Dentre as várias objeções que podem ser feitas à doutrina do progresso, entendida como a idéia segundo a qual a humanidade caminha inexoravelmente rumo a um estado cada vez melhor (seja lá o que for esse melhor, já que as diversas correntes progressistas não chegam jamais a um acordo quanto a esse detalhe), poucas me parecem tão evidentes quanto o fato de que elas ignoram o poder das bobagens, em particular o das bobagens perversamente motivadas. Muitos progressistas com os quais tive contato o são por acreditarem inocentemente no poder da verdade para desalojar e exterminar o erro. Não nego que, em última instância, a Verdade tem mesmo esse poder, nem que ela o manifestará plenamente no fim dos tempos, quando tudo o mais tiver fracassado por completo. Enquanto isso não acontece, porém, o fato é que essa confiança plena na rota automática da humanidade em direção à verdade ignora um dos fatos básicos sobre a natureza humana. A falsidade de uma idéia raramente chega a ser um grande obstáculo à sua popularidade, e menos ainda à sua utilização para fins que convenham politicamente a algum grupo. Ao contrário, é perfeitamente conforme a natureza da própria situação que aqueles que têm os melhores argumentos confiem na suficiência do poder da verdade enquanto tal, e assim se disponham a vencer pela argumentação. Enquanto isso, seus opositores, possuindo uma desvantagem óbvia nesse campo, tratarão de contornar os debates e fazer prevalecer suas posições por outros meios. Só assim se explica que uma quantidade aparentemente infindável de idéias flagrantemente absurdas possa ganhar mais força a cada nova demonstração de sua imbecilidade essencial.
O caso de que vou tratar hoje, o do relativismo cultural, é um ótimo exemplo dessa situação. Como todas as outras formas de relativismo, ele é intrinsecamente absurdo por pretender-se absoluto. A forma assumida pela contradição nesse caso específico é que o relativismo cultural propõe que a moralidade é apenas uma construção cultural. Não havendo critério para decidir o que é certo ou errado além do consenso da comunidade, segue-se que é errado julgar moralmente outras culturas. Para notar a incoerência dessa idéia, basta imaginar o que dirá o defensor dessa idéia diante de uma cultura que considera certo fazer esse tipo de julgamento moral. Como se vê, esse relativismo é uma impossibilidade lógica pura e simples, e não são necessárias mais de três linhas para demonstrar isso. Embora seja inútil como descrição da realidade, porém, ele é útil para outros fins, já que oferece orientações práticas, ou melhor, justificativas postiças para a adoção de certas práticas. Sim, pois a utilidade de todos os relativismos, assim como de todos os ceticismos, reside justamente no fato de que na prática eles jamais são empregados imparcialmente contra todos os lados envolvidos numa disputa. E o relativismo cultural, em virtude de sua própria esterilidade intelectual, converte-se automaticamente em instrumento de propaganda ideológica contra as culturas opressoras, tirânicas, imperialistas, e em favor das injustiçadas, minoritárias e perseguidas. Em outras palavras: contra a cultura judaico-cristã, européia, norte-americana e capitalista, contra a cultura islâmica tradicional e em favor de todas as demais, em especial as indígenas de todo o mundo, tão caras aos antropólogos modernistas.
Assim, nota-se que, em virtude dos fins políticos a que se propõe, o relativismo cultural é levado naturalmente a uma dicotomização das culturas que é, em teoria, o oposto exato dele mesmo. Não possuindo qualquer valor racional, ele opera no plano da mera retórica (na acepção vulgar do termo, e não no seu nobre sentido aristotélico) que, tendo dividido as culturas em duas categorias, "boas" e "ruins", tende a compará-las entre si através do justíssimo expediente de ressaltar tudo o que há de bom nas primeiras e de ruim nas últimas. O resultado é o que considero uma das mais pueris de todas as dicotomizações da realidade humana: a dos bons contra os maus, que jamais deveria exceder o universo dos filmes de bangue-bangue. É algo no mínimo aparentado ao mito do "bom selvagem", tão ardorosamente defendido por Rousseau que quase convenceu Voltaire de que o melhor a fazer era andar de quatro (segundo declaração, obviamente irônica, desse farsante iluminado). Tal concepção, muito ao gosto de diversas modas culturais e intelectuais que têm surgido no Ocidente ao longo dos últimos séculos, perpetua-se por meio das mais flagrantes omissões, distorções e inconsistências, das quais darei a seguir apenas uns poucos exemplos:
1. O conquistador espanhol Hernán Cortez é até hoje lembrado como um genocida cruel a serviço de uma nação de gananciosos, que colocou os povos indígenas uns contra os outros e provocou a destruição de uma linda e próspera civilização. O que pouca gente sabe é que a destruição dos astecas foi realizada, contra a vontade de Cortez, por iniciativa dos próprios índios que se aliaram a ele, os quais gemiam sob o pesado jugo daqueles. Dezenas de milhares de vidas humanas eram sacrificadas anualmente nos rituais religiosos astecas, e as vítimas eram recolhidas dentre esses mesmos povos vizinhos que depois auxiliaram os espanhóis. Mas é claro que, relativisticamente falando, o império espanhol era terrível, e o asteca era maravilhoso.
