em Jesus Cristo, para todos os que creem; porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus." Ser justificado significa ser declarado justo no tribunal de Deus, e recebemos esse privilégio ao depositar fé em Cristo. E é por isso que Isaías, pouco depois de profetizar o sofrimento vicário de Cristo, proclama o maravilhoso convite da graça: "Ah! Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas; e vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; sim, vinde e comprai, sem dinheiro e sem preço, vinho e leite" (Isaías 55.1).

Estou bem ciente de que essa mensagem não soa bem aos ouvidos modernos. Na verdade, também não soava bem aos ouvidos antigos. A convicção universal da sabedoria humana sempre foi a de que nossos méritos, de alguma forma, são de importância decisiva na determinação da opinião de Deus sobre nós, e nunca fez sentido algum que Deus decidisse punir uma pessoa pelos erros de outra. Mas o evangelho sempre foi loucura aos olhos do mundo, como declara a apóstolo Paulo em 1 Coríntios 1.22-24: "Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que creem pela loucura da pregação. Porque tanto os judeus pedem sinais, quanto os gregos buscam sabedoria; mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios." A cruz de Cristo escandaliza o mundo desde os primórdios, e é por isso mesmo que a mensagem do evangelho tem eficácia salvadora para aqueles que creem. João viu diante do trono de Deus uma "grande multidão" composta pelos que "lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro" (Apocalipse 7.9,14). Enquanto este mundo existir, seus sábios se queixarão de que não é possível alvejar as próprias roupas lavando-as em sangue. Mas nós, que fomos batizados na morte de Cristo (Romanos 6.3), conhecemos o poder que esse sangue possui, e é por isso que não podemos deixar de pregar o escândalo e a loucura que vêm de Deus: que Cristo, embora não tivesse pecado, foi abandonado pelo Pai na cruz porque estava carregando o peso dos pecados de outros, ou seja, os nossos. Uma doutrina que não causa escândalo não pode salvar o mundo. Não sejamos como os judeus que se obstinaram na descrença, e de quem Paulo disse em Romanos 10.2-4: "eles têm zelo por Deus, porém não com entendimento. Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê." Ponhamos de lado nossa justiça e sujeitemo-nos à que vem de Deus. Nesta época de Páscoa, Deus permita que se apliquem a nós as palavras finais da Epístola aos Hebreus: "Ora, o Deus da paz, que tornou a trazer dentre os mortos a Jesus, nosso Senhor, o grande Pastor das ovelhas, pelo sangue da eterna aliança, vos aperfeiçoe em todo o bem, para cumprirdes a sua vontade, operando em vós o que é agradável diante dele, por Jesus Cristo, a quem seja a glória para todo o sempre. Amém!"

23 de abril de 2011

Desamparo e entrega - parte 1

"Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?" (Mateus 27.46 e Marcos 15.34)

"Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito!" (Lucas 23.46)

Nunca tive a oportunidade de assistir a um "sermão das sete palavras", que pertence à tradição de celebração da Páscoa em algumas igrejas e consiste em uma meditação sobre as sete frases que um ou mais dos quatro evangelhos declaram ter sido ditas por Cristo enquanto estava na cruz. No entanto, farei nesta postagem um despretensioso comentário a duas delas, as que transcrevi acima. Empreendo essa tarefa inspirado por um muito querido colega de trabalho, que outro dia me trouxe uma questão sobre uma aparente contradição entre elas, já que a primeira pressupõe um distanciamento e abandono do Filho pelo Pai, enquanto a segunda parece indicar o oposto, ou seja, proximidade e confiança. Visto que não conseguimos arrumar tempo para conversar mais detidamente sobre o assunto, e sendo a data adequada para uma postagem neste blog sobre a cruz de Cristo, decidi unir as duas coisas e fazer um post sobre esse tema, já que desde 2007, quando escrevi o texto Agnus Dei, não publico nada referente à Páscoa neste espaço. Além disso, pode ser que a questão pareça interessante a alguns dos meus eventuais leitores.

Devo começar dizendo que não vejo dificuldade no que diz respeito a uma inconsistência dos relatos, como se a presença de uma das frases em Mateus e Marcos e da outra em Lucas devesse nos obrigar a escolher apenas uma delas como autêntica. Sem duvida há, nas quatro narrativas evangélicas das circunstâncias da morte de Cristo, diferenças de detalhes que são de difícil conciliação. Contudo, o caso em questão não é um desses: a harmonização que buscamos entre as duas orações de Cristo é de ordem lógica e teológica, não impondo problemas de ordem histórica ou documentária. Essas diferenças de narrativas, assim como todas as outras que podem ser encontradas nos quatro evangelhos, podem ser explicadas em função dos diferentes públicos, circunstâncias, prioridades, ênfases e estilos pessoais de cada evangelista. Olhemos, pois, as coisas por esse ponto de vista e vejamos o que podemos descobrir.

