8 de setembro de 2013

Deveres sem pessoas - parte 12

Na última postagem dei início aos comentários sobre a seção Indício moral e vontade divina do artigo A autonomia da ética, em que o filósofo ateu americano David Owen Brink argumenta que Deus não é necessário para a objetividade moral. A referida seção ataca especificamente a questão do papel epistemológico de Deus na moralidade. No parágrafo [10.1], o penúltimo da seção, Brink apresenta seu segundo argumento, defendendo que não temos uma revelação divina clara o suficiente para guiar nossa percepção da realidade moral. Esse argumento é dividido em três partes, e na postagem anterior eu havia analisado as duas primeiras. Agora, portanto, passo à seguinte.

A terceira parte do segundo argumento de [10.1] é um pouco mais complexa que as anteriores, mas nem por isso menos simplória. Nos "casos em que a tradição e a escritura falam inequivocamente", Brink questiona "se o que é afirmado deve ser interpretado literalmente". Seguem-se dois exemplos, cujo efeito retórico depende primariamente da confiança do autor em que os leitores do artigo os considerarão nada menos que absurdos ou ridículos. Ambos são retirados de Deuteronômio (21.18-21 e 22.13-21, respectivamente) e dizem que "os pais podem e devem matar à pedrada os filhos rebeldes" e que "a comunidade pode e deve apedrejar até à morte qualquer esposa cujo marido descubra que não era virgem quando do casamento".

Digo que esse argumento é simplório porque ele reduz demais o problema ao ignorar, por exemplo, que a aceitação da Bíblia como Palavra de Deus não nos obriga a observar toda a letra da Lei de Moisés. À luz do conceito dos pactos sucessivos (tratados, por exemplo, pelo teólogo O. Palmer Robertson em seu clássico O Cristo dos pactos), entender a questão como simples opção entre a literalidade ou não de certas normas jurídicas veterotestamentárias significa nada menos que privar-se de entender a doutrina cristã ao enquadrá-la em categorias que não lhe são próprias. Esse modo de entender (ou, melhor dizendo, de não entender) a Bíblia constitui analfabetismo teológico na medida em que faz abstração da questão importantíssima (e algo controversa) de determinar o que é provisório e o que é permanente na antiga dispensação. Esse é um tópico sempre presente no pensamento cristão, como demonstram as discussões narradas nos Atos dos Apóstolos e a Epístola aos Hebreus inteirinha. Brink não tem o direito de discorrer sobre a literalidade das leis do Antigo Testamento ignorando um tema tão básico. Mas o fato é que o ignora completamente.

Contudo, eu havia dito que essa terceira parte do segundo argumento pode, por sua vez, ser subdividida em duas partes. A primeira é a discutida no parágrafo anterior. Mas a segunda também é deveras interessante e reveladora, pois, em vez de tratar de questões morais, como o restante do artigo, faz um desvio em direção às ciências naturais: "uma leitura literal do Antigo Testamento fornece uma data para a idade da Terra e afirmações sobre a história das espécies vegetais e animais que é contradita pelos registos fósseis e geológicos". Uma afirmação tão peremptória e fora de escopo não merece que eu me dedique a examinar sua veracidade, o que exigiria uma atitude incompatível com tamanho simplismo. É suficiente, para os propósitos desta série, examinar o papel retórico dessa sentença, que busca dar plausibilidade à conclusão do parágrafo: "Temos mais razões para aceitar as afirmações científicas e morais seculares do que para aceitar uma leitura literal destes textos religiosos particulares". O objetivo retórico evidente dessa manobra é emprestar (por osmose) às suas especulações "morais seculares" o prestígio que as ciências naturais possuem na cultura ocidental contemporânea e, por consequência, vestir nos críticos religiosos dessas mesmas especulações a famosa caricatura do fundamentalista de mente estreita que rejeita fatos científicos porque contradizem sua fé.