2. Aqui mesmo no Brasil o infanticídio é praticado freqüentemente, tendo resultado na perda de duzentas e uma vidas humanas entre 2004 e 2006, apenas entre os ianomâmis, um dos treze (ou mais) grupos indígenas que mantêm esse costume. Tendo sido cruelmente desalojados de suas terras pelos invasores brancos, e possuindo uma cultura diferente de qualquer outra, os nativos encontram-se livres da obrigação de submeterem-se à Constituição que rege a vida de todos as demais pessoas presentes no território nacional, brasileiras ou não. A Funai e certos antropólogos politicamente corretos consideram isso perfeitamente justo, ao mesmo tempo em que condenam qualquer um que se atreva a tentar impedir tais práticas, mesmo que através do diálogo ou da assistência médica às vítimas. Em contrapartida, o relato bíblico sobre o sacrifício de Isaque por seu pai Abraão (que, aliás, nem chegou a acontecer), é de uma maldade inominável.
3. Por falar em infanticídio, a monstruosa ignorância dos inquisidores medievais, que queimavam mulheres porque criam tratar-se de bruxas, é uma coisa lamentável com conseqüências terríveis, enquanto o costume de certos povos da Nova Guiné de eliminar um dos filhos gêmeos, com base na crença de que era um demônio disfarçado, é apenas uma interessante curiosidade antropológica.
4. Contrasta também com a maldade desses mesmos inquisidores para com as pobres bruxas a atitude de muitos dos nossos antropólogos e sociólogos frente ao candomblé e outras lindíssimas religiões afro-brasileiras que incluem em seu corpo de rituais alguns que, garantem seus praticantes, são eficazes em produzir a morte de indivíduos indesejados. Mas nisso, pelo menos, nossos relativistas são coerentes: tanto no caso antigo quanto no contemporâneo, eles estão sempre do lado das bruxas.
Evitei propositalmente, nos exemplos acima, falar de aspectos culturais referentes a condutas sexuais, direitos de propriedade, tratamento dispensado às mulheres, escravidão e muitos outros, para concentrar-me apenas nas violações do direito à vida, que é evidentemente o mais fundamental dentre todos os direitos humanos. Cabe ressaltar, aliás, que essa posição privilegiada do direito à vida em relação aos demais só é conhecida e aceita no Ocidente por ser esse um valor herdado do cristianismo, e desconhecido por completo em quase todas as demais culturas, antigas ou modernas, civilizadas ou não, inclusive essas que são hoje tão ardorosamente defendidas pelos relativistas de plantão. O fato é que eles são obrigados a utilizar os valores centrais do cristianismo para condenar a cultura cristã, já que dificilmente poderiam fazê-lo a partir dos valores centrais das culturas que defendem. Se tentassem fazê-lo, resultaria daí um relativismo cultural autêntico que, embora não fosse menos contraditório, seria inútil para fins de propaganda ideológica e, portanto, politicamente inócuo. A própria condenação das mortes causadas pela civilização ocidental só é possível porque ela possuía um conceito da dignidade humana ausente em quase todas as demais culturas, assim como só se pode chamar de "roubo" a colonização européia das Américas porque os europeus tinham o conceito de soberania dos estados nacionais, coisa que jamais passou pela cabeça dos ameríndios, os quais viviam de fazer guerras e tomar territórios uns dos outros sem qualquer preocupação dessa ordem. Embora poucos o percebam, na própria condenação proferida pelos relativistas existe uma homenagem velada às culturas amaldiçoadas por eles.
