26 de janeiro de 2013

Personalidade absoluta - parte 3

Até aqui, creio que dei especial atenção a esse tipo que chamei de "ateu mais comum": o cientificista, que tende sobretudo ao racionalismo e ao determinismo. Mas existe também o ateu que tende ao irracionalismo, ao caos, ao subjetivismo; esse tipo é especialmente abundante em certos círculos das ciências humanas, em geral com matizes nietzscheanos, existencialistas e relativistas. Não é o tipo com que tenho mais familiaridade, devido ao meu temperamento natural e à minha formação na área de ciências exatas. Apesar disso, creio que devo dizer algo a respeito, pois algum desavisado poderá objetar que o que tenho afirmado sobre o ateísmo "mais comum" não se aplica a esse caso. Muitos ateus desse segundo tipo gostam de ver a si mesmos do modo precisamente oposto, isto é, como humanistas radicais que, em oposição tanto à "religião" quanto ao racionalismo de raiz iluminista, valorizam a pessoa humana e salvaguardam o terreno da pessoalidade e da subjetividade contra seus invasores. Jean-Paul Sartre é um exemplo perfeito dessa tendência, como se nota em seu texto O existencialismo é um humanismo. Desconsiderarei aqui as discussões no terreno da ontologia. O que me interessa no momento é demonstrar que também ele, quando aborda a questão de Deus, contradiz seus próprios princípios. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho, em que ele defende a inexistência de sinais divinos capazes de orientar as decisões de um ser humano:

"Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a seguir; não existem sinais no mundo. Os católicos arguirão: sim, existem sinais. Admitamos que sim; de qualquer modo, ainda sou eu mesmo que escolho o significado que têm. Quando estive preso, conheci um homem assaz notável, que era jesuíta, havia ingressado na ordem dos jesuítas da seguinte forma: tinha experimentado uma série de dolorosos fracassos; ainda criança, seu pai morrera deixando-o pobre; entrou como bolsista numa instituição religiosa onde faziam questão de lembrar-lhe a todo instante que ele era aceito por caridade; em seguida, perdera diversas distinções honoríficas que tanto agradam às crianças; mais tarde, por volta dos dezoito anos, fracassou numa aventura sentimental; finalmente, aos vinte e dois anos, falhou em sua preparação militar, fato bastante pueril que, no entanto, constituiu a gota que fez transbordar o jarro. Esse jovem podia, portanto, considerar que fracassara em tudo; era um sinal, mas um sinal de quê? Poderia refugiar-se na amargura ou no desespero. Porém, muito habilmente para si próprio, considerou que seus insucessos eram um sinal de que ele não nascera para os triunfos seculares, e que só os triunfos da religião, da santidade, da fé, estavam ao seu alcance. Viu, portanto, nesse sinal, a vontade de Deus e ingressou na Ordem. Quem poderia deixar de perceber que a decisão sobre o significado do sinal foi tomada por ele e só por ele? Seria possível deduzir outra coisa dessa série de insucessos: por exemplo, que seria melhor se ele fosse carpinteiro ou revolucionário. Ele carrega, portanto, a total responsabilidade da decifração. O desamparo implica que somos nós mesmos que escolhemos o nosso ser."

É assim que a avaliação de Sartre sobre o caso do jesuíta descarta sumariamente a possibilidade de o jovem ter de fato apreendido um sinal divino e sido obediente a ele, em vez de "decidir" de modo autônomo o que os fatos de sua vida significavam. Mas qual é o fundamento dessa conclusão? Apenas esta: Sartre não vê motivo pelo qual, falando em termos objetivos, o jovem não poderia ter virado carpinteiro ou revolucionário com base nos mesmos dados. Aqui, portanto, o grande defensor da subjetividade humana passa a exigir objetividade como requisito para crer na possibilidade de Deus mandar sinais a suas criaturas. Tal exigência é baseada na rejeição da personalidade, na medida em que recusa justamente aquilo que só ela pode oferecer: relações entre pessoas. Se, nesse ponto, Sartre tivesse levado em consideração a natureza das relações pessoais, teria visto como nada menos que natural que Deus manifeste sua vontade a um jovem por meio de sinais não discerníveis pelo próprio Sartre, pelo simples motivo de que não foram dirigidos a ele e não dizem respeito à sua vida.