Não é difícil ver que uma associação tão superficial e gratuita como essa é muito pouco para caracterizar como científicas as elucubrações delineadas na seção Variedades de naturalismo. Já demonstrei isso em minhas críticas ao conteúdo daquela seção (nas partes 8, 9 e 10 desta série), e não tenho nada a acrescentar. A tática é pueril o suficiente para que sua aparição em um artigo com tantas qualidades possa ser considerada decepcionante. Não obstante, desejo fazer apenas uma observação sobre a conduta argumentativa do Dr. Brink nesse ponto. Como já observei na postagem inicial da presente série, ele mesmo se define em sua página pessoal como estudioso de "teoria ética, história da ética, psicologia moral e jurisprudência", sendo portanto, um amador tanto em ciências naturais quanto em teologia. É razoável, portanto, afirmar que suas opiniões sobre ambos os temas se baseiam amplamente na autoridade de pessoas que os estudaram de modo bem mais profundo que ele.

Dada essa condição, seria razoável também esperar que o Dr. Brink fosse igualmente cônscio de sua ignorância em ambas as áreas, e não fosse mais desconfiado de uma classe de especialistas que de outra. Ou, caso isso não ocorresse, seria de se esperar que ele tivesse consciência do fato como algo que necessita de explicação, e então a fornecesse no artigo, ainda que em uma sentença breve e simplória, como é seu costume ao tratar de temas que ignora. Afinal, Brink não tem conhecimento de primeira mão sobre os pormenores técnicos e científicos dos debates entre evolucionistas e criacionistas, ou entre evolucionistas e evolucionistas, assim como desconhece os pormenores culturais, históricos e teológicos pertinentes ao esforço de harmonização de contradições bíblicas.

Contudo, isso não acontece. Além de fazer afirmações sobre ciência e teologia com a mesma desenvoltura com que discorre sobre seus temas de especialidade, Brink desconsidera a autoridade acadêmica dos teólogos e outros estudiosos cristãos com a mesma naturalidade com que aceita a dos cientistas e outros estudiosos seculares. Quase todos os secularistas que conheço acham essa parcialidade bastante natural e justa. Mas não é, e o Dr. Brink, ao adotá-la, apenas demonstra que é um dogmático da pior espécie: a dos que sequer têm consciência de que possuem dogmas; para eles, seus dogmas são a verdade única e universal, que só um idiota completo é capaz de colocar em discussão. Mas tal procedimento não se justifica racionalmente. Afinal, Brink pretende provar, de um ponto de vista racional e neutro, que Deus não tem um papel epistemológico na moral. Nesse caso, pressupor que os cristãos estão errados e os secularistas estão certos em temas epistemológicos gerais não passa de uma petição de princípio, na melhor das hipóteses.

Na verdade, o problema do Dr. Brink é um pouco mais grave do que dei a entender ao contrapor os intelectuais cristãos aos secularistas. Justiça seja feita: a autoridade da ciência, apesar de tudo, não é uma unanimidade entre estes últimos. No brevíssimo artigo O provincianismo neo-ateu, publicado na revista Época há vários anos, Marcelo Cavallari afirmou que "Richard Dawkins, Daniel Dennett e os demais autores que se dedicam ao recente ateísmo militante parecem figuras saídas do século XIX", pois "escrevem como se a filosofia da ciência não existisse". Não sei quanta semelhança há entre os neo-ateus citados e o Dr. Brink; mas, nesse ponto, a identidade é perfeita. Depois de um século repleto de figuras como Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Michael Polanyi e Michel Henry - apenas alguns dos eminentes pensadores não-cristãos que fizeram críticas avassaladoras à concepção tradicional de ciência, aquela que ainda aprendemos na escola -, o papel que Brink desempenha aqui não pode ser considerado menos que ridículo. Embora pretenda dar aulas de epistemologia, ele desconsidera por completo os debates internos do próprio secularismo sobre os méritos e deméritos da ciência moderna - coisas que aparecem qualquer obra introdutória básica sobre filosofia da ciência.

