Conforme prometido na primeira parte, exporei aqui as raízes de minhas reticências quanto à ideia teonomista. Dada a minha já confessada ignorância do assunto, esclareço desde já que de modo algum julgo impossível que haja respostas teonomistas adequadas para elas. É mais apropriado enxergar o que direi a seguir como uma lista de questões que precisam ser enfrentadas por um programa teonomista sério - e que espero que o tenham sido, de fato, pelo teonomismo real.
Em primeiro lugar, a teonomia parece ser construída em torno do silêncio do Novo Testamento sobre o fim da validade da lei civil, que os teonomistas tomam como argumento em seu favor, dado o contraste com o que acontece em relação à lei cerimonial. (Na verdade, não estou de todo convencido de que o Novo Testamento guarda silêncio sobre o tema, mas, como estamos nos prolegômenos, farei essa concessão.) Como eu disse no post anterior, esse fato precisa ser explicado. Mas o silêncio geralmente admite mais de uma interpretação. Por exemplo, do fato de que a Bíblia não apresenta a soberania divina e a responsabilidade humana como foco de tensão filosófica, McGregor Wright infere, em A soberania banida, que não existe tensão alguma. Contudo, essa conclusão é ditada de modo evidente por sua predisposição racionalista; afinal, também pode ser que a tensão exista, mas Deus simplesmente não a considere importante o suficiente para merecer menção em sua Palavra inspirada. Da mesma forma, o silêncio neotestamentário sobre a continuidade da lei civil pode ser tomado como evidência dessa continuidade, mas também pode ser que a nova dispensação seja tão diferente da antiga, que as ênfases e preocupações da igreja primitiva estivessem tão distantes do estabelecimento de um Estado cristão, que o próprio ato de declarar o fim da lei civil pareceria desnecessário, por ser demasiado óbvio a todos. Por isso, ao estudar a proposta teonomista, espero encontrar em seus defensores uma consciência dessa possibilidade e uma defesa de seu argumento em um nível mais profundo.
Digo isso em especial porque me sinto inclinado a crer que o silêncio, nesse caso, admite de modo mais plausível uma interpretação oposta. A queda da lei cerimonial foi extensamente discutida no Novo Testamento por ser uma pedra de tropeço para muitos. Enquanto o Novo Testamento estava sendo escrito, não havia mais nenhum Estado praticando de modo consistente a antiga lei civil de Israel, a menos que o Sinédrio de Jerusalém, submisso às leis romanas e assassino de Cristo, possa ser considerado legítimo representante dessa lei. E na prática, de qualquer modo, grande parte dos primeiros cristãos, judeus ou gentios, não estava sujeita a esse Estado. Diante de tal cenário, o silêncio parece indicar que ninguém na igreja primitiva estava minimamente preocupado com isso: nem os apóstolos, nem os judeus que creram em Jesus como seu Messias, nem os gentios que aderiam à nova fé. Acho difícil conciliar com naturalidade esse fato com o argumento dos teonomistas de que o silêncio neotestamentário é favorável à sua posição, de modo que espero encontrar, quanto a isso, uma argumentação teonomista bem construída.
Ligada a esse ponto está outra fonte de desconfiança que tentarei explicar, embora não seja lá muito fácil. Ela talvez decorra do não muito que tive oportunidade de aprender sobre outras grandes religiões do mundo, em especial o islamismo, que, em muitos aspectos, está mais próximo do judaísmo antigo que do cristianismo. Um dos pontos que os autores islâmicos usualmente levantam sobre Jesus é o que lhes parece um ministério profético incompleto. Ulfat Aziz Assamad, por exemplo, nos diz em seu livreto O islam e o cristianismo:
"Jesus nunca se casou, e por isso não pôde se tornar um marido e um pai ideal. Ele não venceu seus inimigos, e por isso não teve oportunidade para mostrar como um vencedor deveria se comportar para com seus inimigos vencidos que não haviam poupado esforços para aniquilar a ele e aos seus seguidores. Ele não teve seus perseguidores à sua mercê, e por isso não teve ocasião para mostrar a verdadeira moderação e misericórdia. Jesus não ascendeu ao poder para poder se tornar um modelo de governante e juiz benevolente e justo."
