25 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 4

Na última parte desta minha série de comentários ao artigo A autonomia da ética, do Dr. David O. Brink, resumi sua descrição do assim chamado "dilema de Eutífron". Em [3.1], o autor transfere para o Deus judaico-cristão o mesmo problema: a "doutrina dos mandamentos divinos [...] tanto admite uma interpretação voluntarista quanto uma interpretação naturalista, e o debate entre ambas tem uma história ilustre". Em [3.2] e [3.3], Brink cita Guilherme de Ockham e Tomás de Aquino como filósofos cristãos defensores do voluntarismo e do naturalismo, respectivamente.
 
Embora eu veja valor considerável na escolástica, não sou adepto dela, seja em sua vertente tomista, ockhamista ou qualquer outra. Também não sou autoridade no assunto, e admito que li pouco de Aquino e Ockham diretamente; não descarto, inclusive, a possibilidade de o Dr. Brink tê-los lido bem mais que eu. (Aliás, uma das minhas divergências em relação aos materialistas modernos é quanto à intensidade de nossa dependência da autoridade de outrem para conhecer as coisas.) Não obstante, tenho razões seguras para crer que ele não entendeu bem os dois filósofos medievais citados, e dedicarei a presente postagem a isso, não em virtude de minha admiração parcial por eles, e sim porque tais incompreensões me parecem conter indícios importantes de sua profunda dificuldade de entender o próprio cristianismo.

Comecemos por Ockham. Em [3.3], Brink diz que ele, como representante ilustre do voluntarismo, faz "o valor moral de algo consistir nas atitudes de Deus; não haveria atributos morais não fosse a vontade de Deus". O autor faz do voluntarismo "teísta" o vilão desta seção, por considerá-lo equivalente à ideia de que Deus é o fundamento metafísico da moralidade. Quatro argumentos são levantados:

1. Em [4.1], o autor adapta o argumento de Platão: "ao que parece, Deus amaria coisas boas por serem boas. As suas atitudes basear-se-iam em princípios. Se isto for verdade, o carácter que as coisas boas têm de serem aprovadas por Deus dependeria de serem boas, e não vice-versa." Eu já disse algo sobre esse argumento, e direi mais no futuro. Por enquanto, note-se apenas a ênfase na palavra "princípios"; brotam daí os próximos dois argumentos.

2. Em [4.2]: "O voluntarismo implica que todas as verdades morais dependem do que Deus por acaso aprova. [...] Assim, por exemplo, caso Deus não tivesse condenado o genocídio e a violação, estas coisas não teriam sido incorrectas, ou ter-se-iam tornado moralmente aceitáveis, caso Deus tivesse acabado por aprová-las. Mas [...] este tipo de conduta parece necessariamente incorrecto."

3. Em [4.3]: "Na verdade, parece que o voluntarista teria de entender a bondade de Deus como a sua aprovação de si próprio. Mas essa aprovação seria igualmente arbitrária e contingente. Se [...] a sua auto-aprovação reflecte uma percepção do seu próprio valor, então as suas atitudes pressupõem o que é de valor, em vez de o constituírem. A perspectiva voluntarista consistente da bondade do próprio Deus é problemática."

4. Em [4.4], um longo argumento é exposto. Creio que o exemplo a seguir é suficiente para tornar clara sua ideia: "[A] injustiça racial do sistema de apartheid sobrevinha de um conjunto complexo de restrições legais, politicas, sociais e económicas às oportunidades dos sul-africanos negros e de uma cultura de atitudes discriminatórias para com eles. Qualquer sistema social qualitativamente idêntico em todos os aspectos naturais a este sistema de apartheid seria também injusto, e qualquer sistema social que contivesse brancos e negros e que não fosse injusto teria de diferir em algumas das suas propriedades naturais (legais, políticas, sociais, económicas e psicológicas) do sistema de apartheid. Mas se as propriedades naturais de uma situação determinam as suas propriedades morais, então as suas propriedades morais não podem depender da vontade de Deus. Pois se o voluntarismo fosse verdadeiro, então duas situações poderiam ter propriedades morais diferentes mesmo que não existissem quaisquer diferenças naturais entre si. Um sistema de apartheid poderia ser injusto, mas um clone completo desse sistema não teria de ser injusto — se as atitudes de Deus perante os dois casos do mesmo tipo fossem diferentes."

