Há poucos dias, Felipe Sabino publicou no GoodReads um comentário fortemente negativo com cerca de duas páginas de extensão sobre o livro “Faça discípulos ou morra tentando”, do pr. Yago Martins. Injustiças contra livros e autores são cometidas na internet diariamente e aos montes. O que me move a comentar esse episódio em especial é o fato de que sou o editor do livro. Isso não me obriga a concordar com todas as ideias e argumentos nele apresentados, mas me dá o direito de defendê-lo contra críticas que me parecem descabidas, especialmente quando vindas de um irmão que ocupa um lugar importante no mercado editorial reformado brasileiro (muito mais importante que o meu, sem dúvida alguma). O comentarista atribuiu apenas uma estrela ao livro, e os argumentos que embasam esse juízo serão resumidos e comentados abaixo.
Não se trata de uma resenha, pois quase todo o conteúdo do comentário trata apenas de uma parte do apêndice do livro, que totaliza 13 páginas. Esse apêndice se chama “Discipulando o seu país”, e é especificamente sua primeira (e menor) seção que constitui o alvo da crítica. O subtítulo é “Teonomia, discipulado nacional e o ensino de todas as coisas”. O autor critica a visão delineada em um livro de Stephen Perks sobre a Grande Comissão, em particular seu entendimento de que ela ordena discipular nações, e não indivíduos. A tese principal do comentarista diz que “a interpretação de Perks não é oriunda do seu teonomismo, mas de uma visão escatológica particular, a saber, o pós-milenismo”. Os argumentos que ele apresenta são os seguintes. A divisão em tópicos é de minha responsabilidade.
1. Depois de transcrever as palavras de Perks, o autor diz: “Muitos outros seguem esta visão. Segundo Matthew Henry, […]” (p. 231). Contudo, o comentarista informa que Henry não era teonomista, e infere dessa referência a ele que o autor não entende a distinção entre um posicionamento sobre teonomia e um posicionamento sobre escatologia.
Essa inferência da ignorância do autor, sobretudo quanto a uma questão tão básica, parece-me apressada demais. O apêndice não afirma que Henry era teonomista, e é mais natural entender as palavras “Muitos outros seguem esta visão” como se referindo especificamente ao que Perks acabou de afirmar na citação da página anterior, e não à teonomia em geral. Na verdade, as citações desse novo parágrafo, que além de Henry incluem John Peter Lange e David Chilton, são claramente menos ousadas que a de Perks, e se limitam a constatar que os Estados nacionais devem se submeter a Cristo. Nenhuma delas vai tão longe quanto Perks ao dizer que “A Grande Comissão não nos comanda sair e discipular indivíduos”. Parece mais natural inferir que o autor está aqui empenhado em demonstrar apenas que o foco em nações não é uma excentricidade isolada de Perks, conquanto ele possa ter disso uma visão particularmente radical.
Em suma, seria compreensível se o comentarista acusasse o autor de não saber que Henry não é teonomista, embora eu pense que o texto não permite essa inferência. Seria mais justo que o autor fosse acusado de cometer um pequeno deslize ao incluir sem aviso prévio um autor não teonomista por causa de certa afinidade com o pensamento de Perks. Mas nada no texto permite inferir que o autor desconhece a distinção entre teonomia e escatologia. Esse é um passo muitíssimo maior que o permitido pela evidência disponível, e seu único efeito é a interrupção da discussão séria mediante o expediente de denegrir, pela hipérbole, a imagem do criticado.
2. O comentarista argumenta que, dada uma adesão prévia ao pós-milenismo, “é natural ele acreditar que não somente uns poucos indivíduos de cada nação serão alcançados, mas um número tão grande que podemos dizer que toda uma nação foi convertida”. Suponho que sua intenção é sugerir que foi tão somente isso o que Perks quis dizer ao falar em “discipular as nações”. Resultaria daí que o autor do apêndice o entendeu mal e está argumentando contra um espantalho. Na verdade, o comentarista censura o autor por “sugerir que Perks nega a ideia de se discipular os indivíduos como MEIO de discipular uma nação como um todo, o que é absurdo completo. Trata-se de representação caluniosa, ou analfabetismo funcional.”
Se entender do mesmo modo que o autor revela analfabetismo funcional, também sou um analfabeto funcional. Contudo, não me parece que o comentarista o tenha interpretado corretamente. Em parte alguma o autor afirma que Perks é contra a evangelização individual. No entanto, a citação de Perks transcrita no apêndice diz claramente que “A Grande Comissão não nos comanda a sair para discipular indivíduos. […] Ela nos comanda discipular as nações” (p. 230). Se estivesse correta a interpretação do comentarista, não faria sentido algum contrapor as duas coisas, e essa contraposição é exatamente o que Perks faz. Pelo que está escrito aí, eu não cumpro a Grande Comissão ao evangelizar meu vizinho. Até onde posso ver, a interpretação do autor está correta, e o comentarista tenta em vão diluir a força das afirmações de Perks em um lugar-comum pós-milenista. Mas se for verdade que Perks, embora dê a entender o contrário, considera a evangelização individual um meio para o cumprimento da Grande Comissão, ele continua deslocando indevidamente o foco do texto dos indivíduos para as nações, e com isso o essencial das críticas do apêndice continua sendo pertinente.