É essa desproporção dos julgamentos, essa duplicidade na aplicação dos valores, que considero terrível acima de tudo. E, de certa forma, as condenações a um dos lados são menos condenáveis que as absolvições do outro. Posso compreender perfeitamente, e concordar em muitos casos, quando alguém critica as Inquisições, os conquistadores espanhóis, os colonizadores europeus em geral e muitas outras pessoas, grupos e atitudes. Posso entender, embora não concorde, quando se afirma que todos eles eram maus. O que não consigo entender de jeito nenhum é a idealização quase idolátrica do outro lado, como se todos os que se opusessem aos "maus" se tornassem bons apenas por isso. A guerra entre Hitler e Stalin é a melhor demonstração histórica de que dois homens podem lutar entre si sem que seja necessário supor que um deles é sequer minimamente bom ou bem intencionado. Quem imagina que os povos primitivos são habitantes tardios do Jardim do Éden, que andam sem roupas por serem inocentes como eram Adão e Eva antes da Queda, que não se preocupam senão em levar uma vida virtuosa e em harmonia com a natureza entre uma baforada e outra do cachimbo da paz, que se conduzem pela mais pura sabedoria e vivem numa sociedade absolutamente igualitária, que praticam uma religião simples e inofensiva, simplesmente desconhece a realidade desses povos, assim como desconhecem a realidade os que preferem as versões mais civilizadas, como o Império Asteca. O relativismo cultural é tanto causa quanto conseqüência da decadência da inteligência e da virtude. No dia em que todos se convencerem dessas bobagens, estaremos próximos de um destino muito pior do que andar de quatro.
O caso de que vou tratar hoje, o do relativismo cultural, é um ótimo exemplo dessa situação. Como todas as outras formas de relativismo, ele é intrinsecamente absurdo por pretender-se absoluto. A forma assumida pela contradição nesse caso específico é que o relativismo cultural propõe que a moralidade é apenas uma construção cultural. Não havendo critério para decidir o que é certo ou errado além do consenso da comunidade, segue-se que é errado julgar moralmente outras culturas. Para notar a incoerência dessa idéia, basta imaginar o que dirá o defensor dessa idéia diante de uma cultura que considera certo fazer esse tipo de julgamento moral. Como se vê, esse relativismo é uma impossibilidade lógica pura e simples, e não são necessárias mais de três linhas para demonstrar isso. Embora seja inútil como descrição da realidade, porém, ele é útil para outros fins, já que oferece orientações práticas, ou melhor, justificativas postiças para a adoção de certas práticas. Sim, pois a utilidade de todos os relativismos, assim como de todos os ceticismos, reside justamente no fato de que na prática eles jamais são empregados imparcialmente contra todos os lados envolvidos numa disputa. E o relativismo cultural, em virtude de sua própria esterilidade intelectual, converte-se automaticamente em instrumento de propaganda ideológica contra as culturas opressoras, tirânicas, imperialistas, e em favor das injustiçadas, minoritárias e perseguidas. Em outras palavras: contra a cultura judaico-cristã, européia, norte-americana e capitalista, contra a cultura islâmica tradicional e em favor de todas as demais, em especial as indígenas de todo o mundo, tão caras aos antropólogos modernistas.
Assim, nota-se que, em virtude dos fins políticos a que se propõe, o relativismo cultural é levado naturalmente a uma dicotomização das culturas que é, em teoria, o oposto exato dele mesmo. Não possuindo qualquer valor racional, ele opera no plano da mera retórica (na acepção vulgar do termo, e não no seu nobre sentido aristotélico) que, tendo dividido as culturas em duas categorias, "boas" e "ruins", tende a compará-las entre si através do justíssimo expediente de ressaltar tudo o que há de bom nas primeiras e de ruim nas últimas. O resultado é o que considero uma das mais pueris de todas as dicotomizações da realidade humana: a dos bons contra os maus, que jamais deveria exceder o universo dos filmes de bangue-bangue. É algo no mínimo aparentado ao mito do "bom selvagem", tão ardorosamente defendido por Rousseau que quase convenceu Voltaire de que o melhor a fazer era andar de quatro (segundo declaração, obviamente irônica, desse farsante iluminado). Tal concepção, muito ao gosto de diversas modas culturais e intelectuais que têm surgido no Ocidente ao longo dos últimos séculos, perpetua-se por meio das mais flagrantes omissões, distorções e inconsistências, das quais darei a seguir apenas uns poucos exemplos:
1. O conquistador espanhol Hernán Cortez é até hoje lembrado como um genocida cruel a serviço de uma nação de gananciosos, que colocou os povos indígenas uns contra os outros e provocou a destruição de uma linda e próspera civilização. O que pouca gente sabe é que a destruição dos astecas foi realizada, contra a vontade de Cortez, por iniciativa dos próprios índios que se aliaram a ele, os quais gemiam sob o pesado jugo daqueles. Dezenas de milhares de vidas humanas eram sacrificadas anualmente nos rituais religiosos astecas, e as vítimas eram recolhidas dentre esses mesmos povos vizinhos que depois auxiliaram os espanhóis. Mas é claro que, relativisticamente falando, o império espanhol era terrível, e o asteca era maravilhoso.