Embora esse último argumento seja o mais sofisticado dos quatro, acredito que é também o mais fraco, pois, mesmo que se conceda a arbitrariedade moral de Deus, o argumento a torna maior que o necessário. Ainda que Deus seja arbitrário na escolha dos princípios morais com base nos quais julgará as situações, isso não o impede de ser coerente com os princípios já escolhidos e, dessa forma, julgar todas as situações objetivamente do mesmo modo. Além disso, mesmo o voluntarista mais extremado não precisa negar que a lei de Deus pode estar inscrita na natureza das coisas, uma vez que Deus é o Criador delas (retornarei a esse ponto adiante). A trincheira que o autor cava entre as "propriedades naturais" das situações e os padrões morais de Deus também contém, ironicamente, certa dose de arbitrariedade.

De qualquer modo, a arbitrariedade de Deus, no sentido da falta de critérios ou "princípios", está na raiz de todas as críticas do Dr. Brink ao voluntarismo. E, já que ele citou Ockham como defensor típico da tese criticada, convém mostrar que essa descrição não é acurada. Já se vão uns sete anos desde que li a excelente História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa, de Philoteus Boehner e Étienne Gilson, da qual certamente já esqueci muita coisa. Um de seus poucos defeitos é não traduzir as abundantes citações em latim (defeito só superado pelas citações intraduzidas da Teologia sistemática de Louis Berkhof, que estão em holandês); embora eu creia que entendi boa parte das citações de Ockham, não me aventurarei a traduzi-las de um idioma que não domino. Com isso, seremos obrigados a ficar apenas com trechos da exposição dos próprios autores sobre o pensamento do velho franciscano (os destaques são dos autores):

"No âmbito criatural não há lugar para qualquer 'necessidade das essências', à qual Deus tivesse que sujeitar-se. Antes, as essências são ideadas por Deus e livremente intencionadas e criadas por Ele. Entretanto, seria errôneo interpretar esta liberdade no sentido de um arbítrio puro e simples, como infelizmente se tem feito não raras vezes. Pois também em Deus há uma certa obrigação moral; mas esta não lhe vem da criatura, e sim dele próprio, exclusivamente. [...] A norma derradeira da moralidade de um ato não pode encontrar-se fora de Deus; e, sobretudo, não pode encontrar-se fora da vontade divina. O que Deus quer é bom porque Deus o quer [...]. Para compreender esta asserção, é necessário lembrar que, para Guilherme, a vontade não significa algo de distinto em Deus, senão que é idêntica à mesma essência divina [...]. Ora, [...] a criação das coisas é precedida por sua 'excogitação' e criação no intelecto divino sob a forma de conteúdos mentais. Este pensar ideativo de Deus é também a norma das essências e, portanto, do agir das criaturas, visto que a vontade de Deus se conforma ao seu conhecimento. Mas Deus é um ser que age racionalmente; logo, também o seu querer é um querer racional [...]. Portanto, o seu intelecto é a norma orientadora da sua vontade. Por isso a liberdade divina não é puramente arbitrária. Há uma 'obrigatoriedade' em Deus; ele não pode querer, nem portanto prescrever, o que envolve contradição. [...] Ockham quer atalhar o racionalismo excessivo, que transforma, com demasiada precipitação, as razões de congruência em razões de necessidade [...]. Do exposto se vê que a ética de Ockham está longe de ser uma simples imposição de um querer cego, a que a vontade humana deve conformar-se; é certo, porém, que ela implica uma ancoragem mais forte da moralidade na esfera pessoal, ao invés de baseá-la na esfera anônima da 'recta ratio' ou da natureza, e do agir conforme à natureza."

Não é difícil ver que, isoladamente, algumas sentenças de Boehner e Gilson tornam Ockham semelhante à descrição que Brink faz dele. Mas o conjunto deixa claro que este desvinculou indevidamente a vontade divina de sua essência, conhecimento e razão, que são inseparáveis no pensamento do escolástico. O fruto de tal separação já não é um ser pessoal, e sim um Fado, de modo que já não corresponde ao Deus bíblico, e tampouco ao escolástico. O autor não entendeu bem as sutilezas dos posicionamentos filosóficos de Ockham, nem demonstrou a necessária sensibilidade às suas motivações. Resultou de tudo isso uma caricatura simplória do pensamento do franciscano. Deve ser dito em defesa de Brink que de fato existem cristãos cujas ideias sobre o tema são muito bem descritas por essa caricatura. E também que as palavras de Boehner e Gilson patenteiam que essa leitura equivocada é também a de muitos outros. Mas, do ponto de vista do tema do artigo, não se pode dizer seriamente que Brink chegou a refutar o voluntarismo "teísta", pois fazer isso equivaleria a refutar nada menos que o melhor voluntarismo "teísta" disponível, que o autor sequer chegou a compreender e representar de modo adequado. A afirmação de que "não haveria atributos morais não fosse a vontade de Deus" é imprecisa e simplista; para Ockham, a despeito de suas ênfases, o fundamento da moral não é arbitrário, e sim a natureza de um Absoluto pessoal.

