"Fé na razão não é somente fé em nossa própria razão, mas também - e ainda mais - na razão dos outros. Dessa forma, um racionalista, mesmo acreditando ser intelectualmente superior aos outros (o que lhe é difícil julgar), apenas o será na medida em que aprender, por criticismo, bem como pelos próprios erros e os alheios, pois que só se aprende, neste sentido, se se levar a sério os outros, como também seus argumentos. O racionalismo está, portanto, ligado à idéia de que a outra pessoa tem o direito de ser ouvida, e de defender seus argumentos."
Meus contatos com a filosofia de Karl Popper não foram muito intensos. Li apenas dois de seus livros: o clássico Logik der forschung (A lógica da pesquisa científica), que o tornou talvez o mais influente filósofo da ciência do século XX, e sua autobiografia intelectual, Unended quest (algo como "a busca não encerrada"), interessante não só pelos dados biográficos como também pela amplitude muito maior dos assuntos analisados, embora a própria natureza da obra inevitavelmente torne essas análises bastante superficiais. Além disso, li uma entrevista que ele concedeu pouco antes de morrer ao autor de um livro que só vale mesmo pelas entrevistas nele reproduzidas. O resto são referências em livros de divulgação científica ou sobre temas relacionados à história e à filosofia da ciência, os quais geralmente não fazem justiça às posições e intenções do filósofo austríaco, e tampouco à qualidade dos argumentos com que as defendeu. O fato de eu estar dizendo isso não significa, porém, que eu tenha grande simpatia pelas suas idéias. É verdade que ele deu várias contribuições no mínimo interessantes no seu campo de especialidade, e em muitos momentos revela uma sensatez nitidamente acima da média da filosofia contemporânea. A despeito disso, parece-me que há sérias inconsistências em certos aspectos do seu pensamento e pesadas limitações no seu conjunto. Está longe do meu objetivo imediato fazer uma análise de suas posições, embora eu pretenda fazer algo parecido com isso em outra ocasião. Independentemente do valor objetivo das concepções filosóficas de Popper, no entanto, há um sentido no qual eu o admiro profundamente. Como eu disse, não conheço em profundidade suas idéias ou sua vida, mas considero-o, dentro dos limites dos meus conhecimentos, um exemplo raro de honestidade pessoal e intelectual, especialmente no trato com pensadores com idéias opostas às suas e seus respectivos argumentos. Não posso deixar de apreciar a consideração e a cavalheiresca cordialidade com que ele os trata. Popper pode até estar errado, e freqüentemente está, mas nunca pareceu indigno do meu respeito.
A citação com que dei início a este post põe à mostra um desses momentos de lucidez intelectual a que me referi. E ela exprime bem uma coisa importante que aprendi há algum tempo. Na verdade, não é exagero dizer que é uma das coisas mais importantes que já aprendi em toda a minha vida. Não digo que aprendi isso com Popper, pois nessa época eu ainda não havia lido trecho algum do livro onde essa idéia aparece, o Logik der forschung, e mesmo o autor era ainda uma figura demasiado distante, da qual eu só ouvia falar indiretamente através dos debates travados nos anos 70 e 80 sobre criacionismo e evolucionismo, o primeiro assunto que estudei com razoável profundidade na vida. (Isso porque uma das preocupações centrais de Popper foi o estabelecimento de um critério de demarcação nítido entre as teses propriamente científicas e as demais; daí decorre a importância de Popper para os criacionistas e evolucionistas, que se apoiavam no critério proposto por ele, o da falseabilidade ou refutabilidade, para acusarem-se mutuamente de defender hipóteses extracientíficas, como, aliás, continuam a fazer até hoje.) Mas, embora não tenha sido Popper quem me ensinou tão importante lição, foi ele quem a expressou com maior clareza, e o fez justamente no trecho que transcrevi. Não é necessário preocuparmo-nos com o sentido dos termos "racionalismo" e "racionalista" nessa passagem, os quais não se referem necessariamente às correntes cientificistas desses últimos dois séculos (que, aliás, usurparam o termo de maneira bastante inapropriada), e tampouco aos antípodas do empirismo dos dois séculos anteriores. Pretendo agora apenas basear-me nessa passagem para explicar por que considero a lição embutida nela um elemento indispensável ao crescimento intelectual de quem quer que seja.