Porém, mais que revelar a ignorância do autor sobre temas acadêmicos relevantes, o parágrafo [10.1] - que, como já afirmei no último post, é um dos mais interessantes do artigo - revela suas lealdades (palavra muito importante que já apareceu na quinta parte desta série) e o papel delas em sua cosmovisão. Como observei na segunda parte, Brink é bastante honesto quanto às motivações que o impelem a defender a autonomia da ética: além de evitar o relativismo e o niilismo morais, ele deseja também evitar o compromisso com o "teísmo", salvaguardar a "separação entre igreja e estado" e combater a influência cultural e política dos religiosos. A argumentação assimétrica desenvolvida em [10.1] mostra o quanto ele está comprometido com essas metas, e o quanto elas influenciam sua conduta. É importante que fique claro que as motivações vêm necessariamente antes da argumentação e determinam os critérios pelos quais a questão é avaliada - aquilo que os sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann chamam de "estrutura de plausibilidade". A pretensão de ter excluído o papel epistemológico de Deus na moralidade por meio da argumentação racional e imparcial é uma ilusão que o Dr. Brink alimenta porque não tem suficiente senso autocrítico. Seus compromissos políticos, culturais e espirituais constituem causa, e não consequência, de sua rejeição da moral "teísta".

Antes de passar ao próximo parágrafo e encerrar meus comentários a essa seção, pretendo chamar rapidamente a atenção para o padrão que se estabelece aqui. Comentando as atitudes de Brink na postagem anterior, aludi várias vezes à sua "preguiça" de resolver certas dificuldades que se apresentam no estudo da moralidade sob pressupostos "teístas" (na prática, cristãos), em contraste com sua firme convicção de que dificuldades análogas na moral secular não constituem problema. E mostrei na segunda postagem da série que, embora de modo inconsistente com seu materialismo, o autor conseguiu fugir a essa tentação até certo ponto; agora, no entanto, isso não aconteceu. Aqui, como lá, essa preguiça altamente seletiva brota de certos compromissos prévios com uma ontologia e uma epistemologia determinadas. Decorre daí a alegação, tantas vezes repetida, de que é difícil conhecer isto ou aquilo. De fato, dados os pressupostos do ateísmo, conhecer o que quer que seja é impossível, e não apenas difícil; o fracasso retumbante da seção Variedades de naturalismo é um ótimo exemplo disso. Mas e daí? Os cristãos não estão comprometidos com os pressupostos seculares que o autor, de modo inconsciente e dogmático, introduz a todo instante como obviedades. Assim como a incapacidade da ciência de provar a existência de Deus revela uma limitação da ciência, e não de Deus, a incapacidade do Dr. Brink de encaixar a moral cristã em seus critérios seculares revela um problema desses critérios, e não daquela moral. Se o próprio Dr. Brink sequer desconfia dessa possibilidade, é porque, uma vez mais, ele é dogmático demais para suspeitar de si mesmo.

Pelas razões que já expus, a seção Indício moral e vontade divina é, em minha opinião, a mais lamentavelmente pobre do artigo. Mas não quero encerrar meus comentários sobre ela sem fazer a Brink um elogio merecido. Em [10.2] ele comenta que uma solução comum aos problemas apresentados no parágrafo anterior consiste em "sancionar a interpretação da tradição e da escritura que fornecem a concepção moralmente mais aceitável da vontade de Deus". Mas Brink é esperto o suficiente para perceber que, nesse caso, "são as nossas crenças sobre a natureza da moralidade que fornecem indícios sobre a vontade de Deus", e não o contrário. Embora seja lamentável que ele tenha apresentado apenas essa possível solução ao problema, quando há outras muito melhores à disposição, o fato é que ele tem toda a razão nessa crítica. Esse tipo de solução, tão presente nas teologias liberais e neo-ortodoxas, resulta no vão esforço de enquadrar a verdade bíblica em critérios modernos ou pós-modernos e, dessa forma, fazer concessões a uma cultura tão depravada e carente de redenção quanto qualquer outra que já tenha existido. Uma visão consistente da soberania de Deus sobre a esfera moral não admite julgamentos morais autônomos quanto à veracidade ou pertinência da revelação. Meia autonomia da ética não é preferível a uma inteira.