Tudo isso é ruim, mas o entendimento do Dr. Brink sobre o pensamento de Tomás de Aquino me parece ainda pior. Em [3.2], o fundador do tomismo é descrito como um adepto do naturalismo que, como tal, 1. "aceita a autonomia da ética", 2. afirma "que as propriedades morais de pessoas e situações dependem da sua natureza" e, assim, 3. "nega efectivamente ao teísmo um papel metafísico". Para o naturalismo ético, 4. "as qualidades morais não pressupõem um Deus, apesar de um Deus perfeitamente sábio e bom aprovar todas as coisas boas e correctas, e apenas essas coisas". Conheço o tomismo um pouco melhor que o ockhamismo, e estou certo de que todos esses itens contradizem frontalmente o pensamento de Tomás. Por essa caracterização, Tomás não era um naturalista, tanto quanto Guilherme não era um voluntarista. Não pretendo me delongar na demonstração disso. O filósofo Josef Pieper, em seu interessantíssimo artigo Luz inabarcável: o elemento negativo na filosofia de Tomás de Aquino, escreveu algo importante sobre o pensamento do dominicano. A ênfase do artigo é mais epistemológica que ontológica, mas ao mesmo tempo demonstra a forte conexão entre as duas coisas no pensamento de Aquino (os destaques são do autor):

"[...] há um pensamento fundamental, a partir do qual se determinam praticamente todos os elementos estruturadores de sua visão-de-mundo: o conceito de Criação. Ou, mais precisamente, o conceito de que não há nada que não seja creatura, a não ser o próprio Creator. E: que a 'criaturalidade' determina toda a estrutura interna da creatura. [...] o conceito de Criação determina e perpassa a estrutura interna de praticamente todos os conceitos fundamentais da doutrina filosófica do ser em Tomás de Aquino. [...] Tomás concordaria, em termos, quanto àquela objeção comum aos tempos modernos, continuamente reafirmada de Bacon a Kant: não se pode chamar de verdadeira a realidade, mas, no sentido rigoroso e estrito, apenas o pensado. Retrucaria ele que, sim, é plenamente oportuno considerar que somente o pensado pode chamar-se, em sentido estrito, 'verdadeiro'; mas: as coisas reais são, de fato, algo pensado! O serem pensadas é muito essencial às coisas, prosseguiria Tomás; elas são reais por serem [...] criadoramente pensadas [...]: isto deve ser entendido de modo extremamente literal, e não, em algum sentido meramente 'figurado'. [...] Ao que parece, Tomás nem ao menos conseguiu dissociar estas duas ideias: a de que as coisas possuem um 'quê', uma qüididade, um determinado conteúdo essencial e a de que esta qüididade das coisas é fruto de um pensamento projetador, pensante e criador. [...] O que há de comum entre Sartre e Tomás é [...] o pressuposto de que não se possa falar em essência das coisas, a não ser que esta seja expressamente entendida enquanto creatura. Mas, precisamente ao caráter 'ser-pensado' das coisas - que se deve ao Creator - é que Tomás se refere, quando fala da verdade, como inerente a toda realidade."

Em um pensamento dominado por tais pressupostos, não vejo de que maneira se poderia falar em uma autonomia da ética, a qual demanda princípios morais que estariam acima de Deus e não seriam, portanto, nem Creator nem creatura. Nem vejo como se poderia falar em "propriedades morais de pessoas e situações" e em "qualidades morais [que] não pressupõem um Deus" como se essas propriedades e qualidades não existissem tão somente em virtude de serem pensadas por Deus; ou que o Criador, sendo o fundamento metafísico de tudo, inclusive das leis que regem a realidade criada, não o seria também da lei moral. A leitura que Brink fez de Tomás é, pois, ainda mais equivocada que seu entendimento de Ockham.