A idéia exposta por Popper é, em si mesma, muito simples, consistindo em levar os outros a sério, deixar que exponham e defendam suas posições sobre o assunto e levar isso tudo em consideração no ato de assumir uma posição própria sobre o mesmo assunto. É, portanto, uma idéia essencialmente democrática. Mais do que isso, porém: é uma concepção fundamentalmente humilde, assim como todas as idéias que funcionam, dentre as quais o exemplo mais evidente é, talvez, a própria democracia. Essa associação entre humildade e democracia, aliás, evoca quase que automaticamente a memória daquele que pode ter sido o mais perfeito exemplo ambulante de humildade intelectual: Sócrates, o grande mestre de Atenas, cuja sabedoria autêntica contrastava com a sabedoria falsa de seus antagonistas principalmente por ter como ponto de partida a consciência de sua própria limitação. Sócrates encontrou a verdadeira sabedoria ao tentar entender, profundamente intrigado, por qual razão o oráculo de Delfos o considerara o homem mais sábio de Atenas, e terminou por descobrir que era justamente porque ele não se julgava sábio, ao contrário de tantos cuja falsa pretensão de sapiência ele foi desmascarando pelo caminho. Há, porém, uma diferença importante entre a situação de Sócrates e a nossa: ele foi um dos pais fundadores, pioneiros, desbravadores da filosofia, e não tinha muitas pessoas a quem recorrer a fim de se orientar na busca pela verdade. Hoje em dia, para qualquer assunto que decidamos conhecer, há uma lista imensurável de pessoas altamente capacitadas (ou nem tanto) que empreenderam estudos a respeito. É aqui que entra a necessidade da democracia intelectual defendida por Popper, e é aqui também que se faz necessária a humildade como pré-requisito para ela.
Tudo começa com a percepção do fato óbvio de que nossas reflexões pessoais são ao menos parcialmente condicionadas por nossa experiência de vida, e esta, por mais rica e diversificada que seja, não pode jamais dar conta da imensa variedade de perspectivas que a própria realidade tem a oferecer. Estamos todos restritos a um certo ambiente cultural, intelectual e mesmo espacial e temporal, e até esse ambiente foge às nossas tentativas de abarcá-lo em sua totalidade. Isso que estou dizendo não é uma defesa do historicismo ou de qualquer forma de relativismo, pois creio que a meta primária de qualquer um que queira conhecer a verdade é constatar essas dificuldades e buscar um meio de superá-las. E não existe meio mais óbvio que esse do qual estamos falando desde o princípio. Ao indivíduo que é humilde o suficiente para perceber e admitir as limitações de sua própria perspectiva só resta buscar enriquecê-la absorvendo as idéias de outros que, ao longo da história humana, pensaram sobre o mesmo problema e forneceram suas próprias contribuições para a sua solução. Essas contribuições podem ser boas ou ruins, conforme o caso, mas é a própria multiplicidade de ângulos dos quais elas partem que faz com que as restrições do ambiente e limitações da nossa própria experiência individual e subjetiva possam, afinal, ser transcendidas rumo a um conhecimento mais seguro do objeto estudado. Pelo contato com a tradição de estudos e debates sobre o tema em pauta, absorvemos as experiências e idéias de muitos outros, e assim transcendemos, de certa forma, as fronteiras da nossa própria vivência pessoal.
O conhecimento objetivo de qualquer aspecto da realidade passa quase necessariamente, portanto, pelo conhecimento de uma tradição de reflexões, estudos e experiências a respeito do tema estudado. Quando Chesterton chamou a tradição de "democracia dos mortos", não estava estabelecendo um vínculo arbitrário entre coisas inteiramente distintas. A tradição é o lugar onde se encontram efetivamente a humildade e o respeito aos mais velhos a fim de permitir que o sujeito receba conhecimentos e, quem sabe, produza alguns novos. Sim, pois a tradição permite-se progredir, mas para isso é preciso que aquele que traz o progresso a absorva para melhorá-la a partir de dentro. É necessário conhecer aquilo que comumente se denomina o status quaestionis, o estado da questão. Se alguém pretende ser o portador da verdade sobre um assunto sem dar atenção ou sequer conhecer o que foi dito antes dele sobre o mesmo assunto por algumas das melhores mentes da história humana, podemos estar certos de que se trata de mais um charlatão desprezível que pode ser ignorado sem qualquer prejuízo para o nosso crescimento. Essa atitude arrogante e presunçosa é um exemplo específico daquele fato de ordem mais geral, segundo o qual a verdade se fecha a quem não a busca com o necessário comprometimento moral.
Para praticar essa humildade intelectual é suficiente que adotemos o pressuposto, ainda que para fins puramente metodológicos, de que as outras pessoas podem ter idéias ao menos tão boas quanto as nossas. E, se viermos a descobrir que não é o caso, ao menos não teremos negado a ninguém a oportunidade de expor e defender suas opiniões. O tradicionalismo é algo inteiramente humilde, e essa forma específica de humildade tem servido de fundamento a todas as civilizações que já existiram. Mesmo no Ocidente, até não muito tempo atrás, era considerado culto e educado o homem que conhecia ao menos os textos mais importantes produzidos pela nossa civilização e suas antepassadas diretas. Mas a presunção modernista, empenhada em opor-se a todas as tradições ou em progredir à margem das mesmas, acabou fatalmente, pela sua própria natureza, produzindo mais ignorância e ruína cultural, moral e mesmo material do que qualquer problema que ela tenha se proposto a resolver.
