22 de agosto de 2011

Sutilezas causais - parte 1

Nesta postagem e na próxima farei algumas considerações sobre o segundo capítulo do livro A soberania banida, escrito pelo teólogo R. K. McGregor Wright, intitulado A incoerência da teoria do livre-arbítrio. Adianto que, embora o título pareça atraente a calvinistas como eu, não gostei do tom geral do capítulo, e o propósito predominante do presente texto é crítico. Entretanto, sua leitura me ensinou algumas coisas, uma das quais é importante o suficiente para que valha a pena mencioná-la.

Sempre considerei no mínimo inconsequente a suposição de que a tensão entre a liberdade humana e a soberania divina pode ser resolvida simplesmente negando-se a existência da primeira. Apesar disso, entre os que negam a liberdade do homem e os que negam a soberania de Deus, não penso duas vezes antes de declarar minha preferência irredutível pelos primeiros. Afinal, eles podem estar cometendo um erro filosófico, mas não creio que esse erro tenha o poder de acarretar perigos espirituais graves, embora possa ser em si mesmo um sintoma de um erro grave. Wright reforçou essa minha impressão ao citar e comentar em poucas palavras o livro Divine sovereignity and human responsibility [Soberania divina e responsabilidade humana], do conhecido teólogo reformado D. A. Carson. No capítulo The boundaries of free will [As fronteiras do livre arbítrio], Carson mostra que os textos bíblicos não só se isentam de qualquer tentativa de explicar a contradição entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, mas sequer dão sinais de considerá-las contraditórias. A Bíblia não necessariamente nega a liberdade humana no sentido em que, apesar dos malfadados esforços de Wright, dos quais falarei em seguida, a teologia reformada compreende esse termo. Mas também não lhe dedica a imensa atenção por ela recebida em muitos círculos teológicos cristãos, para não falar em amplos setores de diversas correntes humanistas. Portanto, existe uma chance considerável de que essa ênfase equivocada seja o produto da interferência indevida de uma cosmovisão antibíblica sobre a mente dos cristãos. Por mais que eu discorde de Wright, como farei a seguir, por me parecer que ele também cede demais a uma outra cosmovisão antibíblica, cabe-lhe o mérito de me abrir os olhos para esse perigo.

Há no capítulo em questão uma grande quantidade de afirmações com as quais devo concordar, mas elas, na realidade, não me acrescentaram muito. Por isso, passarei agora à exposição dos desacordos. Não desejo, no entanto, transmitir a impressão de que o capítulo é uma porcaria, e é por isso que fiz questão de começar pelo que ele tem de melhor. Antes de prosseguir, deve ser observado que a expressão "livre-arbítrio" é a tradução da expressão inglesa free will, que literalmente significa "livre vontade". Ter consciência dessa ambiguidade pode vir a ser útil para a correta apreensão da descrição que farei a seguir. É importante, para começar, que prestemos atenção às seguintes palavras do autor:

"Pelo termo livre-arbítrio eu quero dizer a crença de que a vontade humana tem um poder inerente de escolha com a mesma facilidade entre alternativas. [...] Essa crença não alega que não haja influências que possam afetar a vontade, mas ela insiste em que normalmente a vontade pode vencer esses fatores e escolher a despeito deles. Definitivamente, a vontade é livre de qualquer causação necessária. Em outras palavras, ela é autônoma de qualquer determinação externa."

A primeira coisa que noto é que a segunda afirmação contradiz a primeira. Se Wright queria dizer simplesmente que, segundo a teoria do livre-arbítrio, a vontade pode tomar uma decisão apesar das influências em contrário, não devia ter falado em "escolha com a mesma facilidade entre alternativas". E a segunda coisa que noto é a presença de um advérbio não explicado na segunda sentença: "normalmente". Ao que parece, Wright admite que a teoria do livre-arbítrio comporta exceções. Mas quais seriam elas? Não há explicações no texto; entretanto, elas são importantes para o fim que ele tem em vista, que é o combate ao arminianismo. Afinal, o autor declara mais adiante que "os arminianos querem que a vontade seja livre de interferência externa", o que me parece ser uma afirmação que não admite exceções. Portanto, deveria haver alguma explicação para o "normalmente".

Essas duas observações iniciais parecem indicar que Wright não tem uma mente rigorosa o suficiente para dar um tratamento adequado a tão espinhosa questão; e isso parece confirmar uma impressão que havia sido despertada em mim ainda durante a leitura do capítulo inicial, como declarei aqui. Se o leitor acha que essa minha conclusão é exagerada, e que estou tentando desqualificar o autor com base em detalhes sem importância, sinto dizer que só há uma explicação possível: o leitor compartilha do defeito de Wright, pois a intenção dele é justamente a de fornecer uma refutação filosófica rigorosa e inescapável à crença na liberdade humana. Indícios adicionais dessa falta de rigor aparecem quando Wright discute o significado de termos como determinismo e acaso. Vejamos:

"Por determinismo, então, queremos dizer a ideia que afirma que nenhum evento finito pode acontecer puramente por acaso, mas que todos os acontecimentos são causalmente determinados na sua natureza e ação por um estado de coisas anterior - que não há acontecimentos não causados no mundo. O oposto do determinismo é o indeterminismo, que sustenta que pelo menos alguns acontecimentos não são causados por condições prévias, sendo que os atos livres da vontade estão entre eles."