18 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 3

Na segunda parte da presente série, fiz comentários em torno da seção introdutória do artigo A autonomia da ética, de David Owen Brink. A seção seguinte está em [2.2-2.3], chama-se Papéis morais diferentes para a religião e nela o autor distingue "três papéis diferentes que Deus poderá desempenhar na moralidade": primeiro, "Deus desempenha um papel metafísico na moralidade se a existência e natureza das exigências morais dependem da sua existência e vontade"; segundo, Deus "pode desempenhar um papel epistemológico se nos fornecer uma fonte essencial de indícios sobre o que é moralmente de valor"; e, por último, "Deus desempenha um papel motivacional na ética se nos fornece um incentivo necessário ou razão para ser moral". A distinção é deveras pertinente, e é em momentos como esse que o autor revela o melhor de si. Mas, sem que haja surpresa nisso, ele nega a Deus todos os três papéis, e a maior parte do espaço do artigo é dedicada a isso.

Nessa seção há alguns outros elementos interessantes. Como, porém, eles serão melhor expostos e discutidos adiante, prefiro adiar sua análise e ir logo para a seção seguinte, intitulada Voluntarismo, naturalismo e o problema de Êutífron, [2.4-6.1], que se dedica à refutação do primeiro papel de Deus na moralidade, o metafísico, que o autor considera o "papel que tem mais relevância para a autonomia da moral". Em outras palavras, vamos entrar agora na parte mais importante do artigo. Por isso mesmo, dedicar-me-ei a ela com especial zelo: sua análise começa nesta postagem, e deverá continuar pelas próximas quatro.

Brink começa essa seção, em [2.4], citando um trecho relevante do diálogo Eutífron, de Platão, no qual se busca definir a piedade. Eutífron a define como "aquilo que (todos) os deuses amam", e Sócrates mostra que isso pode significar duas coisas diferentes: que "Algo é piedoso porque os deuses o amam" ou "Algo é amado pelos deuses porque é piedoso". Tal distinção é relevante, dentre outras razões, porque é em conexão com ela que o Dr. Brink introduz uma terminologia importante: a primeira possibilidade é chamada de "voluntarismo, porque faz a piedade de algo depender da vontade de Deus", enquanto a segunda é denominada "naturalismo, porque faz a piedade de algo depender da [...] natureza" desse algo. Sócrates convence Eutífron de que o naturalismo é preferível, pois "o carácter que as coisas piedosas têm de serem amadas pelos deuses depende de serem piedosas, e não vice-versa". Desse modo, a definição da piedade como "aquilo que os deuses amam" é ruim, já que "formula um sintoma ou correlato, e não a causa ou essência da piedade".

No contexto pagão vigente, o argumento de Platão faz muito sentido, uma vez que os deuses gregos, embora sejam poderosos e imortais, não podem preencher o papel de um absoluto metafísico - e tampouco, consequentemente, o de um absoluto moral. Eles são parte do cosmos e, portanto, também surgiram como produto indireto do caos primevo; moldaram e mantêm a ordem do universo, mas não estão acima dele e não são infinitos ou infalíveis em nenhum sentido. São, no fim das contas, apenas sujeitos fortões, bonitões e grandalhões. No imaginário moderno, estariam mais próximos de civilizações alienígenas avançadas, sobretudo do tipo que se mete ocasionalmente na história do nosso planeta, como é o caso dos ETs da célebre tetralogia de Arthur Clarke. Dentro da estrutura de plausibilidade politeísta, não há razão forte para se crer na infalibilidade moral ou cognitiva dos deuses, e muito menos para se supor que eles sejam a fonte metafísica última, da moralidade ou de qualquer outra coisa. Há, no pensamento grego, leis que estão igualmente acima dos deuses e dos homens.

Em virtude disso, as semelhanças entre os deuses gregos (ou pagãos em geral) e o Deus do cristianismo são bem mais superficiais do que muitos supõem, enquanto as diferenças são abissais. Não se pode dizer seriamente que a diferença entre o politeísmo e o monoteísmo reside tão somente no número de deuses admitidos. Essa é, em certo sentido, a mais branda de todas as diferenças. O Deus judaico-cristão não é só um ser pessoal que nos governa; é também um absoluto metafísico. Quanto ao primeiro aspecto, ele se assemelha, de fato, aos deuses gregos; mas, quanto ao último, o lugar de Deus só pode ser comparado ao do Fado, o Destino que rege implacavelmente tanto os homens quanto os deuses, pois é esse o absoluto metafísico da cosmovisão grega; porém, ao contrário do Deus cristão, tal absoluto não é pessoal, e é isso o que torna o politeísmo, em última análise, semelhante ao ateísmo. Do ponto de vista cristão, o paganismo antigo e o materialismo moderno (mas não só eles) cometem o mesmo erro básico, o de colocar um mero princípio impessoal no governo do universo e atribuir à personalidade, divina ou humana, um papel secundário. Ambos desconectaram o Absoluto da Personalidade.

