31 de outubro de 2012

A pobreza do vocabulário

Hoje vou compartilhar uma reflexão sobre filosofia política. Trata-se de algo que eu já tinha constatado há muito tempo, mas cujas implicações percebi mais profundamente depois de presenciar uma breve conversa, da qual não participei, entre dois conhecidos meus. Sendo assim, creio que é oportuno comentar algo sobre essas pessoas, cujas identidades não vêm ao caso e às quais, portanto, me referirei como Alfa e Beta. Ambas são pessoas de quem gosto muito e que já me ajudaram em diversas ocasiões. São também pessoas cuja perspicácia se manifesta com frequência, inclusive em assuntos políticos e culturais. Eles não se consideram conservadores, e de fato não o são, mas ambos têm momentos de lucidez caracteristicamente conservadores.

Feita essa descrição sumária, posso resumir o trecho relevante do diálogo, que começou quando Alfa se referiu a si mesmo como "pobre". Beta discordou: para ele, Alfa não deveria se considerar pobre, pois está em situação muito melhor que muita gente por aí. Alfa protestou, alegando que ninguém pode se achar melhor que os outros só porque ganha um pouco melhor, que sua contestada "pobreza" é especialmente evidente se comparada à situação dos ricos de verdade, e que qualquer um que precisa trabalhar duro para garantir seu sustento é, sim, um pobre. Não lembro exatamente qual foi a resposta de Beta, mas ele mencionou algo no sentido de que não há virtude alguma em ser pobre. Alfa disse que os vermes comerão indiferentemente pobres e ricos; Beta concordou, mas ressaltou que isso não anula as diferenças de estilo de vida que existem enquanto esse momento não chega. Pouco depois, a conversa precisou ser interrompida e Beta se ausentou. Continuei na presença de Alfa, que então se dirigiu a outra pessoa para enunciar a conclusão, mais ou menos nestes termos: "Beta se acha superior só por causa de seu salário". E a outra pessoa concordou, lamentosa.

Beta e Alfa são ambos, segundo qualquer critério razoável (excluindo, dessa forma, o do atual governo), cidadãos de classe média - média-alta, talvez, mas não mais que isso. Objetivamente, portanto, Beta tem razão: nem ele nem Alfa são pobres, e há, de fato, uma diferença considerável de poder aquisitivo entre qualquer um deles e uma família em que os membros ganham um ou dois salários mínimos cada um. Conheço Beta bem o suficiente para saber que, ao rejeitar a autodesignação de "pobre" feita por Alfa, sua principal preocupação era se contrapor à aparência de ingratidão pelo que a vida lhe oferece. Não creio que Beta se considere ontologicamente, moralmente ou espiritualmente superior a um pobre (ou inferior a um rico) por causa do salário que recebe e, ainda que se considere assim, isso não pode ser inferido de modo legítimo a partir de suas palavras naquela conversa. Ao dizer que não era pobre, ele estava apenas usando o termo de modo descritivo, segundo sua acepção convencional.

Para Alfa, ao contrário, a palavra "pobre" não descreve a renda ou o patrimônio material de uma pessoa ou família, e sim expressa um conjunto de valores e lealdades. Quem se reconhece como pobre está, dessa forma, identificando-se como trabalhador e está, além disso, e não sem humildade, expressando o repúdio à pretensão de julgar as pessoas por suas posses materiais. Com isso, o autointitulado pobre recusa-se a se considerar melhor que pessoas que têm menos que ele. Por sua vez, quem nega ser pobre está assumindo a postura diametralmente oposta: essa pessoa não só mede o valor de um ser humano desse modo, mas também identifica a si mesma com os que valem mais. Se essa pessoa em questão tiver mesmo muito dinheiro, a situação ja é ruim o suficiente; mas, se não tiver, é pior ainda, pois nesse caso somam-se a todos esses defeitos a presunção e a cegueira quanto à sua real situação. Tal caso constituiria a situação do pobre traidor ou, como diz a expressão popular, o "pobre orgulhoso", se não fosse politicamente incorreto usar a sublime palavra "pobre" em um contexto tão negativo.

Essa história me parece interessante porque sua análise proporciona um atalho bastante didático para o entendimento dos efeitos práticos dessa diferença de atitudes diante do termo "pobre". Mas isso só poderá ser entendido com clareza depois que forem compreendidas a razão e a origem dessa diferença. É disso tudo que trata minha reflexão, a qual passo a expor agora em poucas palavras.