Meus contatos com a filosofia de Karl Popper não foram muito intensos. Li apenas dois de seus livros: o clássico Logik der forschung (A lógica da pesquisa científica), que o tornou talvez o mais influente filósofo da ciência do século XX, e sua autobiografia intelectual, Unended quest (algo como "a busca não encerrada"), interessante não só pelos dados biográficos como também pela amplitude muito maior dos assuntos analisados, embora a própria natureza da obra inevitavelmente torne essas análises bastante superficiais. Além disso, li uma entrevista que ele concedeu pouco antes de morrer ao autor de um livro que só vale mesmo pelas entrevistas nele reproduzidas. O resto são referências em livros de divulgação científica ou sobre temas relacionados à história e à filosofia da ciência, os quais geralmente não fazem justiça às posições e intenções do filósofo austríaco, e tampouco à qualidade dos argumentos com que as defendeu. O fato de eu estar dizendo isso não significa, porém, que eu tenha grande simpatia pelas suas idéias. É verdade que ele deu várias contribuições no mínimo interessantes no seu campo de especialidade, e em muitos momentos revela uma sensatez nitidamente acima da média da filosofia contemporânea. A despeito disso, parece-me que há sérias inconsistências em certos aspectos do seu pensamento e pesadas limitações no seu conjunto. Está longe do meu objetivo imediato fazer uma análise de suas posições, embora eu pretenda fazer algo parecido com isso em outra ocasião. Independentemente do valor objetivo das concepções filosóficas de Popper, no entanto, há um sentido no qual eu o admiro profundamente. Como eu disse, não conheço em profundidade suas idéias ou sua vida, mas considero-o, dentro dos limites dos meus conhecimentos, um exemplo raro de honestidade pessoal e intelectual, especialmente no trato com pensadores com idéias opostas às suas e seus respectivos argumentos. Não posso deixar de apreciar a consideração e a cavalheiresca cordialidade com que ele os trata. Popper pode até estar errado, e freqüentemente está, mas nunca pareceu indigno do meu respeito.
A citação com que dei início a este post põe à mostra um desses momentos de lucidez intelectual a que me referi. E ela exprime bem uma coisa importante que aprendi há algum tempo. Na verdade, não é exagero dizer que é uma das coisas mais importantes que já aprendi em toda a minha vida. Não digo que aprendi isso com Popper, pois nessa época eu ainda não havia lido trecho algum do livro onde essa idéia aparece, o Logik der forschung, e mesmo o autor era ainda uma figura demasiado distante, da qual eu só ouvia falar indiretamente através dos debates travados nos anos 70 e 80 sobre criacionismo e evolucionismo, o primeiro assunto que estudei com razoável profundidade na vida. (Isso porque uma das preocupações centrais de Popper foi o estabelecimento de um critério de demarcação nítido entre as teses propriamente científicas e as demais; daí decorre a importância de Popper para os criacionistas e evolucionistas, que se apoiavam no critério proposto por ele, o da falseabilidade ou refutabilidade, para acusarem-se mutuamente de defender hipóteses extracientíficas, como, aliás, continuam a fazer até hoje.) Mas, embora não tenha sido Popper quem me ensinou tão importante lição, foi ele quem a expressou com maior clareza, e o fez justamente no trecho que transcrevi. Não é necessário preocuparmo-nos com o sentido dos termos "racionalismo" e "racionalista" nessa passagem, os quais não se referem necessariamente às correntes cientificistas desses últimos dois séculos (que, aliás, usurparam o termo de maneira bastante inapropriada), e tampouco aos antípodas do empirismo dos dois séculos anteriores. Pretendo agora apenas basear-me nessa passagem para explicar por que considero a lição embutida nela um elemento indispensável ao crescimento intelectual de quem quer que seja.