Tentarei ilustrar isso com um exemplo. Um homem chega em casa cansado depois de um dia extenuante de trabalho. Ele sabe que sua esposa não está em casa, pois ela tinha uma viagem programada para aquele dia desde várias semanas antes. No entanto, ela deixou na geladeira um bolo de laranja, feito por ela mesma. O homem se comove ao ver o bolo: "É uma manifestação do amor de minha esposa por mim", pensa ele. Ele tem razões para pensar assim: ele adora laranja, mas ela detesta, de modo que o bolo foi feito apenas para agradá-lo; ela precisava resolver uma porção de problemas antes de viajar, e em um curto intervalo de tempo, de modo que provavelmente acordou mais cedo para isso; ela não gosta muito de cozinhar, de modo que o bolo não foi feito sem esforço; não havia em casa todos os ingredientes, e alguns não podem ser encontrados à venda nas proximidades; e ela não estava muito bem de saúde naqueles dias, o que aumenta a dose de esforço necessária para produzir aquela simples surpresa. Não é que o marido gaste tempo enumerando todos esses fatos e analisando-os para então concluir, silogisticamente: "portanto, ela me ama". Essa percepção vem num simples relance, e se enraiza no amor e na confiança mútuos que o casal vem se esforçando para cultivar nos últimos anos.

Mas Sartre não sabe de nada disso: não conhece a esposa, nem o marido, e tampouco os fatos mencionados no parágrafo anterior, e por isso não é capaz de discernir o sentido que aquele fato isolado possui na vida do casal. Se pudesse observar a cena e ler os pensamentos do marido, pensaria: "Ele é um tolo. O bolo pode ter sido comprado pronto em algum lugar, ou então ela pode tê-lo feito apenas para aplacar sua ira por algum deslize cometido. Não vejo base para ele concluir que é amado. Ele simplesmente decidiu interpretar a situação dessa forma, sem fundamento objetivo algum. Não existem sinais. Um bolo é apenas um bolo." Assim, a ignorância de Sartre sobre a subjetividade (ou intersubjetividade) alheia se constitui na autoridade com base na qual ele pontifica sobre a natureza de sinais que, em absoluto, não lhe dizem respeito.

Analogamente, Sartre só pode estabelecer sua subjetividade como poder legislador autônomo em relação a Deus impondo-a como norma objetiva acima da subjetividade alheia. Como nos casos anteriores, há uma contradição flagrante em prol da impessoalidade, só explicável pelo desejo de manter afastado o Deus pessoal do cristianismo. Essa atitude é semelhante à que descrevi no post anterior, a do ateu diante das não-regularidades do mundo criado. Quando o ônibus cai na ribanceira e mata quarenta passageiros, deixando apenas um sobrevivente, o ateu pergunta, em tom de desafio: "Por que Deus não trata todos de modo igual? Por que não matou todos, ou salvou todos, ou salvou apenas os melhores?" Ora, é mais que evidente que, para responder a essa pergunta, seria necessário conhecer os modos pelos quais Deus se relacionou com cada um dos envolvidos no acidente. O homem que diz "Se não vejo sentido nisso, não há sentido nisso", além de atribuir a si mesmo uma onisciência claramente fajuta, está ignorando, uma vez mais, que Deus é pessoal, de modo que tudo o que ele faz na vida de suas criaturas humanas é parte de um relacionamento pessoal - seja para salvação ou para condenação.

Assim, o ateísmo está necessariamente ligado a uma recusa fundamental da personalidade, pouco importando se é um ateísmo racionalista e determinista, interessado sobretudo nas regularidades e na objetividade, ou um ateísmo irracionalista, subjetivista, fiel sobretudo ao caos e à anarquia. Todos, por todos os modos, recusam-se a admitir a soberania do Deus pessoal das Escrituras, seja negando-lhe o direito de legislar sobre o mundo e impor padrões regulares à sua criação, seja negando-lhe o direito de se relacionar de modo pessoal com suas criaturas humanas e produzir na vida de cada um sentidos que escapam à visão "objetiva" dos demais - ou, dizendo isso de outro modo, recusando-lhe o direito de agir de diferentes modos com diferentes pessoas tendo em vista diferentes propósitos.

Com isso, dou por justificada e explicada, ainda que de modo apenas esboçado, o que posso considerar uma manifestação onipresente do problema fundamental do ateísmo. Mas não posso encerrar o presente texto sem um comentário sobre uma questão de natureza mais prática: como nós, que nos relacionamos pessoalmente com o Deus tripessoal, podemos desafiar o ateu em sua decisão fundamental, demovendo-o de sua insistência dogmática em tratar com Deus de modo abstrato, distante, "científico" - impessoal, enfim? Além de denunciar esse dogmatismo como irracional e gratuito, penso que devemos apontar para o modo como a doutrina cristã faz plena justiça às implicações da personalidade de Deus, revelada nas Escrituras e em toda a criação. Devemos mostrar ao ateu que seus questionamentos não fazem sentido à parte de uma tentativa persistente de despersonalizar o Criador.

