31 de dezembro de 2013

Fragmentos de razões - parte 4

Já tive ocasião de observar que costumo ser lento nas reações aos comentários que recebo. Expus algumas razões para isso no primeiro parágrafo desta postagem. Mantendo essa tradição, vou responder hoje a dois comentários que recebi há cerca de dois anos, um dos quais sequer cheguei a publicar. Seu autor não é mais bem-vindo neste blog, e me arrependo de ter-lhe dado as boas-vindas em um momento prévio. Na verdade, eu já o conhecia de outras paragens, mas, para encurtar a conversa, relatarei apenas que, nessa ocasião a que me refiro, tive de insistir seis vezes até que ele parasse de reclamar da vida e apresentasse um único argumento em defesa dos pontos de vista que veio enunciar aqui. Mas o fato é que, depois de tanta insistência, ele enfim apresentou argumentos e, considerando que eu os pedi, é justo que diga o que penso deles.

Apenas me reservo o direito de não divulgar o nome do autor. Faço isso por duas razões: primeiro, não tenho interesse em um diálogo pessoal com ele, e sim apenas nas ideias que apresentou; por outro lado, não guardo contra ele nenhum rancor, e não pretendo humilhá-lo associando seu nome a ideias tão esdrúxulas. Embora ele mesmo não tenha vergonha de publicá-las, não vou contribuir para "difamá-lo" com suas próprias palavras. Fiquemos, pois, com as palavras e deixemos para lá o autor, que, para fins de referência ao longo do post, chamarei de XYZ. Sua participação ocorreu no contexto de minhas críticas ao racionalismo de alguns irmãos reformados. Ele julga estar no extremo oposto, pois se identifica mais com Kierkegaard e acha que o calvinismo é intrinsecamente racionalista, o que implica que eu, no fundo, sou tão racionalista quanto aqueles irmãos. Por causa dessa perspectiva um tanto singular, suas observações têm algum valor didático para os meus propósitos de expor o que penso sobre o assunto, e é por isso que vale a pena examinar suas palavras.

Tentarei primeiro resumir o argumento de XYZ. Boa parte de suas declarações constitui uma crítica a Francis Schaeffer, que, segundo ele, "aponta Tomás de Aquino como aquele que exalta a razão em detrimento da graça, ou mistério. Mas condena Kierkegaard... Acho que não existe uma linha divisória clara. Está valendo o subjetivismo". Ele certamente se refere aos comentários de Schaeffer no livreto A morte da razão. Adiante, ele cita a definição de racionalismo dada pelo próprio Schaeffer: a ideia de que "o homem começa absoluta e totalmente de si mesmo, coleciona a informação a respeito dos particulares e formula os universais". Segundo ele, essa definição concorda com a do Aurélio: "Método de observar as coisas baseado exclusivamente na razão, considerada como única autoridade quanto à maneira de pensar e/ou de agir". Daí, prossegue dizendo que Schaeffer distingue o racionalismo da racionalidade, condenando apenas o primeiro, e que a "tese central" do pastor americano é que "as coisas da fé estão ligadas à razão, não se pode separá-las em dois campos distintos". Então, resume ele: "Schaeffer irá bater nessa tecla o tempo todo: não se pode fugir do exame racional da fé (ou da filosofia, da teologia, das artes etc.), mas não exagerem, o homem caiu, sua razão também. E ele dirá: razão não é tudo. Há um Deus, há uma Bíblia. Apeguemo-nos 'racionalmente' ao Deus da Bíblia." XYZ então invoca uma definição dicionarizada de racionalismo em filosofia ("Doutrina que considera ser o real plenamente cognoscível pela razão ou pela inteligência, em detrimento da intuição, da vontade, da sensibilidade, etc.") para dizer que "Deus não pode de forma alguma ser plenamente cognoscível pela razão", de modo que existe o mistério. Ele conclui, então, seu argumento: "E é justamente aqui que considero Schaeffer um racionalista e que se afasta do Mistério. Pois, haverá pontos que [sic] teremos que dizer aqui a razão para e a fé prossegue, ela prevalece. E haverá uma linha divisória. Caso não houver [sic] divisão entre fé e razão, não se pode determinar o que para um seja questão de fé (pura confiança em uma revelação, por exemplo) ou pura dedução lógica. Ou qual elemento terá maior peso. Daí digo que há margem suficiente para o subjetivismo." XYZ aludiu a isso quando me interpelou diretamente nos seguintes termos: "Você acredita como Kierkegaard que a fé é um 'paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão'?"