A idéia exposta por Popper é, em si mesma, muito simples, consistindo em levar os outros a sério, deixar que exponham e defendam suas posições sobre o assunto e levar isso tudo em consideração no ato de assumir uma posição própria sobre o mesmo assunto. É, portanto, uma idéia essencialmente democrática. Mais do que isso, porém: é uma concepção fundamentalmente humilde, assim como todas as idéias que funcionam, dentre as quais o exemplo mais evidente é, talvez, a própria democracia. Essa associação entre humildade e democracia, aliás, evoca quase que automaticamente a memória daquele que pode ter sido o mais perfeito exemplo ambulante de humildade intelectual: Sócrates, o grande mestre de Atenas, cuja sabedoria autêntica contrastava com a sabedoria falsa de seus antagonistas principalmente por ter como ponto de partida a consciência de sua própria limitação. Sócrates encontrou a verdadeira sabedoria ao tentar entender, profundamente intrigado, por qual razão o oráculo de Delfos o considerara o homem mais sábio de Atenas, e terminou por descobrir que era justamente porque ele não se julgava sábio, ao contrário de tantos cuja falsa pretensão de sapiência ele foi desmascarando pelo caminho. Há, porém, uma diferença importante entre a situação de Sócrates e a nossa: ele foi um dos pais fundadores, pioneiros, desbravadores da filosofia, e não tinha muitas pessoas a quem recorrer a fim de se orientar na busca pela verdade. Hoje em dia, para qualquer assunto que decidamos conhecer, há uma lista imensurável de pessoas altamente capacitadas (ou nem tanto) que empreenderam estudos a respeito. É aqui que entra a necessidade da democracia intelectual defendida por Popper, e é aqui também que se faz necessária a humildade como pré-requisito para ela.
Tudo começa com a percepção do fato óbvio de que nossas reflexões pessoais são ao menos parcialmente condicionadas por nossa experiência de vida, e esta, por mais rica e diversificada que seja, não pode jamais dar conta da imensa variedade de perspectivas que a própria realidade tem a oferecer. Estamos todos restritos a um certo ambiente cultural, intelectual e mesmo espacial e temporal, e até esse ambiente foge às nossas tentativas de abarcá-lo em sua totalidade. Isso que estou dizendo não é uma defesa do historicismo ou de qualquer forma de relativismo, pois creio que a meta primária de qualquer um que queira conhecer a verdade é constatar essas dificuldades e buscar um meio de superá-las. E não existe meio mais óbvio que esse do qual estamos falando desde o princípio. Ao indivíduo que é humilde o suficiente para perceber e admitir as limitações de sua própria perspectiva só resta buscar enriquecê-la absorvendo as idéias de outros que, ao longo da história humana, pensaram sobre o mesmo problema e forneceram suas próprias contribuições para a sua solução. Essas contribuições podem ser boas ou ruins, conforme o caso, mas é a própria multiplicidade de ângulos dos quais elas partem que faz com que as restrições do ambiente e limitações da nossa própria experiência individual e subjetiva possam, afinal, ser transcendidas rumo a um conhecimento mais seguro do objeto estudado. Pelo contato com a tradição de estudos e debates sobre o tema em pauta, absorvemos as experiências e idéias de muitos outros, e assim transcendemos, de certa forma, as fronteiras da nossa própria vivência pessoal.
O conhecimento objetivo de qualquer aspecto da realidade passa quase necessariamente, portanto, pelo conhecimento de uma tradição de reflexões, estudos e experiências a respeito do tema estudado. Quando Chesterton chamou a tradição de "democracia dos mortos", não estava estabelecendo um vínculo arbitrário entre coisas inteiramente distintas. A tradição é o lugar onde se encontram efetivamente a humildade e o respeito aos mais velhos a fim de permitir que o sujeito receba conhecimentos e, quem sabe, produza alguns novos. Sim, pois a tradição permite-se progredir, mas para isso é preciso que aquele que traz o progresso a absorva para melhorá-la a partir de dentro. É necessário conhecer aquilo que comumente se denomina o status quaestionis, o estado da questão. Se alguém pretende ser o portador da verdade sobre um assunto sem dar atenção ou sequer conhecer o que foi dito antes dele sobre o mesmo assunto por algumas das melhores mentes da história humana, podemos estar certos de que se trata de mais um charlatão desprezível que pode ser ignorado sem qualquer prejuízo para o nosso crescimento. Essa atitude arrogante e presunçosa é um exemplo específico daquele fato de ordem mais geral, segundo o qual a verdade se fecha a quem não a busca com o necessário comprometimento moral.
Para praticar essa humildade intelectual é suficiente que adotemos o pressuposto, ainda que para fins puramente metodológicos, de que as outras pessoas podem ter idéias ao menos tão boas quanto as nossas. E, se viermos a descobrir que não é o caso, ao menos não teremos negado a ninguém a oportunidade de expor e defender suas opiniões. O tradicionalismo é algo inteiramente humilde, e essa forma específica de humildade tem servido de fundamento a todas as civilizações que já existiram. Mesmo no Ocidente, até não muito tempo atrás, era considerado culto e educado o homem que conhecia ao menos os textos mais importantes produzidos pela nossa civilização e suas antepassadas diretas. Mas a presunção modernista, empenhada em opor-se a todas as tradições ou em progredir à margem das mesmas, acabou fatalmente, pela sua própria natureza, produzindo mais ignorância e ruína cultural, moral e mesmo material do que qualquer problema que ela tenha se proposto a resolver.
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