Brink não percebe nada disso. Em [3.1], ao transpor o argumento de Sócrates para o monoteísmo judaico-cristão, ele declara expressamente não ver senão "diferenças superficiais" entre os dois casos. Quando ele pensa no cristianismo, vê apenas um politeísmo que, por algum motivo misterioso (falta de imaginação, por exemplo), sofre de severa escassez de deuses. Ele não entende o caráter absoluto da personalidade no cristianismo, e em momento algum argumenta contra ela - o que torna seu artigo um caso particular do que discuti em minha recente série Personalidade absoluta (em três partes: 1, 2 e 3). Se lhe for concedido o direito à ignorância nesse ponto, ele já terá ganho o debate pela simples definição dos termos, e atribuir ao Deus cristão um papel metafísico para a moralidade fará tão pouco sentido quanto atribuí-lo a Apolo ou aos Primogênitos de Clarke. De agora em diante, uma parte significativa (embora não necessariamente majoritária) do meu esforço argumentativo consistirá em não lhe conceder esse direito. Como não tenho nada a esconder de ninguém, faço minhas desde já as palavras de John Frame em Apologética para a glória de Deus. Elas definem bem meu objetivo:

"Somos chamados a permanecer firmes contra a pressuposição quase universal de que o mundo é fundamentalmente impessoal. Não podemos permitir que passe a oportunidade sem mostrar ao incrédulo que não é correto assumir o que ele geralmente assume - que é claro que a realidade última é impessoal. Temos de desafiá-lo a considerar a alternativa."

Filosoficamente, pode-se dizer que o Dr. Brink não percebe a relevância, para o que está discutindo, da diferença de estatuto e função ontológicos entre os deuses pagãos e o Deus dos monoteísmo judaico-cristão (o islamismo é um caso à parte, e deveras complexo, que não vou discutir aqui). Esse problema vem se somar a outro que levantei no post anterior: a total falta de percepção de que é necessário identificar o fundamento metafísico da objetividade moral e justificá-lo como tal. Juntos, esses dois problemas bastam ao menos para sugerir que o autor do artigo é um filósofo com treinamento e aptidões bastante limitados para a metafísica e a ontologia, o que me parece ser um problema comum a várias das tradições que o influenciaram, como o utilitarismo de Mill e pelo menos boa parte da filosofia analítica.

Não estou dizendo isso apenas por discordar das posições do autor; há vários filósofos, antigos e modernos, cujas posições no terreno da metafísica eu considero nada menos que absurdas, sem que isso me impeça de ver em suas respectivas elaborações metafísicas o resultado de uma longa e interessada reflexão. Não vejo isso no Dr. Brink; ele me parece não apenas ignorar o assunto, mas fazê-lo com enorme satisfação, sem jamais desconfiar que está perdendo algo importante com isso. Ao expressar essa impressão, também não é meu objetivo estabelecer um argumento ad hominem; na verdade, não estou sequer levantando um argumento de qualquer tipo. Faço apenas um simples diagnóstico das causas que impedem o autor de atingir o objetivo de seu artigo. Nas próximas postagens, mostrarei exemplos do que vejo como efeitos deletérios dessas limitações sobre a qualidade de sua argumentação.

7 de abril de 2013

Deveres sem pessoas - parte 2

No final da primeira parte, afirmei que ainda não decidira "que estratégia expositiva e argumentativa" seria utilizada em meus comentários ao artigo do Dr. David O. Brink, A autonomia da ética. Eu não sabia se era melhor seguir a sequência ditada pelo artigo ou organizar os tópicos segundo meus próprios critérios de relevância. A segunda ideia me pareceu atraente num primeiro momento por haver no artigo alguns temas, méritos e equívocos que são recorrentes ao longo de todas as quinze páginas. No entanto, o modo de organização do autor tem suas vantagens, e creio que, ao segui-lo, facilitarei a vida do leitor que queira ir lendo-o aos poucos, paralelamente aos meus comentários. Com isso, alguns temas serão abordados diversas vezes ao longo da presente série, e cada vez, assim espero, acrescentará algo ao que já havia sido dito. Não obstante, reservo-me o direito de sair algumas vezes da sequência para explorar certas conexões que considero relevantes. Hoje lidarei com a seção introdutória do artigo, [1.1-2.1].