No glossário do fim do livro, o autor define "indeterminismo" da seguinte maneira: "Teoria de que pelo menos alguns acontecimentos não possuem causas anteriores. Normalmente coexiste com uma dependência do acaso para explicar as coisas." O "normalmente" está aí de volta, mas desta vez com um propósito bem nítido: essa definição mostra que o autor tem consciência de que negar o determinismo não é necessariamente o mesmo que invocar o acaso como explicação válida para os eventos. Entretanto, como o trecho citado acima deixa claro, a definição de indeterminismo dada no segundo capítulo não leva isso em conta. E, na verdade, nada mais na argumentação desenvolvida pelo autor ao longo do segundo capítulo é compatível com a distinção feita de modo implícito no glossário. No trecho a seguir, por exemplo, Wright descreve a posição antagônica à sua e em seguida a critica. Vejamos como ele o faz:

"A vontade é automovida em resposta ao que a mente conhece e pode causar tanto a ação de ceder às influências quanto a resistência a elas. A vontade é livre para seguir ou resistir a qualquer que seja a opção que a mente lhe apresente. O problema mais sério aqui é que esse tipo de espontaneidade é indistinguível do acaso. Precisamos apenas perguntar: o que faz com que a vontade escolha um caminho e não outro? Se ela não é causada, ela é puramente acaso. Se sua ação é causada, então ela não é livre de causação."

Aqui, como se vê, Wright parece de todo hostil à ideia de que possa existir algum indeterminismo sem acaso, contrariando as implicações imediatas do que ele mesmo disse no glossário. Isso reforça os comentários que já fiz sobre o uso impensado e inconsequente das palavras, que é uma das marcas características de uma mente indisciplinada. Fiquei com a impressão de que o "normalmente" aparece motivado apenas pela cautela do autor, ao menos em parte cônscio de sua ignorância. Mas essa cautela desaparece de todo quando chega a hora de argumentar com o devido rigor. Nesse momento, ele deseja que seus leitores esqueçam as sutilezas que podem aparecer para atrapalhar e imaginem que todos os seus eventuais opositores pensam de modo idêntico.

De qualquer modo, seu argumento não me convence. Por que é que acaso e determinismo seriam as únicas alternativas disponíveis? Não atribuímos a nenhuma das duas categorias as decisões do próprio Deus, por exemplo. Não dizemos que Deus decreta os acontecimentos sem motivo algum, como se todas as opções disponíveis lhe fossem indiferentes; ao mesmo tempo, porém, não dizemos que Deus os decreta por não dispor de liberdade para escolher outras possibilidades, pois nesse caso a contingência da criação (no todo e em cada uma de suas partes) estaria arruinada. Esse fato deveria bastar ao menos para levantar a possibilidade de que o universo dos seres pessoais, entre os quais se encontra o próprio Deus, não seja regido pela mesma categoria de leis que se aplica ao universo inanimado. Neste, sim, tudo se resume (talvez) a "determinismo ou acaso"; naquele, não necessariamente. A incapacidade de vislumbrar essa alternativa me parece semelhante a um daqueles vícios de pensamento que aparecem de modo muito mais evidente em pensadores materialistas. E isso não é coincidência, pois, como já mostrei em outra parte, o racionalismo está fortemente presente em ambos os casos.

Há leitores que talvez não me conheçam, e por isso podem estar pensando que estou defendendo o arminianismo ou o semipelagianismo contra o conceito calvinista da soberania de Deus. O próprio Wright, aliás, deseja que seus leitores pensem que sua posição é calvinista por excelência, e que qualquer tentativa de conciliar a soberania divina com a liberdade humana só pode se originar de uma antipatia pela "autêntica" posição reformada e bíblica. Entretanto, ele gasta boa parte do tempo criticando postulados caracteristicamente arminianos (ou mesmo pelagianos, em alguns casos) que não tenho o menor interesse em defender, como o de que Deus jamais interfere na vontade humana, ou o de que a vontade é neutra do ponto de vista moral e espiritual. Contudo, ele também critica posições de grandes teólogos reformados cujas simpatias pelo arminianismo eram nulas. Na próxima postagem analisarei um exemplo disso, mostrando problemas adicionais com a tese determinista de Wright.