Antes de tudo, convém reconhecer que nosso relacionamento pessoal com Deus não nos capacita a responder a todas as perguntas sobre seus desígnios. E é natural que seja assim, pois isso ocorre até em relações humanas, que se dão entre duas pessoas de mesmo nível ontológico, moral e intelectual. Não obstante, o ateu quer saber por que Deus fez o mundo com certas regularidades e não outras. E quer saber também por que Deus trata certas pessoas de um jeito e outras de outro. Que lhe diremos?

Ilustrarei isso com uma breve parábola dupla. Um homem passa de carro em frente à minha casa pontualmente às 9h nos dias ímpares e às 10h nos dias pares. O vizinho se volta para mim e pergunta: por que ele segue essa regularidade de modo tão estrito? Outro homem um dia me surpreende na rua, saca um revólver, sorri para mim, obriga-me a aceitar um monte de dinheiro. Depois dá um soco em um outro transeunte, e em seguida se rende à polícia, que se aproxima. Quando conto essa história ao mesmo vizinho, ele pergunta: por que aquele sujeito agiu de modo tão estranho? A resposta a ambas as questões é a mesma: "Não sei; não conheço os protagonistas dessas ações. A única possibilidade de entendê-los é conhecendo-os, relacionando-se pessoalmente com eles. Assim, ao menos algumas coisas deverão ficar claras." Aplicada a Deus, a resposta é a mesma: quem quiser entender a mente do Criador deve se relacionar com ele nos termos que ele estabeleceu de modo soberano. Só assim a arrogante presunção humana pode ser evitada.

Darei dois exemplos do que chamo de "arrogante presunção". Certa vez tive uma conversa com um colega para quem não poderia existir punição eterna para os ímpios, pois "Deus não faria uma coisa dessas". Um outro, com base em um argumento semelhante, negava a possibilidade da ocorrência de milagres. Contudo, nenhum dos dois afirmava ter algum tipo de conhecimento pessoal de Deus; e um deles, para suprema ironia da situação, defendia ser impossível saber se Deus existe ou não. Tem-se, então, essa situação tragicômica: pessoas que não têm qualquer conhecimento direto da personalidade de Deus, de seu caráter e de suas "opiniões", e que nem sabem se ele existe, julgam saber, não obstante, exatamente o que ele faria ou não. É como se eu, lendo no jornal que um milionário entregou todos os seus bens aos pobres, dissesse: "Isso é mentira; esse homem jamais faria isso". Quem me ouvisse provavelmente perguntaria: "Por que diz isso? Você o conhece? O que sabe sobre ele?" E eu responderia: "Nunca ouvi falar; não sei nem se esse homem existe mesmo. Mas tenho certeza de que ele não faria isso." Qualquer um me consideraria insensato por ser tão categórico. Mas muitos fazem isso com Deus, e se acham mais sábios que os demais por isso.

Isso nos mostra que só podemos fazer justiça ao conceito de "revelação" se enfatizarmos o caráter pessoal do Deus que se revela. Mas mostra também que é possível falar sobre Deus de modo pessoal e ao mesmo tempo tratá-lo como um princípio impessoal, como se faz usualmente com pessoas que se quer manter à distância.

A resposta de Deus é, porém, sempre pessoal, um autêntico ad hominem. O ateu não gosta dessa resposta, pois ela leva ao coração do Evangelho, desafiando sua pretensão de julgar com autonomia como Deus age (e se existe) analisando tudo friamente, a uma distância "segura". No momento em que se livrar dessa tola e triste presunção e se dispuser a "vir e ver", como sugeriu Filipe (João 1.46), então estará a um passo da salvação. Pois o "vem e vê" do então futuro apóstolo foi dirigido a uma pessoa humana a propósito de uma outra pessoa, ao mesmo tempo humana e divina. O que o Evangelho oferece aos homens não pode ser em nada inferior a uma relação pessoal.

13 de janeiro de 2013

Personalidade absoluta - parte 2

Dizia eu que a vida e os desígnios de uma pessoa transcendem o dualismo entre regularidade e não-regularidade. Mas o transcendem sem deixar de conter ambos os polos. O homem pode sair para o trabalho todos os dias no mesmo horário, cinco vezes por semana, onze meses por ano, sem que isso o transforme em um autômato. Sua vida pode conter muitas outras regularidades, como declarar seu amor à esposa todos os dias, almoçar na casa dos pais todo domingo, ler um trecho da Bíblia toda noite ou viajar para uma mesma região nas férias, ano após ano. A regularidade é perfeitamente normal em uma pessoa, conquanto haja casos extremos, como a proverbial pontualidade das caminhadas de Immanuel Kant. Algumas regularidades na vida de uma pessoa podem, inclusive, ser sutis o suficiente para passar de todo despercebidas por quem não a conheça muito bem.