O parágrafo inicial do artigo, [1.1], é muito importante, pois apresenta pressupostos úteis para a compreensão de todo o texto, e antecipa também alguns de seus pontos fortes e fracos. Ali o autor declara seu compromisso "profundo" com a "objetividade da ética", no sentido de que há "factos ou verdades sobre o que é bom ou mau [...] independentemente das crenças morais ou das atitudes de quem os avalia". Sem isso, a ética seria subjetiva. O autor deixará claro, sobretudo em [6.1], que, para ele, essa independência precisa existir também em relação à vontade de Deus. Para mim, essa dualidade entre subjetividade e objetividade não faz sentido na descrição do ser de Deus. Mas ainda estamos na introdução, e haverá momentos melhores para discutir isso. Para não complicar desde já, aceitarei provisoriamente essa definição de objetividade aplicada aos seres humanos. O autor levanta então três pontos, todos ligados ao comprimisso com a objetividade da ética.
 
1. Tal compromisso "faz parte de um compromisso com a normatividade da ética. Os juízos morais exprimem afirmações normativas sobre o que devemos fazer e valorizar." Concordo com isso. Se a moral, em algum sentido, não estiver acima do indivíduo, não pode impor deveres sobre ele. Sem objetividade não há normatividade.
 
2. "A normatividade [...] pressupõe a falibilidade, e a falibilidade implica a objectividade." Também aqui concordo, e aprecio a clareza e a concisão com que o autor expressou essa ideia. C. S. Lewis afirmou algo semelhante em Cristianismo puro e simples, do seguinte modo:

"Discutir significa tentar mostrar que o outro está errado. E não haveria sentido em tentar fazê-lo a menos que houvesse algum tipo de acordo sobre o que é Certo e Errado; assim como não faria sentido dizer que um jogador de futebol cometeu uma falta se não houvesse algum acordo sobre as regras do futebol."

Não há possibilidade de erro sem um padrão do que é correto e deve ser reconhecido como tal, e nesse sentido a falibilidade moral do homem pressupõe tanto a objetividade quanto a normatividade da ética.

3. "Claro que este pressuposto pode estar errado. Poderá não haver padrões
morais objectivos. O nosso pensamento e discurso morais podem estar sistematicamente errados. Mas esta seria uma conclusão revisionista, a aceitar apenas em resultado de argumentação alargada e irresistível a favor da ideia de que os compromissos da objectividade da ética são insustentáveis."


Aqui a coisa começa a esquentar. O autor sabe que poucos ateus estão dispostos a um compromisso com a objetividade da ética. Eu mesmo conheço bem poucos ateus assim, sendo a filósofa liberal Ayn Rand talvez a mais famosa. Quase todos assumem alguma teoria subjetiva (ou cultural, isto é, intersubjetiva) da moral e, ao fazê-lo, embora geralmente não se deem conta disso, abrem mão da possibilidade de uma visão consistente sobre a normatividade da ética e a falibilidade humana - os pontos 1 e 2 acima, respectivamente. De algum modo, o mesmo ateu que acaba de estabelecer um domínio de validade restrito para o conteúdo da lei moral condenará, no instante seguinte, o procedimento de alguém que, segundo sua própria teoria, não estava sujeito àquele domínio. O momento não é apropriado para uma discussão ampla do problema, mas devo mencionar pelo menos um exemplo comum do que tenho em mente: o ateu para quem não há moralidade possível fora do consenso cultural e social, mas que se apressa em condenar a (real ou imaginária) execução de ateus pela Inquisição medieval. Ora, se sua teoria fosse correta, não só os inquisidores estariam moralmente justificados, pois seu procedimento era bem aceito socialmente, mas também o ateu queimado na fogueira seria imoral, pois o ateísmo não era tolerado por aquela sociedade.