É natural ao muçulmano enxergar as coisas dessa forma, em especial porque a vida de Maomé oferece exemplos completos em todos esses pontos, e muitos outros. O que também deve ser percebido, contudo, é que o fato de um muçulmano ver isso como prova da superioridade de Maomé sobre Cristo do ponto de vista profético é bastante revelador da ênfase islâmica na exterioridade e na concretude. Sabemos perfeitamente que o estilo de vida que Jesus levou neste mundo, tal como narrado nos evangelhos, é atípico e não constitui modelo para nós. Quando falamos em ser imitadores de Cristo, não pensamos nesse aspecto exterior que é o primeiro (embora não necessariamente o único) a ocorrer a um muçulmano quando fala na "imitação do Profeta". Afinal, é de suma importância para a cosmovisão islâmica o fato de que, sob muitos aspectos, Maomé era um homem comum. Desse modo, ao fazer apologética contra o islamismo, a pior coisa que poderíamos fazer é tentar competir com ele em suas próprias prioridades, buscando estabelecer, a partir das escassas narrativas dos evangelhos sobre a vida de Cristo, orientações concretas para toda a ampla variedade de situações e dilemas que a vida oferece, como fazem os hadiths com base na vida de Maomé.
Fiz essa breve digressão sobre a visão islâmica da vida de Cristo porque ela fornece um paralelo exato para a visão islâmica da lei: pertence às ênfases primordiais dessa religião o desenvolvimento de uma comunidade política pautada no que seus devotos entendem ser a vontade divina, bem como de leis e escolas de jurisprudência diretamente fundadas em sua revelação. Também nesse aspecto, parece natural aos muçulmanos criticar o cristianismo por sua falta de concretude. Assamad afirma, de modo triunfante: "O islam, e não o cristianismo, proporciona uma orientação completa em todos os aspectos e situações da vida, individual como também social, nacional assim como internacional".
Mas por que estou contando tudo isso? Apenas para esclarecer os motivos pelos quais, tendo eu conhecido um pouco melhor o espírito da fé islâmica, sou instintivamente avesso a atitudes semelhantes no meio reformado. É necessário, porém, entender bem onde vejo a semelhança. Não é nas tão propaladas (e obviamente falsas) semelhanças entre reformados teonomistas e muçulmanos radicais. O que estou dizendo é que a visão teonomista da Lei não me parece combinar bem com outros aspectos da cosmovisão cristã. Quando o muçulmano critica as limitações de Cristo como modelo, somos unânimes em apontar que, quanto a esse aspecto, o papel de Cristo não se situa no estilo de vida e outras condutas bastante concretas. Mas, se o muçulmano criticar a falta de modelos de lei civil, alguns dentre nós aceitarão prontamente os termos da crítica, contrapondo a um sistema legal outro sistema legal, e dirão que nós temos a lei civil do Antigo Testamento; fazendo isso, reduzirão a questão à decisão sobre qual é o melhor sistema, perdendo, assim, a oportunidade de denunciar, uma vez mais, a exterioridade do conceito islâmico de submissão a Deus. Seria por já terem incorporado essa mesma exterioridade em um aspecto de sua própria cosmovisão? Não posso deixar de desconfiar que o problema talvez seja exatamente esse. A argumentação teonomista terá pela frente a tarefa de afastar de mim essa suspeita.
Esse possível problema que busquei ilustrar a partir de um paralelo com o islamismo, por sua vez, levanta outra desconfiança. Como racionalista em remissão, conheço bem a sensação de pavor e confusão diante da falta de regras claras pelas quais dissolver os dilemas impostos por uma determinada categoria de questões. Larry Crabb me convenceu de que essa sensação é o ímpeto fundamental que está por trás tanto do racionalismo quanto do legalismo. Não é absurdo supor, ao menos a título de possibilidade, que a ideia de aplicar a antiga lei civil de Israel aos dias de hoje pareça atraente a alguns justamente por faltarem, no Novo Testamento, diretrizes concretas e específicas para a aplicação dos princípios cristãos nessa área, e porque fazer tal aplicação é um trabalho reconhecidamente árduo e arriscado. É claro que não estou dizendo que essa consideração sobre motivações hipotéticas é um argumento contra a teonomia, inclusive porque seus adversários estão sempre, em alguma medida, sujeitos à tentação oposta de, com medo de cair em um tradicionalismo estéril, ceder demais aos ídolos da modernidade. Estou dizendo apenas que considero que essa motivação é ao menos um perigo real, e gostaria de obter evidências de que os teonomistas com quem travarei contato têm consciência disso e se preocupam a respeito, pois isso fortalecerá a credibilidade de sua reivindicação. Por outro lado, a ausência de tais evidências enfraqueceria de modo considerável essa credibilidade, pois isso revelaria que essa possível motivação é um ponto cego na cosmovisão dos teonomistas.
