6 de abril de 2014

Esperança milenar - parte 4



2.8. Transcendência

Embora Clarke fosse agnóstico, materialista, humanista e antirreligioso, sua obra denuncia em vários pontos a presença daquilo que Dooyeweerd chama de “motivação religiosa fundamental do coração”[1], bem como de sentimentos religiosos, embora não reconhecidos como tais nem dirigidos ao Deus verdadeiro. Esse aspecto será explorado na presente seção, tendo como ponto de partida a seguinte declaração de Clarke:

Se me pudessem ser concedidos três desejos, eles seriam: 1) paz no Sri Lanka – e no mundo todo, se não fosse pedir demais; 2) os primeiros protótipos comerciais de dispositivos geradores de energia limpa e praticamente infinita, que encerrariam a era do combustível fóssil; 3) a prova de vida em outro lugar – de preferência inteligente, embora eu me satisfaça com qualquer coisa capaz de juntar algumas células.[2]

Enquanto os dois primeiros desejos dizem respeito ao bem da humanidade, o último não necessariamente traria algum benefício prático a quem quer que fosse. Pensando na quantidade e variedade de coisas que Clarke poderia ter desejado em vez disso, fica claro que a vida extraterrestre possui um papel especial em sua cosmovisão. Evidências mais fortes disso podem ser encontradas em outras declarações suas. Por exemplo, quando lhe foi perguntado qual era, para ele, o “maior mistério”, sua resposta foi: “Oh, ETs. Você não consegue imaginar nada maior nem mais importante que isso, consegue?” Nessa ocasião, Clarke declarou não saber se existe ou não vida inteligente em outros mundos: “Se de fato estivermos sozinhos, significa que somos não só os herdeiros do cosmos, mas também seus guardiões, o que é um pensamento portentoso”[3]. Mais tarde, porém, ele se convenceu completamente: “Bem, é claro que não há nenhuma evidência. Mas parece incrível sugerir que nesse universo enorme nós somos a única forma de vida inteligente”[4]. E, ao ser indagado sobre o que gostaria de ver antes de morrer, sua resposta foi: “A primeira coisa, é claro, é a descoberta de vida inteligente no espaço exterior. Acho improvável que isso aconteça durante a minha vida, mas tenho certeza de que um dia será alcançado”[5].

Podemos resumir o conteúdo dessas declarações dizendo que os ETs inteligentes ocupavam, para Clarke, a função de “maior mistério”, o maior e mais importante fato a ser descoberto; que ele, a despeito de seu propalado ceticismo, dispunha-se a crer neles sem qualquer evidência; e que o surgimento de tal evidência era o que ele mais queria ver em vida.

Nesse campo, dentre vários outros, a cosmovisão de Clarke é muito semelhante à do astrônomo Carl Sagan (1934-1996), de quem foi amigo pessoal. Sagan foi o criador do projeto SETI (Search for Extra-Terrestrial Intelligence [Busca por Inteligência Extraterrestre]), destinado a procurar sinais de inteligência nas ondas eletromagnéticas vindas do espaço. Seu livro O mundo assombrado pelos demônios[6], além de conter uma defesa desse projeto, dedica-se a promover o ceticismo cientificista e criticar a “superstição” e a “pseudociência”, representadas na fé religiosa em geral e na crença em fenômenos paranormais, mediúnicos e ligados às diversas modalidades de esoterismo. Boa parte do livro é dedicada à crítica dos fenômenos ufológicos, abduções e relatos semelhantes, tidos como mais uma “superstição” – e, portanto, aparentados às crenças religiosas irracionais que o cético deve rejeitar.

Entretanto, embora admitindo que não há evidência conclusiva da existência de alienígenas inteligentes, Sagan julgava seguro crer na existência de tais seres com base em razões que lhe pareciam estritamente científicas, e não religiosas (pois a religião é, para ele e Clarke, o terreno da irracionalidade por excelência). Clarke concordava com tudo isso, e declarou, nas páginas finais de 3001, que a leitura desse livro deveria ser obrigatória nos colégios e faculdades (p. 262). Quando lhe perguntaram o que achava dos relatos de abduções, sua resposta foi: “Um lixo delirante total! Temo que haja um monte de homens e mulheres malucos andando por aí”[7]. E, de fato, o século XXXI via esses relatos como efeitos de doença mental (p. 113-4), em pé de igualdade com o “fanatismo religioso”.

Curiosamente, outro livro de Sagan, o romance Contato, de 1985[8], traz notáveis afinidades com a tetralogia de Clarke. Também ali os extraterrestres que fazem contato com a humanidade são muito avançados tecnologicamente (e moralmente), e as questões acerca deles e de sua influência sobre nós adquirem contornos claramente religiosos. Há também semelhança na ontologia materialista por trás de ambas as obras. Os alienígenas de Sagan são, porém, menos intervencionistas que os de Clarke, pois não tiveram participação na criação da humanidade, e tampouco manifestaram intenção de intervir em seu futuro.