No século XIX, uma dupla de intelectuais de miolo mole, Karl Marx e Friedrich Engels, decidiu começar seu Manifesto comunista com as seguintes palavras: "A história de todas as sociedades, até os nossos dias, tem sido a história das lutas de classes". Pensando ter encontrado nesse reducionismo besta a chave para a compreensão da história humana, a referida dupla tratou de dividir a humanidade em dois compartimentos: o dos ricos e o dos pobres. Além disso, declarou que esses dois grupos são irreconciliavelmente inimigos, que seus interesses não podem ser harmonizados de modo algum e que essa é a divisão última, a mais fundamental, a ser feita entre seres humanos; a ela, segundo a dupla, devem se subordinar todas as outras divisões possíveis. Tais disparates mostraram-se muito bem-sucedidos na guerra cultural, a tal ponto que muita gente as endossa de modo inconsciente e acrítico sem saber de onde vieram, sem jamais ter lido uma linha do Manifesto comunista e sem se considerar de modo algum um marxista - de fato, não é raro que quem fala assim sequer se considere de esquerda.

É essa a estrutura de ideias que está por trás das reações e discursos de Alfa. Para ele, não se reconhecer como pobre é se identificar com os ricos. E isso, longe de ser apenas uma declaração um tanto vaga sobre o valor econômico dos bens materiais de que se dispõe, representa uma profissão de lealdade em uma batalha de proporções cósmicas da qual ninguém pode se isentar. Quem com Marx não ajunta, espalha. Não se considerar pobre é, portanto, estar contra os pobres, é ser não só indiferente, mas também hostil aos pobres. Pouco importa que Beta pague mais que o valor de mercado a seus empregados e faça caridade com frequência (esses são dados reais). Além disso, quem nega ser pobre é um vagabundo confesso, pois Marx - que também era vagabundo, mas que não deve ser chamado assim, já que estava do lado dos pobres - pontificou que toda a riqueza do mundo é produzida apenas pelo trabalho dos pobres.

A disseminação da tese marxista sobre a luta de classes teve, portanto, ao menos três efeitos bastante negativos sobre essa breve conversa que presenciei. O primeiro é que as palavras "pobre" e "rico" não podem mais ser usadas para o propósito que lhes deu origem - isto é, designar alguém que tem poucos ou muitos bens materiais - sem causar um enorme mal-entendido. Essas palavras agora são bandeiras de adesão a lutas eivadas de conotações moralistas. Beta é rico, mesmo não ganhando o suficiente para tal, mas um milionário é pobre, se for socialista.

O segundo efeito negativo é que os efeitos desse mal-entendido não se restringem de modo algum à esfera cognitiva, mas levam a um julgamento, no mau sentido do termo: no fim das contas, Alfa julgou mal a atitude de Beta diante da pobreza por seu modo convencional de usar as palavras, em vez de fazê-lo por suas atitudes e opiniões expressamente declaradas sobre o assunto, e construiu, com base nisso, um juízo moral negativo acerca de seu interlocutor.

E o terceiro efeito negativo resulta da própria polarização da humanidade segundo critérios equivocados: a desconsideração de nuances e gradações. Segundo esse modo de pensar, Beta deveria se declarar pobre ou rico, pois essas são as categorias fundamentais do universo humano; ele já não tem o direito de se considerar mais rico que os pobres e mais pobre que os ricos. Ao invés de considerar as categorias "rico" e "pobre" como simplificações (úteis apenas em determinados contextos) de uma realidade social e econômica muito complexa, o cidadão cujas sinapses se encontram obstruídas pelo marxismo considerará essas nuances e gradações - expressões como "classe média", "nem rico nem pobre", "mais rico que", "mais pobre que" - como modos evasivos e um tanto perversos de negar, disfarçar ou atenuar a realidade fundamental da "luta de classes", que é o motor da história, identificado como tal no século XIX, e com base no qual se deve transformar a realidade, sem tempo a perder na busca de ulteriores compreensões.

Todo conservador já sentiu na pele a malícia preconceituosa embutida nesse modo de pensar, inclusive por parte de pessoas que, pessoalmente, pouco ou nada têm de maliciosas - como é, aliás, o caso de Alfa. Esse é um exemplo de como a doutrina marxista leva não só à confusão cognitiva, mas também, o que é mais grave, à desconfiança, ao preconceito, ao desprezo e, no limite, ao ódio contra quem não se identifica com o "lado certo" ou não usa as palavras do modo como deveria, segundo certa preferência ideológica. É assim que o marxista impõe a "ditadura do proletariado" no campo das ideias, crendo eliminar a riqueza como critério de valor pessoal apenas estabelecendo em seu lugar a pobreza - o que é, na melhor das hipóteses, trocar um materialismo por outro. E é o que faz também o não-marxista, qualquer que seja a medida em que compartilha desses pressupostos.