Outro ponto que espero ver assegurado pelo teonomismo diz respeito à própria possibilidade de consistência da antiga lei civil sem sua contraparte cerimonial. Essa questão me ocorreu enquanto eu lia o belo livreto Lei e graça, do nosso amigo pastor Mauro Meister. A obra dedica um total de apenas três páginas à questão da teonomia, mas o ponto que me chamou a atenção não estava entre elas, e sim em sua breve análise do estabelecimento das cidades de refúgio em Números 35, pelo qual algumas cidades dos levitas deveriam acolher homicidas involuntários, protegendo-os de seus vingadores. Aqui estão claramente envolvidas as leis civil, pois trata-se de uma determinação jurídica, e cerimonial, pois pressupõe-se a existência dos levitas como tribo separada. Não vejo de que maneira a abolição do aspecto cerimonial da lei poderia deixar intocada a lei civil. As opções disponíveis parecem ser as seguintes: abolir as cidades de refúgio, desconectar a ideia das cidades de refúgio da tribo de Levi, estabelecendo-as em cidades comuns, ou esquecer as cidades de refúgio literais e buscar apreender apenas o princípio jurídico subjacente; mas nenhuma dessas opções deixa a lei civil intacta. Deve haver uma solução teonomista para o dilema, mas ele, de qualquer forma, ilustra o princípio que tenho em mente: não basta estabelecer a plausibilidade exegética da perpetuidade da lei civil se não soubermos o que fazer a partir daí. Talvez a unidade da antiga Lei seja ainda mais forte do que supõem os próprios teonomistas, e alguns pontos da lei civil (ou muitos, ou todos) não façam sentido se desvinculados da lei cerimonial. De um modo ou de outro, uma divisão na lei precisa ser feita, e é necessário, portanto, demonstrar que o resultado disso será um corpo legislativo internamente consistente e aplicável à nossa presente realidade. Espero que os defensores da teonomia tenham trabalhado sobre esse ponto e não tenham achado a tarefa mais fácil do que realmente é.
E isso nos leva ao último ponto. A consciência de minha própria ignorância, além de ser o motivo pelo qual nunca me animei a escrever sobre a teonomia, é também o motivo pelo qual não me animei sequer a estudar suas propostas. Estou convencido de que uma análise completa e consequente do tema exigiria conhecimentos que não possuo - de filosofia política, direito, história, economia e sociologia, sem deixar de fora, é claro, a teologia. Dessa forma, parece-me natural supor que um teonomista militante, no bom sentido do termo, deve ter um interesse razoavelmente profundo em entender as implicações e dificuldades da implementação de seu ideal para cada uma dessas áreas, não crendo ingenuamente que tudo se resume a ler a Bíblia. Isso, uma vez mais, não é uma consideração contra a teonomia em si, a não ser em um sentido indireto. Sou otimista quanto a encontrar teonomistas cônscios da magnitude da mudança que estão propondo e do trabalho intelectual que têm pela frente. Mas, se essa minha expectativa não se concretizar, entenderei isso como sintoma claro de que algo não vai bem no espírito do movimento.
Encerro aqui esta resumida análise do que vejo, em caráter preliminar, como potencialmente positivo ou negativo na teonomia. Embora eu não escreva senão em meu próprio nome, creio que vários leitores que têm interesse no assunto terão se identificado com algumas de minhas ideias preliminares. Nesse sentido, espero que os teonomistas e seus críticos tenham aproveitado, desses meus dois textos, a oportunidade de discernir melhor as motivações de seus opositores e, quem sabe, também as suas próprias. No que me diz respeito, ao menos foi esse o gratificante resultado que obtive do esforço de escrever sobre o assunto. Não é meu objetivo suscitar debates, mas considerações sobre os pontos que levantei são bem-vindas, bem como indicações de livros ou textos que porventura lidem com eles.