Não foi por acaso que me referi aos Primogênitos de Clarke como deuses. Eles agiram como um demiurgo grego ao tomar parte na criação da espécie humana, fiéis ao objetivo de promover o surgimento de vida inteligente em toda a galáxia. Clarke percebeu bem cedo o fundo religioso dessa ideia; enquanto escrevia 2001 e discutia com Kubrick o roteiro do filme, ele registrou em seu diário (18/11/1965) a impressão causada por um filme que assistiu: “Um verso me atingiu de modo especial – o uso da frase ‘Deus fez o homem à sua própria imagem’. Esse, afinal,é o tema do nosso filme”[9].

Posteriormente, os Primogênitos decidem destruir a humanidade com base em uma reprovação moral, baseando-se em informações colhidas no século XXI. As providências para a execução desse juízo final chegaram no século XXXI e foram sabotadas com a ajuda de David Bowman, convertido pelos Primogênitos em um ser semelhante a eles (ou seja, de pura energia) em 2001. Embora a ameaça imediata tenha sido superada, porém, é de se esperar uma retaliação nos próximos séculos, e o livro termina com essa expectativa. Mas o leitor é informado sobre a decisão dos Primogênitos no epílogo do livro. Eles dizem: “O pequeno universo deles é muito jovem, e seu deus ainda é uma criança. Mas ainda é cedo demais para julgá-los. Quando retornarmos, nos Últimos Dias, Nós veremos o que deve ser salvo” (p. 247). O tom, a linguagem e o conteúdo são claramente escatológicos, e muitos paralelos com a teologia bíblica poderiam ser extraídos dessas poucas palavras.

Apesar disso, os Primogênitos têm menos em comum com o Deus das Escrituras que com as divindades do paganismo greco-romano: são múltiplos, tiveram sua origem dentro do mundo e a partir de matéria preexistente e são limitados em seus poderes e valores morais; gerenciam parte do que acontece no universo, mas não podem ocupar o papel de Absoluto em nenhum sentido admissível do termo.

Não devemos, é claro, tratar do tema como se o autor acreditasse de fato nos alienígenas que inventou. A questão diz respeito à estrutura de plausibilidade da cosmovisão do autor, e ganha ainda mais peso diante da já apontada semelhança com a ficção de Carl Sagan: existe uma afinidade profunda entre o velho paganismo politeísta e o novo racionalismo cientificista. Essa conexão também não é casual: no período moderno, a crença em habitantes do espaço sideral ganhou força primeiro, historicamente, entre os círculos influenciados pelo reavivamento do paganismo trazido pelo Renascimento[10].

Tanto no esoterismo ufológico barato quanto no refinado ceticismo científico, os alienígenas ocupam o espaço que antigamente era atribuído aos deuses. A diferença específica do cético materialista é que ele só se sente autorizado a crer no que lhe parece cientificamente bem fundamentado, e é por isso que a afinidade citada se torna mais facilmente detectável nos momentos (relativamente raros) em que ele se sente autorizado a dar asas à imaginação – por exemplo, em uma obra de ficção científica. O materialista moderno, pois, diferencia-se do pagão antigo por uma subtração, e não por um acréscimo: talvez seja lícito descrevê-lo como um pagão que tem restringida a faculdade da imaginação.

2.9. Deus

Deixando de lado as ideias da criação do homem à imagem de Deus e do juízo final sobre a humanidade, grotescamente parodiadas na tetralogia pelas ações dos Primogênitos, há em 3001 dois momentos que revelam uma percepção particularmente lúcida do Deus verdadeiro – aquilo que João Calvino chamou de sensus divinitatis[11]. Ambos apontam para a percepção da sabedoria e majestade manifestas na criação, em contraste com as quais se revelam pífias as realizações humanas. Será transcrito aqui um desses momentos, que revela essa percepção com especial intensidade. Poole deixava nosso planeta pela primeira vez desde que fora trazido inconsciente do espaço. No século XXXI, existe uma enorme construção humana chamada Cidade Estelar, uma estrutura anelar que circunda todo o planeta. O narrador diz (p. 102):

Quando eles estavam a cinquenta mil quilômetros de altitude, ele estava prestes a ver toda a Cidade Estelar, como uma estreita elipse rodeando a Terra. Embora o lado distante estivesse quase invisível, um fio de cabelo de luz contra as estrelas, inspirava reverência o pensamento de que a raça humana tinha agora estabelecido esse sinal nos céus.

Então Poole se lembrou dos anéis de Saturno, infinitamente mais gloriosos. Os engenheiros astronáuticos ainda tinham um caminho muito, muito longo a percorrer até serem capazes de igualar as realizações da Natureza.

Ou, se essa era a palavra correta, Deus.

Esse trecho ilustra bem a afirmação de Clarke de que “Nenhuma pessoa inteligente pode contemplar o céu noturno sem um senso de reverência”[12]. Isso foi o mais perto que ele conseguiu chegar do reconhecimento de que “Os céus proclamam a glória de Deus” (Salmo 19.1).