Antes de tudo, deve-se notar que ambas as curtas orações de Cristo na cruz são citações do Livro dos Salmos. A primeira corresponde às palavras iniciais do salmo 22, enquanto a segunda se encontra no versículo 5 do salmo 31. Uma comparação entre os dois salmos, portanto, pode fornecer o substrato necessário à compreensão da questão. Eles apresentam entre si considerável grau de semelhança: ambos foram escritos por Davi e tratam dos sofrimentos injustamente impostos sobre ele pelos maus, bem como da esperança de livramento da parte de Deus, que, sendo absolutamente justo, não permitirá a queda de seus servos, e tampouco concederá impunidade aos perversos. Contudo, há entre os dois salmos uma diferença de ênfase, e uma simples contagem de versículos basta, se não para demonstrar essa diferença, ao menos para indicá-la: dos 31 versículos do salmo 22, os primeiros 18 (cerca de 60% do total) são dedicados à veemente descrição das agonias do justo oprimido. No salmo 31, ao contrário, apenas cinco dos 24 versículos são dedicados a isso, a saber, os versículos 9 a 13, constituindo cerca de 20% da extensão total do salmo. O salmo 22 enfatiza o sofrimento, embora sem deixar de anunciar a redenção; o salmo 31 inverte a ênfase, reconhecendo, contudo, as duas realidades.

Parece-me que a compreensão disso é relevante ao entendimento do que tinham em mente não só os evangelistas, mas também - o que é, sem dúvida, muito mais importante - o próprio Cristo. Ele toma os dois salmos como referências proféticas a si próprio. No caso do salmo 22, também o fizeram João e o autor da Epístola aos Hebreus. (Comparem-se o versículo 18 com João 19.24, o 15 com João 19.28 e o 22 com Hebreus 2.12.) No caso do salmo 31, não conheço outra referência neotestamentária que o associe explicitamente a Cristo, mas aqui o Senhor claramente se apropria das palavras de Davi, demonstrando confiança na justa consideração que receberia depois da morte, que estava para acontecer. Na segunda metade do versículo citado, Davi disse: "tu me remiste, Senhor, Deus da verdade". Com o sepultamento, chegou ao fim o estado de humilhação de Cristo, ao qual se seguiu o estado de exaltação. O apóstolo Paulo descreveu isso muito bem em Filipenses 2.7-11, onde explicou que, ao se encarnar, Cristo "a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai."

A exaltação de Cristo pelo Pai foi também profetizada nos salmos, em especial no versículo inicial do salmo 110: "Disse o Senhor ao meu Senhor: assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo dos teus pés". Que esse salmo se refere a Cristo é afirmado pelo autor da Epístola aos Hebreus em 5.6, citando o quarto versículo do salmo, e o próprio Cristo pressupõe a mesma coisa em seu argumento contra os escribas, tal como se encontra em Lucas 20.41-44. Porém, a posição de honra que Deus Pai conferiu a Cristo após sua morte, como é sugerido por Davi no salmo 110 e detalhado por Paulo na Epístola aos Filipenses, não se limita à ressurreição em corpo glorificado, mas implica também em poder e adoração. Por isso o autor de Hebreus, já nos versículos iniciais (1.3-4) de sua epístola, não só afirma que Cristo, "depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas", repetindo a declaração de Davi, mas acrescenta: "tendo-se tornado tão superior aos anjos quanto herdou mais excelente nome do que eles", confirmando o ensino de Paulo nesse trecho e no restante do capítulo. Também por isso o apóstolo João, no Livro do Apocalipse, refere-se a Cristo como "o Soberano dos reis da terra" (1.5) e conta que o próprio Cristo glorificado declarou: "estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno" (1.18). Aliás, Cristo havia afirmado a mesma coisa ainda antes de sua ascensão aos céus: "Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra" (Mateus 28.18).