No entanto, sempre há espaço para a quebra de todas as regularidades, exceções que podem ser ou não voluntárias. O homem que há vinte anos chega pontualmente às oito da manhã no trabalho pode não chegar hoje, porque marcou uma consulta ao dentista, ou porque um parente faleceu na madrugada precedente, ou porque sofreu um acidente no caminho, ou simplesmente porque tinha um saldo positivo no banco de horas e decidiu tirar uma folga para passear com a família. Ainda que um analista não encontre um padrão matemático (ou de qualquer outro tipo) nos eventuais atrasos desse homem, não estará, só por isso, autorizado a afirmar que eles são puramente casuais. A rede de relações e motivações é sutil e complexa demais para que alguém possa dar como sem propósito as ações de outra pessoa sem conhecê-la bem o suficiente.

Encerrei a primeira parte desta série com a constatação de que determinismo e acaso são categorias insuficientes para descrever ações e desígnios pessoais. Atividades pessoais podem parecer impessoais quando consideradas a uma distância grande o bastante. O "mal-entendido" só pode ser desfeito na medida em que a pessoa que produz as ações é conhecida. E, quando digo "conhecida", tenho em mente o sentido mais pessoal possível, o de uma relação interpessoal, e não de uma simples aquisição de informações sobre a pessoa em questão - muito embora essa última opção possa ser suficiente em alguns casos.

É nesse ponto que minhas considerações sobre a personalidade se relacionam com o ateísmo. A questão é que John Frame está coberto de razão quando insta o apologista a desafiar, de modo ostensivo e contundente, a convicção do incrédulo de que a realidade última é impessoal. Creio que muitos de nós estamos nos saindo mal nessa tarefa, e estou escrevendo esta breve reflexão para ver se esclareço, para mim mesmo em primeiro lugar, onde é possível melhorar. Estou convencido de que temos muito a aprender no sentido de extrair pleno proveito do papel da personalidade na apologética. O ponto fundamental a ser entendido e levado a sério é que o ateu deseja distanciar-se ao máximo de um encontro pessoal com Deus, e posiciona-se decididamente a uma distância "segura", a partir da qual pode olhar para o mundo criado e não ver por trás dele nenhum vestígio daquele ser pessoal terrivelmente perigoso que é o Criador. A função do apologeta (ou evangelista) cristão é levar o incrédulo a perceber isso e desafiá-lo a se aproximar dessa Pessoa para conhecê-la do modo apropriado, isto é, pessoalmente. Temos a nosso favor o fato de que o cristianismo é verdadeiro; daí decorre que o ateu não tem base real para justificar seu pressuposto de que está diante de uma realidade fundamentalmente impessoal. Mas é necessário conhecer e saber desmascarar os subterfúgios de que ele se utiliza para se convencer de sua ficção. É nesse sentido que passo a trabalhar a partir daqui.

O subterfúgio invariavelmente adotado é sugerido pela própria lógica interna do distanciamento pessoal: considerar como efeito de causas impessoais aquilo que resulta do desígnio de uma pessoa. Mas, dado que existem duas modalidades de fenômenos impessoais, o ateu será levado a alternar entre dois tipos de reducionismo, conforme o fato que lhe prenda a atenção no momento: se o fato em questão se lhe apresentar como regularidade, ele invocará o determinismo decorrente de uma lei impessoal; se for uma não-regularidade, recorrerá ao acaso. Como alternativa, ele poderá se reconhecer ignorante da verdadeira causa, mas, a despeito disso, ele incoerentemente alegará ter plena certeza de que essa causa não pode ser o Deus pessoal revelado nas Escrituras. Porém, essa não chega a ser de fato uma terceira opção, e sim apenas uma sobreposição das duas primeiras, de modo que não lhe darei mais atenção.

De um lado, o universo criado apresenta muitos fatos que podem, com maior ou menor dificuldade, ser descritos em termos de regularidades. É o caso, por exemplo, de muitos fenômenos da natureza, e também de não poucos fenômenos humanos. O ateu prontamente atribui tais fatos a leis impessoais e, com base nisso, nega a necessidade de um Criador pessoal para explicá-los. Ao fazer isso, ele implicitamente - e sem qualquer base racional para tanto - nega a Deus o direito de atuar como Legislador sobre sua criação.