2. Aqui mesmo no Brasil o infanticídio é praticado freqüentemente, tendo resultado na perda de duzentas e uma vidas humanas entre 2004 e 2006, apenas entre os ianomâmis, um dos treze (ou mais) grupos indígenas que mantêm esse costume. Tendo sido cruelmente desalojados de suas terras pelos invasores brancos, e possuindo uma cultura diferente de qualquer outra, os nativos encontram-se livres da obrigação de submeterem-se à Constituição que rege a vida de todos as demais pessoas presentes no território nacional, brasileiras ou não. A Funai e certos antropólogos politicamente corretos consideram isso perfeitamente justo, ao mesmo tempo em que condenam qualquer um que se atreva a tentar impedir tais práticas, mesmo que através do diálogo ou da assistência médica às vítimas. Em contrapartida, o relato bíblico sobre o sacrifício de Isaque por seu pai Abraão (que, aliás, nem chegou a acontecer), é de uma maldade inominável.
3. Por falar em infanticídio, a monstruosa ignorância dos inquisidores medievais, que queimavam mulheres porque criam tratar-se de bruxas, é uma coisa lamentável com conseqüências terríveis, enquanto o costume de certos povos da Nova Guiné de eliminar um dos filhos gêmeos, com base na crença de que era um demônio disfarçado, é apenas uma interessante curiosidade antropológica.
4. Contrasta também com a maldade desses mesmos inquisidores para com as pobres bruxas a atitude de muitos dos nossos antropólogos e sociólogos frente ao candomblé e outras lindíssimas religiões afro-brasileiras que incluem em seu corpo de rituais alguns que, garantem seus praticantes, são eficazes em produzir a morte de indivíduos indesejados. Mas nisso, pelo menos, nossos relativistas são coerentes: tanto no caso antigo quanto no contemporâneo, eles estão sempre do lado das bruxas.
Evitei propositalmente, nos exemplos acima, falar de aspectos culturais referentes a condutas sexuais, direitos de propriedade, tratamento dispensado às mulheres, escravidão e muitos outros, para concentrar-me apenas nas violações do direito à vida, que é evidentemente o mais fundamental dentre todos os direitos humanos. Cabe ressaltar, aliás, que essa posição privilegiada do direito à vida em relação aos demais só é conhecida e aceita no Ocidente por ser esse um valor herdado do cristianismo, e desconhecido por completo em quase todas as demais culturas, antigas ou modernas, civilizadas ou não, inclusive essas que são hoje tão ardorosamente defendidas pelos relativistas de plantão. O fato é que eles são obrigados a utilizar os valores centrais do cristianismo para condenar a cultura cristã, já que dificilmente poderiam fazê-lo a partir dos valores centrais das culturas que defendem. Se tentassem fazê-lo, resultaria daí um relativismo cultural autêntico que, embora não fosse menos contraditório, seria inútil para fins de propaganda ideológica e, portanto, politicamente inócuo. A própria condenação das mortes causadas pela civilização ocidental só é possível porque ela possuía um conceito da dignidade humana ausente em quase todas as demais culturas, assim como só se pode chamar de "roubo" a colonização européia das Américas porque os europeus tinham o conceito de soberania dos estados nacionais, coisa que jamais passou pela cabeça dos ameríndios, os quais viviam de fazer guerras e tomar territórios uns dos outros sem qualquer preocupação dessa ordem. Embora poucos o percebam, na própria condenação proferida pelos relativistas existe uma homenagem velada às culturas amaldiçoadas por eles.
É essa desproporção dos julgamentos, essa duplicidade na aplicação dos valores, que considero terrível acima de tudo. E, de certa forma, as condenações a um dos lados são menos condenáveis que as absolvições do outro. Posso compreender perfeitamente, e concordar em muitos casos, quando alguém critica as Inquisições, os conquistadores espanhóis, os colonizadores europeus em geral e muitas outras pessoas, grupos e atitudes. Posso entender, embora não concorde, quando se afirma que todos eles eram maus. O que não consigo entender de jeito nenhum é a idealização quase idolátrica do outro lado, como se todos os que se opusessem aos "maus" se tornassem bons apenas por isso. A guerra entre Hitler e Stalin é a melhor demonstração histórica de que dois homens podem lutar entre si sem que seja necessário supor que um deles é sequer minimamente bom ou bem intencionado. Quem imagina que os povos primitivos são habitantes tardios do Jardim do Éden, que andam sem roupas por serem inocentes como eram Adão e Eva antes da Queda, que não se preocupam senão em levar uma vida virtuosa e em harmonia com a natureza entre uma baforada e outra do cachimbo da paz, que se conduzem pela mais pura sabedoria e vivem numa sociedade absolutamente igualitária, que praticam uma religião simples e inofensiva, simplesmente desconhece a realidade desses povos, assim como desconhecem a realidade os que preferem as versões mais civilizadas, como o Império Asteca. O relativismo cultural é tanto causa quanto conseqüência da decadência da inteligência e da virtude. No dia em que todos se convencerem dessas bobagens, estaremos próximos de um destino muito pior do que andar de quatro.
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