Constatar nas Escrituras a doutrina da exaltação de Cristo após sua morte é, pois, importante para que se compreenda o sentido de suas palavras na cruz, e de que modo se cumprem também na vida de Cristo os versículos dos salmos 22 e 31, que falam sobre a a remissão do Messias. Mas isso não é tudo, evidentemente. Pois, como se pode ver acima, Paulo afirmou que Cristo foi exaltado pelo Pai em virtude de sua perfeita obediência aos desígnios deste. Há referências semelhantes em outras partes da Bíblia, especialmente no evangelho de João, que dá especial ênfase ao ministério de Cristo como ato de obediência ao Pai. Um bom exemplo está no que Jesus declarou em João 6.38: "Porque eu desci do céu, não para fazer a minha própria vontade, e sim a vontade daquele que me enviou". Porém, não devemos pensar que a obediência de Cristo ao Pai se restringe à conduta moral, à prática do bem e coisas semelhantes. Ao contrário, a missão do Filho no mundo incluía coisas muito mais específicas e concretas. Lucas dá especial destaque a isso, registrando declarações de Jesus sobre esse tema em diversos pontos de seu evangelho. Em 17.25, por exemplo, Cristo diz sobre si mesmo: "Mas importa que primeiro ele padeça muitas coisas e seja rejeitado por esta geração". Mais detalhes são dados em 9.22: "É necessário que o Filho do Homem sofra muitas coisas, seja rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas; seja morto e, no terceiro dia, ressuscite"; e, novamente, antes de sua última viagem a Jerusalém: "Eis que subimos para Jerusalém, e vai cumprir-se ali tudo quanto está escrito por intermédio dos profetas, no tocante ao Filho do Homem; pois será ele entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado e cuspido; e, depois de o açoitarem, tirar-lhe-ão a vida; mas, ao terceiro dia ressuscitará" (18.31-33). Após a ascensão de Cristo, os apóstolos passaram a pregar a mesma doutrina, e Lucas não deixou de enfatizá-la em sua outra obra, o livro dos Atos dos Apóstolos. Pedro, em seu famoso discurso por ocasião do Pentecostes, declarou (2.22-24): "Varões israelitas, atendei a estas palavras: Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela." E a igreja reunida repetiu a mesma declaração em 4.27-28: "porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram".

Podemos ver, portanto, que o ensino dos evangelhos, bem como de outras partes do Novo Testamento (e, a julgar pelas profecias, de toda a Bíblia) é que Cristo foi enviado ao mundo não apenas para ensinar e dar um bom exemplo, mas também para sofrer, morrer de maneira dolorosa e humilhante, e depois ressuscitar dentre os mortos. Cristo afirmou que isso era parte de sua missão, e é dito também que o Pai predeterminou tudo, inclusive as ações dos homens ímpios da época, judeus e gentios. Resta, portanto, entender por que tudo isso era necessário, ou seja, por que o sofrimento e a morte de Cristo eram parte essencial de sua missão e por que se tornaram parte essencial da pregação do evangelho. Afinal, Cristo é apresentado como moralmente perfeito, sem pecado algum: segundo seus discípulos, ele "não cometeu pecado, nem dolo algum se achou em sua boca" (1 Pedro 2.22), e foi "tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado" (Hebreus 4.15). Isso está em harmonia com o que o próprio Cristo declarou aos judeus, negando ter pecado e desafiando seus inimigos a apresentarem prova em contrário: "Quem de vós me convence de pecado?" (João 8.46). E Deus Pai, cuja ira "se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens" (Romanos 1.18), declarou em alta voz acerca de Jesus: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo" (Mateus 3.17). Então com que objetivo esse mesmo Pai preordenou a morte de seu Filho amado e perfeito? Nesta primeira postagem, dediquei mais atenção ao ato de Cristo de entregar seu espírito nas mãos do Pai. Na próxima, aprofundarei as considerações sobre o ato do Pai de abandonar seu Filho à morte, e veremos que a pergunta do meu caro colega conduz diretamente ao coração da mensagem da cruz.

2 de abril de 2011

A verdadeira inteligência - parte 1

Li no ano passado, em uma tradução inglesa, um livro deveras importante na história do pensamento filosófico cristão: A consolação da filosofia, de Boécio (470-526). Dividida em cinco partes (livros I a V), essa obra contém excelentes reflexões filosóficas, teológicas e morais expressas com grande beleza. Mas dei início à leitura do livro sem sequer desconfiar que em sua última parte é discutida a complicada questão da relação entre a soberania divina e a liberdade humana, assunto a que tenho dedicado alguma atenção nos últimos tempos, de várias maneiras. Achei que valia a pena traduzir e publicar o que me parece ser o trecho mais importante do Livro V, a fim de tornar mais acessível a compreensão de Boécio sobre o assunto. Efetuei, portanto, essa tradução e a publico em duas partes. Dito isso, restam apenas duas coisas a dizer. A primeira é lembrar que se trata de uma tradução da tradução, e que o segundo tradutor ignora tudo da língua original, e boa parte da língua intermediária. A quem encontrar erros, pois, peço que me perdoe e que os indique. E a segunda coisa que tenho a dizer é que não publico as opiniões de Boécio por concordar com elas, e sim por ver importância histórica, filosófica e teológica em sua abordagem, e não menos em seus erros que em seus acertos.