No entanto, visto que o reconhecimento dos atributos de Deus na natureza torna o homem indesculpável (Romanos 1.20), o coração humano busca fugir das implicações dessa revelação. Assim, Clarke cindiu Deus em dois conceitos, o Criador e o Juiz, e concedeu a “possibilidade” de existência apenas ao primeiro, considerado “um personagem muito mais interessante”[13]. O capítulo final de 3001 permite entrever a decisão pessoal de Clarke ao revelar um dos últimos pensamentos de Poole, depois que havia passado a ameaça do fim imediato da humanidade. Ninguém sabia qual seria a próxima atitude dos Primogênitos, mas Poole decidiu apenas não lhes dar mais atenção: “Quaisquer que fossem os poderes divinos emboscados além das estrelas, Poole lembrou a si mesmo, para os seres humanos ordinários só duas coisas eram importantes: o Amor e a Morte” (p. 245-246).

Dado o anseio de Clarke por encontrar seres inteligentes no espaço, é deveras revelador que seu personagem tenha tomado essa rota de fuga quando esses seres se mostraram hostis em um sentido escatológico. É fácil ver nisso um paralelo com a decisão do coração de Clarke quanto ao Deus verdadeiro: torcer para que o Último Dia seja apenas uma lenda e, com base nisso, aproveitar da melhor maneira possível o que a vida presente oferece de bom, encarando de modo realista e conformado a dose inevitável de mal. Esse triste compromisso fundamental se espraia para toda a cosmovisão de Clarke: sociedade, ciência, tecnologia, progresso, prazer... Tudo é posto a serviço de uma vã esperança de um dia vencer o mal e a morte pelas próprias forças, prescindindo da cruz de Cristo.

3. Considerações finais

A título de conclusão, convém sintetizar o que foi exposto à luz da chave de compreensão proposta por Dooyeweerd[14] com base no motivo bíblico criação-queda-redenção. 3001 possui momentos de verdade em todas as três áreas. A cosmovisão do autor comporta percepções corretas sobre os seguintes pontos: a manifestação dos atributos de Deus na natureza (criação); a depravação moral do homem e a fragilidade de sua condição no mundo presente (queda); a necessidade de superar o presente estado de coisas e o papel do homem como guardião e mestre sobre a natureza (redenção).

Entretanto, o direcionamento dado pela cosmovisão de Clarke traz uma distorção humanista fundamental nos três aspectos. No campo da criação, Clarke não apenas nega a evidência que aponta para Deus como Criador, reduzindo-a (na melhor das hipóteses) à função de uma distante causa primeira e negando a divina providência, mas também, em decorrência disso, possui uma visão reducionista do significado das coisas criadas, inclusive do próprio homem. Quanto à queda, ele não só assume a normalidade do cosmos atual, mas também minimiza a extensão e a profundidade da perversão do coração humano. É apenas graças a isso que ele consegue, ainda que de modo inconsistente, se satisfazer com uma esperança de progresso que está muito aquém da radicalidade da redenção que encontramos em Cristo, mas que tem a vantagem (do ponto de vista humanista) de tornar dispensável a intervenção divina.

Toda a cosmovisão de Clarke se orienta em oposição ao Deus verdadeiro e destina-se a mantê-lo afastado, em especial pela consciência – não passível de supressão completa – de que a ação redentora de Deus traz como corolário a condenação dos que se obstinam na rebeldia contra ele.


[1] KALSBEEK, L. Contours of a Christian Philosophy: an Introduction to Herman Dooyeweerd’s Thought. Toronto: Wedge, 1975.
[2] COKER III, John L. A Visit with Arthur C. Clarke. Oakland, 1999. Disponível aqui. Acesso em: 14 de junho de 2012.
[3] GREENWALD, Jeff. Arthur C. Clarke on Life. San Francisco, 1993. Disponível aqui. Acesso em: 6 de junho de 2012.
[4] ROBINSON, Tasha. Arthur C. Clarke Interview. Chicago, 2004. Disponível aqui. Acesso em: 28 de junho de 2012.
[5] RATNATUNGA, Kavan. 60th Anniversary of Clarke’s Communication Satellite Idea. Colombo, 2005. Disponível aqui. Acesso em: 29 de junho de 2012.
[6] SAGAN, Carl Edward. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
[7] SCIFI.COM. Arthur C. Clarke and Gentry Lee Online Chat. Nova York, 1996. Disponível aqui. Acesso em: 11 de junho de 2012.
[8] SAGAN, Carl Edward. Contato: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[9] CLARKE, Arthur Charles. Arthur Clarke’s 2001 Diary (excerpt). Nova York, 1972. Disponível aqui. Acesso em: 5 de junho de 2012.
[10] KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense-Universitária; São Paulo: Edusp, 1979.
[11] CALVINO, João. As Institutas: edição clássica, v. 1, 2 ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
[12] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[13] HOUSTON, Frank. Salon People: Arthur C. Clarke. San Francisco, 2000. Disponível aqui. Acesso em: 15 de junho de 2012.
[14] WOLTERS, Albert. Criação restaurada: base bíblica para uma cosmovisão reformada. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.