Em primeiro lugar, a teonomia parece ser construída em torno do silêncio do Novo Testamento sobre o fim da validade da lei civil, que os teonomistas tomam como argumento em seu favor, dado o contraste com o que acontece em relação à lei cerimonial. (Na verdade, não estou de todo convencido de que o Novo Testamento guarda silêncio sobre o tema, mas, como estamos nos prolegômenos, farei essa concessão.) Como eu disse no post anterior, esse fato precisa ser explicado. Mas o silêncio geralmente admite mais de uma interpretação. Por exemplo, do fato de que a Bíblia não apresenta a soberania divina e a responsabilidade humana como foco de tensão filosófica, McGregor Wright infere, em A soberania banida, que não existe tensão alguma. Contudo, essa conclusão é ditada de modo evidente por sua predisposição racionalista; afinal, também pode ser que a tensão exista, mas Deus simplesmente não a considere importante o suficiente para merecer menção em sua Palavra inspirada. Da mesma forma, o silêncio neotestamentário sobre a continuidade da lei civil pode ser tomado como evidência dessa continuidade, mas também pode ser que a nova dispensação seja tão diferente da antiga, que as ênfases e preocupações da igreja primitiva estivessem tão distantes do estabelecimento de um Estado cristão, que o próprio ato de declarar o fim da lei civil pareceria desnecessário, por ser demasiado óbvio a todos. Por isso, ao estudar a proposta teonomista, espero encontrar em seus defensores uma consciência dessa possibilidade e uma defesa de seu argumento em um nível mais profundo.
Digo isso em especial porque me sinto inclinado a crer que o silêncio, nesse caso, admite de modo mais plausível uma interpretação oposta. A queda da lei cerimonial foi extensamente discutida no Novo Testamento por ser uma pedra de tropeço para muitos. Enquanto o Novo Testamento estava sendo escrito, não havia mais nenhum Estado praticando de modo consistente a antiga lei civil de Israel, a menos que o Sinédrio de Jerusalém, submisso às leis romanas e assassino de Cristo, possa ser considerado legítimo representante dessa lei. E na prática, de qualquer modo, grande parte dos primeiros cristãos, judeus ou gentios, não estava sujeita a esse Estado. Diante de tal cenário, o silêncio parece indicar que ninguém na igreja primitiva estava minimamente preocupado com isso: nem os apóstolos, nem os judeus que creram em Jesus como seu Messias, nem os gentios que aderiam à nova fé. Acho difícil conciliar com naturalidade esse fato com o argumento dos teonomistas de que o silêncio neotestamentário é favorável à sua posição, de modo que espero encontrar, quanto a isso, uma argumentação teonomista bem construída.
Ligada a esse ponto está outra fonte de desconfiança que tentarei explicar, embora não seja lá muito fácil. Ela talvez decorra do não muito que tive oportunidade de aprender sobre outras grandes religiões do mundo, em especial o islamismo, que, em muitos aspectos, está mais próximo do judaísmo antigo que do cristianismo. Um dos pontos que os autores islâmicos usualmente levantam sobre Jesus é o que lhes parece um ministério profético incompleto. Ulfat Aziz Assamad, por exemplo, nos diz em seu livreto O islam e o cristianismo:
"Jesus nunca se casou, e por isso não pôde se tornar um marido e um pai ideal. Ele não venceu seus inimigos, e por isso não teve oportunidade para mostrar como um vencedor deveria se comportar para com seus inimigos vencidos que não haviam poupado esforços para aniquilar a ele e aos seus seguidores. Ele não teve seus perseguidores à sua mercê, e por isso não teve ocasião para mostrar a verdadeira moderação e misericórdia. Jesus não ascendeu ao poder para poder se tornar um modelo de governante e juiz benevolente e justo."