Por exemplo, li na adolescência um livro de biologia que apresentava as homologias entre diferentes grupos taxonômicos como evidência de evolução, com base no argumento seguinte: se um Criador tivesse feito esses grupos separadamente, seria de se esperar que não houvesse entre eles nenhuma semelhança. É verdade que não poucos cientistas, criacionistas ou não, têm objetado desde sempre apontando para o fato óbvio de que até projetistas humanos muitas vezes fazem projetos diferentes que guardam, no entanto, certo grau de semelhança entre si. Mas o que considero mais importante, no presente contexto, é que o argumento do livro depende do pressuposto de que a personalidade não pode se manifestar de maneira regular. Chesterton contestou isso de modo belo e brilhante em Ortodoxia. Mas é suficiente, para nosso propósito imediato, relembrar algo que já afirmei: que as ações pessoais possuem tanto regularidades quanto não-regularidades. Ao criar uma divisão absoluta entre os dois aspectos e considerar só um deles como pessoal, o ateu evolucionista está indo contra toda evidência numa tentativa desesperada (e frustrada) de obscurecer a clareza da autorrevelação de Deus.

No entanto, esse mesmo ateu procederá de modo inverso ao se deparar com aqueles aspectos do mundo criado em que não pode ser discernida uma regularidade. Tais casos existem também na natureza, mas são especialmente evidentes e pungentes no caso da vida humana. Muitos acreditam, como os amigos de Jó, que a justiça de Deus deveria se manifestar como uma correlação bastante evidente entre o grau de virtude dos indivíduos humanos e o grau de felicidade ou prosperidade de que desfrutam na presente vida; que os bons deveriam ser privados dos sofrimentos intensos e das mortes tristes e dolorosas, ao passo que os perversos deveriam ser privados da vida tranquila e impune. Mas muitas vezes ocorre o contrário, como todos sabemos. E, quando um ônibus despenca ribanceira abaixo matando quarenta pessoas, certamente não podemos esperar que o único sobrevivente seja sempre, ou mesmo geralmente, o mais virtuoso dentre os passageiros. O ateu, então, triunfalmente aponta para essa falta de padrão como uma evidência clara contra a providência divina, e invoca o acaso como a verdadeira fonte daquilo que se observa. Ao fazer isso, ele inverte seu juízo anterior e passa a considerar que a personalidade se caracteriza pela regularidade, de modo que a falta desta indica a ausência daquela.

Essa flagrante contradição nos ensina várias lições importantes sobre a mentalidade ateísta. Antes de tudo, há por trás dela uma coerência profunda, que é a decisão de sempre interpretar a realidade de modo a eliminar dela, por uma via ou por outra, os vestígios de personalidade, em especial da "personalidade absoluta" cuja glória é proclamada pelos céus (Salmo 19.1). Essa rejeição da personalidade se impõe de modo irracional e arbitrário, a despeito de qualquer evidência, fundamentando-se, em última análise, no desejo de suprimir a consciência da ira de Deus contra o pecador, a qual também é revelada por aqueles mesmos céus (Romanos 1.18). E é aqui que é importante trazer aos olhos do ateu essa contradição e arbitrariedade, desafiando-o a sondar os motivos de sua escolha. Pois a grande questão é que ele raramente tem consciência de que fez uma escolha. Para ele, a impessoalidade última do real é um fato consumado, evidente, que nenhuma pessoa sensata poderia colocar em dúvida. Essa convicção está muito entranhada no pensamento materialista, e muitos até a associam a uma postura eminentemente "científica", "racional" ou "cética", sem perceber que é uma posição apriorística, irracional e dogmática.

O ateu mais comum, que é o tipo cientificista e pseudocético, demonstra isso em sua visão do que é realmente explicar algo. Por que ocorre tal ou qual fenômeno físico? Para o cristão, conquanto muitas causas secundárias possam ser apontadas, a resposta final está no decreto divino. Diante dessa resposta, contudo, o ateu franzirá a testa em sinal de desprezo e murmurará: "Ora, mas isso não é uma explicação!" Porém, se mostrarmos que tal efeito pode ser descrito por determinada equação, em harmonia com teorias físicas bem aceitas (que também são descritas por equações), então ele se dará por satisfeito. Porém, o cristão sabe que a equação tem, quando muito, um poder descritivo, não explanatório; ela jamais poderá nos dizer por que ela descreve bem alguma coisa no mundo físico. Também aqui convém desafiar frontalmente a ilusória pretensão materialista de que a personalidade pode ser dispensada sem maiores problemas.