Qual é a importância disso tudo? Ele mesmo esclarece: "Ao defender o mistério e atacar a ênfase exagerada na razão (racionalismo) você poderia: estar contradizendo escandalosamente uma grande referência sua, a saber [sic] Schaeffer; ou: sua referência poderia estar escandalosamente errada num ponto básico deste. Isso caberia a você clarear…" Por isso ele falou tanto em Schaeffer, que nem havia sido mencionado em minhas postagens. XYZ buscou ainda resumir seu argumento principal nas seguintes palavras: "Ninguém quer ser racionalista, hoje. Cabe-se [sic] então estabelecer os claros limites entre razão e fé (o que já é uma forma de racionalismo)". E conclui seu comentário dizendo que Schaeffer "defendia que a razão humana deveria submter-se à fé bíblica para avaliar as questões de fé - como se a Bíblia pudesse pensar e falar por si mesma, e como se estas questões de fé não estivessem relacionadas à sua própria interpretação". Aqui estaria a contradição e o racionalismo de todo calvinismo, seja o meu, o de Schaeffer ou o dos irmãos que tenho chamado de racionalistas.

Diante do exposto, fazem-se necessários alguns esclarecimentos, que passo a fazer em forma de tópicos:
1. Os conceitos de razão e racionalismo que Schaeffer utiliza são eminentemente vantilianos e  não coincidem com os do dicionário. A "razão" de Cornelius Van Til não é apenas a razão analítica, e sim a totalidade das faculdades cognitivas humanas. Da mesma forma, o racionalismo de Van Til não é o do século XVII, que seria apenas um caso particular do primeiro. A chave para entender o conceito de Schaeffer está em sua declaração de que "o homem começa absoluta e totalmente de si mesmo". Schaeffer, assim como Van Til, não está discutindo as picuinhas epistemológicas que dividem as diversas correntes humanistas, e sim dizendo que todo esforço de conhecimento não-redimido deposita no homem, e não em Deus, sua confiança última na capacidade humana de conhecer alguma coisa e dar significado à sua vida.
2. Ao contrário do que XYZ afirma, Schaeffer nunca disse que Tomás de Aquino "exalta a razão em detrimento da graça", e muito menos equiparou a graça ao mistério. O que Schaeffer disse foi que Tomás não tinha uma visão suficientemente profunda da Queda e, em particular, dos efeitos noéticos (cognitivos) do pecado, e por isso concebeu a graça divina como algo que apenas aperfeiçoa uma natureza intrinsecamente imperfeita do ponto de vista ontológico, em vez de transformá-la pela regeneração. Por isso, usando categorias dooyeweerdianas, Schaeffer descreve o pensamento tomista como um motivo dualista de "graça e natureza", e rejeita esse esquema completamente em favor do motivo bíblico de "criação, queda e redenção".

3. Assim como não entendeu o significado de razão (item 1), XYZ também não entendeu o conceito de fé na terminologia de Schaeffer. XYZ concebe fé como uma crença desprovida de evidência racional e que vem trazer complementos nos pontos "misteriosos" em que a razão não dá conta do recado, e erroneamente atribui essa carga semântica à palavra "fé" quando ela aparece nos textos de Schaeffer. Essa visão da relação entre fé e razão é própria do motivo tomista, pelo qual a revelação vem coroar e complementar aquilo que nossa razão é capaz de descobrir sozinha, como um caso particular do aperfeiçoamento da natureza pela graça. Schaeffer não poderia ter esse conceito de fé, pois isso é parte do que ele critica já no primeiro capítulo do livro (item 2).

4. Não tendo entendido os conceitos de razão e fé isoladamente considerados (itens 1 e 3, respectivamente), é claro que XYZ não poderia entender a natureza da relação entre os dois. É por isso que, ao ouvir falar nessa relação, ele pensou logo em termos de limites cartesianamente (ou kantianamente) claros e distintos para a razão. No meu entendimento, isso constitui uma banalização deveras simplória do debate. Por achar que o tema em discussão era (ou deveria ser) esse, XYZ inferiu que Schaeffer é racionalista; e, por não encontrar uma dissertação sobre esse tema, concluiu que ele é subjetivista. Mas Schaeffer tinha um motivo muito bom para não elaborar essa dissertação: é que ele simplesmente estava falando de outra coisa, muito mais importante. E isso nos leva ao item 5.