Brink claramente tem uma percepção correta desse tipo de problema, e é por isso que fez questão de conectar a normatividade à objetividade da ética. O ateu que acabo de citar não vê essa conexão: ele pretende abrir mão da objetividade da ética mantendo, no entanto, sua normatividade, e é só com base nessa incoerência que pode condenar o inquisidor e justificar o ateu executado. Sem objetividade, a moral se torna simples questão de gosto, e mesmo um gosto compartilhado por quase todos não tem caráter normativo. No caso, a unanimidade da cultura moderna contra a criminalização do ateísmo não impõe nenhum dever sobre o inquisidor do século XIII. Se ele estava errado, só pode ter sido por alguma outra razão. Brink é consequente nesse ponto, e só isso já basta para colocá-lo em situação de vantagem sobre quase todos os ateus que conheço.

Também vejo justiça em sua afirmação de que a objetividade da moral deveria ser negada "apenas em resultado de argumentação alargada e irresistível". Ao menos dentro de meu reconhecidamente limitado universo de leituras, nunca vi um ateu fazendo isso. Quase todos a descartam sumariamente depois de algumas linhas, em que aludem à poligamia ou ao canibalismo praticados não sei onde, com a mesma sutileza metodológica com que Allan Kardec, em O evangelho segundo o espiritismo, provou que João 3.3 ensina a reencarnação. Tal atitude é nada menos que inconsequente, na medida em que a normatividade e a possibilidade coerente de uma falibilidade moral humana objetiva são jogadas pela janela sem que os que o fazem se deem conta disso.

Por outro lado, há um sentido em que considero os ateus que acabo de criticar mais coerentes que o Dr. Brink. Se este tem uma melhor percepção da natureza da lei moral, aqueles têm dela uma visão mais consistente com sua ontologia materialista. Isso se manifesta no próprio argumento da não-objetividade da lei moral com base na falta de consenso entre as diversas culturas. Por que a falta de consenso seria uma evidência de não-objetividade? Não há consenso entre as culturas sobre muitas coisas, como a origem do homem, a idade do universo, a natureza dos astros e muitos outros temas acerca dos quais o ateu moderno não é nem um pouco relativista. Portanto, a falta de consenso não é em si mesma um bom argumento, e essa diferença de posturas deve se basear em algo mais profundo.

Por que o materialista aceita o argumento da falta de consenso contra a objetividade da moral, mas não, por exemplo, contra a objetividade da idade atribuída pela ciência ao universo material? Precisamente porque é um materialista. Para ele, só a matéria tem existência objetiva, de modo que as questões relativas a ela podem, ao menos em princípio, ser investigadas racionalmente, e a falta de consenso, que pode durar séculos, milênios ou para sempre, de modo algum depõe contra a existência de uma verdade objetiva. Mas juízos morais não são feitos de matéria. É só por isso que o ateu geralmente não se dispõe a esperar milênios, nem séculos, e muitas vezes nem cinco minutos, antes de declarar inúteis quaisquer tentativas de estabelecer uma visão objetiva da moralidade. O materialismo é causa, e não consequência, de uma visão subjetivista da ética. Consequentemente, o apelo à falta de consenso moral como argumento contra a existência de uma lei moral objetiva (de origem divina, por exemplo) é nada menos que um argumento circular.

Como não sou materialista, minha ontologia não me induz a engolir com tanta facilidade a crença na subjetividade da moral. De meu posto de observação, portanto, vejo como positiva a censura velada do Dr. Brink à falta de rigor argumentativo e à má percepção da realidade moral dos que negam a objetividade da ética. Mas, dados os pressupostos metafísicos do materialismo, a adesão apressada e irrefletida de seus partidários ao subjetivismo ético me parece mais justificável que a persistência de Brink, que muitos ateus poderão ver como resquício de uma ontologia "religiosa" furada. Sua tentativa de lançar sobre eles o ônus da prova só faria sentido fora do materialismo que ambos os lados compartilham.

Essa questão se relaciona ao que vejo como um dos problemas fundamentais da abordagem de Brink, do qual voltarei a falar em várias ocasiões: em [9.4], por exemplo, é dito expressamente que "as exigências da moralidade têm uma fonte metafísica que não a vontade de Deus". Essa mensagem é transmitida em vários momentos, de modo explícito ou não. Mas em momento algum do artigo existe sequer o mais leve esforço de dizer que fonte metafísica é essa; sempre que o autor a menciona, o faz apenas para dizer, de algum modo, que Deus não tem nada a ver com isso. Mas, ainda que ele tivesse razão, seria temerário estabelecer a objetividade moral sobre um fundamento metafísico absolutamente desconhecido, sem explicar como ele se encaixa em uma ontologia materialista - ou seja, explicar como um universo feito apenas de energia, tempo, espaço e leis físicas pode conter uma moral objetiva. O autor não dá sinais de perceber isso como um problema.