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Declaremos que a presciência existe, mas não traz necessidade aos eventos; então, penso eu, a mesma livre vontade será deixada intacta e absoluta. 'Mas', dirás, 'embora a presciência não constitua necessidade para um evento no futuro, é ainda assim um sinal de que ele necessariamente acontecerá.' Portanto, ainda que não houvesse presciência, seria claro que os eventos futuros eram necessários; pois todo sinal pode apenas mostrar aquilo para o qual ele aponta; ele não o traz à existência. Daí se segue que devemos primeiro provar que nada ocorre senão por necessidade, para que fique claro que a presciência é um sinal dessa necessidade. De outro modo, se não há necessidade, a presciência não será um sinal daquilo que não existe. Mas é necessário que a prova repouse sobre um raciocínio firme, não sobre sinais ou argumentos externos; ela deve ser deduzida a partir de causas adequadas e persuasivas. Como é possível que coisas que foram previstas não aconteçam? Seria como se acreditássemos que não ocorrerão eventos que a Providência sabe de antemão que ocorrerão, e como se não pensássemos que, embora ocorram, não tinham em suas próprias naturezas necessidade alguma que os levasse a ocorrer. Podemos ver muitas ações se desenvolvendo diante de nossos olhos; assim como os condutores de carruagens veem o desenvolvimento de suas ações enquanto controlam e guiam suas carruagens, e muitas outras coisas igualmente. Alguma necessidade impele alguma dessas coisas à ocorrência? É claro que não. Toda arte, planejamento e intenção seria em vão se tudo acontecesse por compulsão.

Portanto, se as coisas não têm necessidade de acontecer quando acontecem, elas não têm necessidade de estar para acontecer antes que aconteçam. Daí se segue que são coisas cuja ocorrência é inteiramente livre de necessidade. Pois não penso que haja algum homem que dirá isso, que as coisas que são feitas no presente estavam para acontecer no passado, antes que acontecessem. Assim, esses eventos previstos têm seus resultados livres. Assim como a presciência das coisas presentes não traz necessidade sobre elas enquanto acontecem, também a presciência do futuro não traz nacessidade às coisas que estão para vir.

Mas dirás que não há dúvida também quanto a isto: se pode haver alguma presciência de coisas que não têm seus resultados determinados por necessidade. Pois eles parecem não ter harmonia; e pensas que, se são previstos, segue-se que há necessidade; se não há necessidade, não podem ser previstos; nada pode ser percebido seguramente pelo conhecimento, a menos que seja certo. Mas se as coisas contêm incerteza quanto ao resultado, podendo, no entanto, ser previstas como certas, essa previsão é claramente a mera obscuridade da opinião, e não o conhecimento verdadeiro. Pois crês que pensar de algum outro modo é oposto ao verdadeiro conhecimento. A causa desse erro é que todo homem crê que todos os objetos que ele conhece são conhecidos apenas pela força ou natureza deles próprios, mas a verdade é o oposto disso. Pois todo objeto que é conhecido não é compreendido de acordo com sua própria força, e sim de acordo com a natureza daqueles que o conhecem.