5. Schaeffer não discute até onde a razão pode ir sem a fé porque, em sua opinião, não pode ir a parte alguma. Schaeffer é um pressuposicionalista, o que significa que, para ele, a lealdade ao Deus revelado na Bíblia - ou, inversamente, à autonomia da razão humana - precede e condiciona todo esforço de compreender ou harmonizar o que quer que seja. Nesse sentido, a fé é uma dimensão indispensável de todo esforço de conhecimento, sejam quais forem as convicções teológicas do sujeito. Não há uma disputa a cotoveladas de espaço entre a fé e a razão, e sim uma operação conjunta de ambas em todo ato de conhecimento, mas em planos diferentes. Essa ideia faz sentido especialmente à luz da antropologia filosófica de Herman Dooyeweerd.

6. Com base no item 5, Schaeffer critica em Tomás de Aquino a concessão de certo grau de neutralidade à razão humana, como se ela pudesse atuar à parte da fé em alguma medida; ao mesmo tempo, critica Kierkegaard porque este supõe que há uma dimensão da vida humana em que a razão não tem nenhum papel importante, já que "a fé começa precisamente onde acaba a razão". Ambas são formas de separar a fé da razão, e é a isso que Schaeffer se opunha. Para Schaeffer, embora na aparência pareça haver uma oposição radical entre Tomás e Kierkegaard, eles estão unidos nesse erro mais profundo e radical, com o qual é necessário romper. Por conseguinte, Schaeffer não foi nada subjetivista ao discordar de ambos ao mesmo tempo.

7. Ao contrário do que afirmou XYZ, conheço várias pessoas que não se importam em ser chamadas de racionalistas. Talvez ele esteja generalizando demais seu próprio sentimento. Apesar disso, ele mesmo não está imune ao racionalismo. Seu modo de entender a relação entre fé e razão é típico do racionalismo mais raso, como o que eu costumava encontrar ao discutir, durante a faculdade, com ateus cientificistas presunçosos e incultos. Ele mesmo afirmou que "estabelecer os claros limites entre razão e fé [...] já é uma forma de racionalismo", e essa é sua grande preocupação - tanto que é aí que ele situa a grande contradição dos calvinistas criticados. O fato de tal racionalismo vir de alguém que julga estar criticando o racionalismo de outros é deveras revelador, e corrobora a visão vantiliana de que racionalismo e irracionalismo são duas faces de uma mesma moeda, e que em qualquer cosmovisão não-redimida as duas estão sempre presentes, ainda que uma possa ser mais aparente.

8. A ironia do item 7 tem um corolário nas palavras finais de XYZ, para quem o calvinismo ignora a subjetividade envolvida no esforço de interpretação das Escrituras. Ele está correto em ver racionalismo nisso, mas está errado em supor que a abordagem de Schaeffer (ou do calvinismo em geral) seja essa. À luz dos itens 4 e 5, a questão não é "até que ponto" podemos interpretar a Bíblia de modo autônomo e objetivo, e sim se estamos dispostos a nos deixar ensinar por ela, isto é, se vamos a ela com o propósito de permitir que o Espírito das Escrituras guie nosso entendimento. A fé é depositada no Cristo da Bíblia, e não só no próprio texto. E fé, aqui, não é o que acontece depois que a razão para de funcionar, e sim a esperança de redenção (intelectual e hermenêutica, inclusive) que depositamos.

9. Em meio a tantos equívocos, XYZ fez pelo menos uma coisa bastante acertada, ao citar as seguintes palavras de Fernando Sabino: "Para mim, a fé prevalece sobre a razão, mas não a contraria. O homem só é um ser racional porque tem fé, mesmo quando pensa que não tem: neste caso, o que ele não tem é razão." Não digo, é claro, que Sabino fosse um pressuposicionalista, mas digo que suas palavras podem ser entendidas dentro desse quadro de referência sem nenhum problema. A precedência da fé sobre a razão e sua operação até no incrédulo (embora seja, nesse caso, uma fé idólatra) e o caráter não-excludente da operação normal de ambas estão claramente expressos aí. Pena que XYZ tenha citado essas palavras achando que elas se opunham às de Schaeffer. Na verdade, elas estão muito mais próximas do pastor americano que do existencialista dinamarquês.