Não devo, porém, ser injusto. O artigo informa em [n3] que Brink tem um livro inteiro destinado à "defesa sistemática da objectividade ética". Trata-se da obra Moral Realism and the Foundations of Ethics [O realismo moral e os fundamentos da ética], de 1989. É claro que não li o livro, e por isso a crítica do parágrafo anterior não deve ser tomada como absoluta. Mas sinto-me à vontade para fazer essa crítica com base em duas razões. A primeira é que o site da Amazon traz uma resenha muito bem escrita (a melhor que encontrei) que inclui um resumo do livro, e tudo nela sugere que o autor toma ali um caminho muito diferente, passando longe dos problemas que acabo de levantar. E a segunda é que, ainda que o autor tenha se pronunciado sobre eles em outro lugar, é sintomático que ele não tenha julgado relevante fazer algum comentário mais direto, ainda que breve, sobre a pertinência do problema para o tema específico do artigo.

Em resumo, o que estou tentando mostrar com meus comentários sobre [1.1] é que o ateísmo leva necessariamente a um de dois becos sem saída no terreno da ética: há os que, como Brink, buscam fazer justiça ao senso moral e privilegiam a consistência de sua filosofia ética, mas, enquanto fazem isso, fingem que não vivem em um cosmos de pura matéria. Mas muitos se mantêm fiéis e consistentes com o materialismo, exceto ao condenar moralmente aquilo que consideram condenável - como alguns aspectos do cristianismo, por exemplo.

No restante dessa seção introdutória, [1.2-2.1], há alguns detalhes que deixarei para comentar futuramente. Mas esse trecho expõe as motivações para o estabelecimento da autonomia da ética, que são basicamente três:

1. Em [1.2], o autor se queixa do "apelo frequente a académicos religiosos ou membros do clero como autoridades em questões moralmente significativas", devido à ideia de que "a única maneira de compreender os padrões morais objectivos é em termos de mandamentos divinos", do qual dependeriam também os "direitos constitucionais", "apesar da separação entre igreja e estado".

2. Em [1.3], o Dr. Brink diz que entender a moral dessa forma é perigoso porque, "se o teísmo for falso, então o pressuposto de uma ética objectiva fracassa, e temos de acolher o niilismo moral [...] ou o relativismo", e assim "rejeitar a possibilidade de uma moralidade secular objectiva".

3. Em [2.1], é dito que a conclusão de que "a objectividade da ética não fica refém da verdade do teísmo" é "bem-vinda na medida em que o teísmo é em si um compromisso problemático".

Prefiro comentar essas motivações no final, depois de analisar os argumentos do Dr. Brink em defesa da autonomia da ética. Mas creio que é conveniente explicitá-las desde já, para entendermos o que ele está colocando em jogo. Ele acha importante estabelecer a autonomia da ética porque sem ela somos obrigados a escolher entre o relativismo ou o niilismo (seculares, mas não objetivos) e o "teísmo" (objetivo, mas não secular), e nenhuma das opções lhe parece desejável. Em especial, evitar o compromisso com uma moral teísta é necessário para salvaguardar a "separação entre igreja e estado" e reduzir o poder cultural e político dos líderes religiosos. Além disso, o ateu poderá viver de modo intelectualmente mais confortável, sem se inquietar muito com o "teísmo".

Admiro a transparência do autor na expressão de suas motivações pessoais, ainda que ele o faça em tom acadêmico, de modo indireto e impessoal. Essas motivações são de natureza cultural, política e religiosa. Naturalmente, suas motivações só apelarão para o coração dos leitores na medida em que eles compartilharem de seus compromissos fundamentais. O relativista, o niilista e o "teísta" poderão simplesmente discordar da pertinência (ou mesmo da correção moral, exceto no caso do niilista) das motivações do Dr. Brink. De qualquer modo, meu interesse nessa parte é sobretudo negativo: o autor admite que, sem a autonomia da ética, não resta lugar para uma moralidade secular objetiva. Concordo com ele e, uma vez mais, admiro sua argúcia. Apenas gostaria de saber qual das três alternativas ele escolheria se fosse convencido da falsidade de sua "autonomia da ética".