Permita-me esclarecer-te isso por um breve exemplo: a esfericidade de um corpo pode ser conhecida de um modo pela visão, de outro pelo toque. A visão pode tomar o corpo todo de uma vez à distância julgando seu raio, enquanto o toque se apega, por assim dizer, ao lado externo da esfera, e do contato com a mão percebe, por meio das partes materiais, a esfericidade do corpo ao deslizar sobre a circunferência real. Um homem é compreendido diferentemente pelos sentidos, pela imaginação, pela razão e pela inteligência. Pois os sentidos distinguem a forma tal como está estabelecida na matéria moldada pela forma; a imaginação distingue a aparência em si, sem a matéria. A razão vai mais longe que a imaginação: por uma contemplação geral e universal, ela investiga o tipo real representado em espécimes individuais. Mais elevada ainda é a visão da inteligência, que alcança a esfera superior do universal e, com o olho desobstruído da mente, contempla a própria forma do tipo em sua absoluta simplicidade. Aqui, o principal ponto de nossa consideração é este: o poder de entendimento superior inclui o inferior, mas o inferior nunca ascende ao superior. Pois os sentidos não são capazes de entender nada além da matéria; a imaginação não pode olhar para tipos universais ou naturais; a razão não pode compreender a forma absoluta; enquanto a inteligência parece olhar de cima para baixo e compreender a forma, e distingue tudo o que jaz abaixo, mas de modo a apreender a própria forma que não poderia ser conhecida a nenhum outro além dela própria. Pois ela percebe e conhece o tipo geral, como faz a razão; a aparência, como faz a imaginação; e a matéria, como fazem os sentidos; mas com uma única apreensão da mente ela olha para todos esses com uma clara concepção do todo. E a razão também, ao ver os tipos gerais, não faz uso da imaginação nem dos sentidos, e contudo percebe tanto os objetos da imaginação quanto os dos sentidos. É a razão que assim define um tipo geral de acordo com sua concepção: o homem, por exemplo, é um animal bípede e racional. Essa é uma noção geral de um tipo natural, mas homem algum conclui que, porque a razão investiga o objeto por meio de uma concepção racional, e não pela imaginação ou pelos sentidos, esse objeto não pode ser abordado pela imaginação e pelos sentidos. Da mesma forma, embora a imaginação se origine da visão e forme aparências a partir dos sentidos, avalia cada objeto sem a ajuda deles, por uma faculdade de distinção imaginativa, não pela faculdade de distinção dos sentidos.

Vês, então, como, no conhecimento de todas as coisas, o sujeito usa seu próprio padrão de capacidade, e não o dos objetos conhecidos? E isso é razoável, pois todo julgamento formado é um ato da pessoa que julga, e portanto cada homem deve necessariamente empreender sua própria ação partindo de sua própria capacidade, e não da capacidade de algum outro. Nos dias antigos o Pórtico de Atenas nos deu homens que enxergavam mal, como se fossem velhos. Eles se convenceram de que as sensações dos sentidos e a imaginação não eram senão impressões feitas por corpos sobre uma mente que nada continha, assim como o antigo costume era de imprimir com ágeis canetas letras sobre a superfície de uma barra de cera que não continha marca alguma. Mas se da mente nada pode brotar com seu próprio esforço; se ela apenas jaz passiva e sujeita às marcas feitas por outros corpos; se ela reflete, como um espelho, os vãos reflexos de outras coisas; de onde cresce na alma um poder de conhecimento tão abrangente? Qual é a força que vê as partes singulares, ou que distingue os fatos que conhece? Qual é a força que reúne as partes que distingue, que toma seu curso na devida ordem, ora ascendendo para combinar as coisas no topo, ora mergulhando entre as coisas inferiores, e então traz a si mesma de volta e, assim examinando, refuta o falso com o verdadeiro? Essa é uma causa de maior poder, de força muito mais eficaz que aquela que apenas recebe as impressões dos corpos materiais. Contudo, a recepção passiva vem primeiro, despertando e atiçando toda a força da mente no corpo vivo. Quando os olhos são atingidos pela luz, ou os ouvidos são golpeados pelo som de uma voz, então a energia do espírito é despertada e, assim movida, convoca formas semelhantes às que sustenta em si mesma, ajusta-as aos sinais exteriores e mistura as formas de sua imaginação às que tem armazenadas dentro de si.

Com relação a sentir os efeitos dos corpos, naturezas que são postas em contato por uma força exterior afetam os órgãos dos sentidos, e o estado passivo do corpo pode preceder a energia ativa do espírito e reclamar para si a atividade da mente; se, então, quando os efeitos dos corpos são sentidos, a mente não é afetada de modo algum por essa recepção passiva, mas declara essa recepção sujeita ao corpo por sua própria força, quanto menos aqueles sujeitos que são livres de ser afetados pelos corpos seguirão objetos externos em suas percepções, e quanto mais tornarão claro o caminho para a ação da mente! Por esse argumento, muitos diferentes modos de entendimento se adequam a coisas de naturezas amplamente diferentes. Pois os sentidos são incapazes de algum conhecimento exceto o seu próprio, e eles se adequam aos seres vivos que são incapazes de movimento como as conchas do mar e outras formas inferiores de vida que vivem agarradas às rochas; enquanto a imaginação é concedida aos animais que têm o poder do movimento, que parecem afetados por algum desejo de buscar ou evitar certas coisas. Mas a razão pertence à raça humana apenas, assim como a verdadeira inteligência é de Deus apenas. Daí se segue que esse último modo de conhecimento é melhor que os outros, pois pode compreender por sua própria natureza não apenas o sujeito peculiar a esse modo, mas também os sujeitos dos outros tipos de conhecimento.