É natural ao muçulmano enxergar as coisas dessa forma, em especial porque a vida de Maomé oferece exemplos completos em todos esses pontos, e muitos outros. O que também deve ser percebido, contudo, é que o fato de um muçulmano ver isso como prova da superioridade de Maomé sobre Cristo do ponto de vista profético é bastante revelador da ênfase islâmica na exterioridade e na concretude. Sabemos perfeitamente que o estilo de vida que Jesus levou neste mundo, tal como narrado nos evangelhos, é atípico e não constitui modelo para nós. Quando falamos em ser imitadores de Cristo, não pensamos nesse aspecto exterior que é o primeiro (embora não necessariamente o único) a ocorrer a um muçulmano quando fala na "imitação do Profeta". Afinal, é de suma importância para a cosmovisão islâmica o fato de que, sob muitos aspectos, Maomé era um homem comum. Desse modo, ao fazer apologética contra o islamismo, a pior coisa que poderíamos fazer é tentar competir com ele em suas próprias prioridades, buscando estabelecer, a partir das escassas narrativas dos evangelhos sobre a vida de Cristo, orientações concretas para toda a ampla variedade de situações e dilemas que a vida oferece, como fazem os hadiths com base na vida de Maomé.
Fiz essa breve digressão sobre a visão islâmica da vida de Cristo porque ela fornece um paralelo exato para a visão islâmica da lei: pertence às ênfases primordiais dessa religião o desenvolvimento de uma comunidade política pautada no que seus devotos entendem ser a vontade divina, bem como de leis e escolas de jurisprudência diretamente fundadas em sua revelação. Também nesse aspecto, parece natural aos muçulmanos criticar o cristianismo por sua falta de concretude. Assamad afirma, de modo triunfante: "O islam, e não o cristianismo, proporciona uma orientação completa em todos os aspectos e situações da vida, individual como também social, nacional assim como internacional".
Mas por que estou contando tudo isso? Apenas para esclarecer os motivos pelos quais, tendo eu conhecido um pouco melhor o espírito da fé islâmica, sou instintivamente avesso a atitudes semelhantes no meio reformado. É necessário, porém, entender bem onde vejo a semelhança. Não é nas tão propaladas (e obviamente falsas) semelhanças entre reformados teonomistas e muçulmanos radicais. O que estou dizendo é que a visão teonomista da Lei não me parece combinar bem com outros aspectos da cosmovisão cristã. Quando o muçulmano critica as limitações de Cristo como modelo, somos unânimes em apontar que, quanto a esse aspecto, o papel de Cristo não se situa no estilo de vida e outras condutas bastante concretas. Mas, se o muçulmano criticar a falta de modelos de lei civil, alguns dentre nós aceitarão prontamente os termos da crítica, contrapondo a um sistema legal outro sistema legal, e dirão que nós temos a lei civil do Antigo Testamento; fazendo isso, reduzirão a questão à decisão sobre qual é o melhor sistema, perdendo, assim, a oportunidade de denunciar, uma vez mais, a exterioridade do conceito islâmico de submissão a Deus. Seria por já terem incorporado essa mesma exterioridade em um aspecto de sua própria cosmovisão? Não posso deixar de desconfiar que o problema talvez seja exatamente esse. A argumentação teonomista terá pela frente a tarefa de afastar de mim essa suspeita.
Esse possível problema que busquei ilustrar a partir de um paralelo com o islamismo, por sua vez, levanta outra desconfiança. Como racionalista em remissão, conheço bem a sensação de pavor e confusão diante da falta de regras claras pelas quais dissolver os dilemas impostos por uma determinada categoria de questões. Larry Crabb me convenceu de que essa sensação é o ímpeto fundamental que está por trás tanto do racionalismo quanto do legalismo. Não é absurdo supor, ao menos a título de possibilidade, que a ideia de aplicar a antiga lei civil de Israel aos dias de hoje pareça atraente a alguns justamente por faltarem, no Novo Testamento, diretrizes concretas e específicas para a aplicação dos princípios cristãos nessa área, e porque fazer tal aplicação é um trabalho reconhecidamente árduo e arriscado. É claro que não estou dizendo que essa consideração sobre motivações hipotéticas é um argumento contra a teonomia, inclusive porque seus adversários estão sempre, em alguma medida, sujeitos à tentação oposta de, com medo de cair em um tradicionalismo estéril, ceder demais aos ídolos da modernidade. Estou dizendo apenas que considero que essa motivação é ao menos um perigo real, e gostaria de obter evidências de que os teonomistas com quem travarei contato têm consciência disso e se preocupam a respeito, pois isso fortalecerá a credibilidade de sua reivindicação. Por outro lado, a ausência de tais evidências enfraqueceria de modo considerável essa credibilidade, pois isso revelaria que essa possível motivação é um ponto cego na cosmovisão dos teonomistas.
Outro ponto que espero ver assegurado pelo teonomismo diz respeito à própria possibilidade de consistência da antiga lei civil sem sua contraparte cerimonial. Essa questão me ocorreu enquanto eu lia o belo livreto Lei e graça, do nosso amigo pastor Mauro Meister. A obra dedica um total de apenas três páginas à questão da teonomia, mas o ponto que me chamou a atenção não estava entre elas, e sim em sua breve análise do estabelecimento das cidades de refúgio em Números 35, pelo qual algumas cidades dos levitas deveriam acolher homicidas involuntários, protegendo-os de seus vingadores. Aqui estão claramente envolvidas as leis civil, pois trata-se de uma determinação jurídica, e cerimonial, pois pressupõe-se a existência dos levitas como tribo separada. Não vejo de que maneira a abolição do aspecto cerimonial da lei poderia deixar intocada a lei civil. As opções disponíveis parecem ser as seguintes: abolir as cidades de refúgio, desconectar a ideia das cidades de refúgio da tribo de Levi, estabelecendo-as em cidades comuns, ou esquecer as cidades de refúgio literais e buscar apreender apenas o princípio jurídico subjacente; mas nenhuma dessas opções deixa a lei civil intacta. Deve haver uma solução teonomista para o dilema, mas ele, de qualquer forma, ilustra o princípio que tenho em mente: não basta estabelecer a plausibilidade exegética da perpetuidade da lei civil se não soubermos o que fazer a partir daí. Talvez a unidade da antiga Lei seja ainda mais forte do que supõem os próprios teonomistas, e alguns pontos da lei civil (ou muitos, ou todos) não façam sentido se desvinculados da lei cerimonial. De um modo ou de outro, uma divisão na lei precisa ser feita, e é necessário, portanto, demonstrar que o resultado disso será um corpo legislativo internamente consistente e aplicável à nossa presente realidade. Espero que os defensores da teonomia tenham trabalhado sobre esse ponto e não tenham achado a tarefa mais fácil do que realmente é.
E isso nos leva ao último ponto. A consciência de minha própria ignorância, além de ser o motivo pelo qual nunca me animei a escrever sobre a teonomia, é também o motivo pelo qual não me animei sequer a estudar suas propostas. Estou convencido de que uma análise completa e consequente do tema exigiria conhecimentos que não possuo - de filosofia política, direito, história, economia e sociologia, sem deixar de fora, é claro, a teologia. Dessa forma, parece-me natural supor que um teonomista militante, no bom sentido do termo, deve ter um interesse razoavelmente profundo em entender as implicações e dificuldades da implementação de seu ideal para cada uma dessas áreas, não crendo ingenuamente que tudo se resume a ler a Bíblia. Isso, uma vez mais, não é uma consideração contra a teonomia em si, a não ser em um sentido indireto. Sou otimista quanto a encontrar teonomistas cônscios da magnitude da mudança que estão propondo e do trabalho intelectual que têm pela frente. Mas, se essa minha expectativa não se concretizar, entenderei isso como sintoma claro de que algo não vai bem no espírito do movimento.
Encerro aqui esta resumida análise do que vejo, em caráter preliminar, como potencialmente positivo ou negativo na teonomia. Embora eu não escreva senão em meu próprio nome, creio que vários leitores que têm interesse no assunto terão se identificado com algumas de minhas ideias preliminares. Nesse sentido, espero que os teonomistas e seus críticos tenham aproveitado, desses meus dois textos, a oportunidade de discernir melhor as motivações de seus opositores e, quem sabe, também as suas próprias. No que me diz respeito, ao menos foi esse o gratificante resultado que obtive do esforço de escrever sobre o assunto. Não é meu objetivo suscitar debates, mas considerações sobre os pontos que levantei são bem-vindas, bem como indicações de livros ou textos que porventura lidem com eles.