É possível, naturalmente, que Perks tenha se expressado mal, que ele tenha se deixado levar pelo excesso de retórica. Nesse caso, porém, o comentarista podia não só ter expressado seu desacordo interpretativo com maior polidez, mas também ter resolvido a questão apresentando evidências de que sua interpretação é preferível. Se, ao contrário do que aquela citação isolada dá a entender, Perks crê que quem evangeliza indivíduos está de fato atuando no discipulado das nações, não deve ser difícil documentar isso com base em outras obras, ou mesmo de outras partes da mesma obra. Apresentar essa evidência elevaria o nível do debate e, na verdade, eliminaria qualquer dúvida sobre o problema. Acusar de calúnia e analfabetismo funcional não faz nenhuma das duas coisas.
3. O comentarista acusa o autor de arbitrariedade por chamar de “teonomista” a interpretação que Perks e Gentry dão ao texto da Grande Comissão. Ele qualifica essa associação como “absurda" e diz que isso “é o mesmo que chamar a interpretação de Perks sobre João 1.1 de 'interpretação teonomista'. Ora, se o tema de Mateus 28 não é o papel da lei de Deus no mundo moderno, não podemos chamar a interpretação de interpretação teonomista ou não teonomista.”
O argumento me parece falho por duas razões. A primeira é que, embora eu esteja longe de me considerar um conhecedor profundo do pensamento teonomista, estou informado de que uma de suas ênfases é precisamente a validade perene da lei de Deus. E, justamente por ser perene, essa validade nada tem de particularmente moderno. Se os teonomistas enfatizam o mundo moderno em suas discussões, é tão somente porque vivem nele, e não porque o mundo moderno esgote o interesse da teonomia. Daqui a mil anos poderemos estar no mundo pós-pós-(…)-pós-moderno, e os teonomistas de então ainda estarão dissertando sobre o papel da lei de Deus naquele contexto. Tanto a lei de Deus (segundo o entendimento teonomista) quanto a Grande Comissão estão em vigor, de modo que não há nada, em princípio, que impeça um teonomista de ver conexões entre as duas coisas. Ou, se há, essa razão não foi bem expressa no argumento do comentarista.
A segunda razão pela qual considero esse argumento fraco é justamente o fato de que Perks parece ver uma conexão entre as duas coisas. Embora o comentarista se esforce para nos convencer do contrário, não é nem um pouco despropositado que um teonomista enxergue afinidade entre a ideia de “discipular as nações” e a adoção da lei de Deus pelos Estados nacionais, interpretando dessa maneira o texto da Grande Comissão. Isso não é arbitrário nem absurdo, sobretudo porque Perks, em sua exegese, enfatiza o alvo institucional em contraposição ao individual.
A expressão “interpretação teonomista” talvez pudesse ser desrecomendada em outras bases. Por exemplo, se fosse demonstrado que o entendimento que Perks apresenta do texto da Grande Comissão é contradito pelo de outros teonomistas, que é minoritário nesse meio ou que há opções hermenêuticas igualmente (ou ainda mais) compatíveis com a teonomia. Mas não há a mínima sugestão de nada disso no comentário.
4. Sobre os problemas que o autor aponta na visão de Perks, o comentarista declara que “são tão ilógicos e sem relação com a posição do autor, que não merecem ser comentados”. Apesar disso, ele graciosamente comenta dois itens. O primeiro é que, segundo o autor, a visão de Perks “faz com que acreditemos que o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O comentarista pergunta: “Mas como os estados se tornariam cristãos sem que houvesse um número de convertidos majoritário nesta nação?” A implicação pretendida parece ser a de que isso é contraditório e demonstra que o autor do apêndice não entendeu bem a posição de Perks. Como demonstrei no item 2, o comentarista já tentou provar isso, mas sem sucesso. Se o comentarista estiver correto em ver aí uma contradição, nada em seu argumento nos obriga a pensar que o responsável por ela seja o autor do apêndice. Pode muito bem ser uma contradição de Perks. Na verdade, talvez nem seja uma contradição (pessoalmente, não estou convencido de que seja). Mas essa pressa do comentarista em atribuir contradição ao autor, quando há outras opções claramente disponíveis e não refutadas por argumentação consistente, é indício de certa má vontade de sua parte, e isso é tudo o que julgo dever observar.
5. O segundo item comentado pelo comentarista é a comparação com o islamismo. O autor afirma que, adotando-se as ênfases de Perks, “nossa visão teológica da Missão será mais parecida com a visão islâmica” (p. 232). O comentarista objeta a essa comparação dizendo que os principais teonomistas defendem um Estado mínimo constituído exclusivamente para punição de malfeitores. Ele objeta também que o Estado teonomista, ao contrário do islâmico, “não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração” (essa afirmação do comentarista constitui uma trapalhada transcultural, mas não convém tratar disso aqui). E alfineta novamente, com frases como “qualquer pessoa que estude minimamente a posição teonomista sabe que […]” e “Eu esperaria que um comentário 'um pouco mais técnico' considerasse isso”.
Essa objeção desconsidera o contexto da afirmação do autor. A semelhança que ele vê entre a visão teonomista da Grande Comissão e a visão islâmica está explicada no mesmo parágrafo: não reside no tamanho ou função do Estado, e sim na convicção de que “o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O texto do apêndice não autoriza a suposição de que o autor enxerga qualquer outra semelhança além dessa. Sem perceber, o comentarista mudou de assunto e desperdiçou alfinetes.
6. Vem em seguida uma série de recriminações que repetem a falácia do item 4. O autor é reprovado por desconsiderar que “no teonomismo […] o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições” e que “para qualquer um que conheça a posição teonomista, esse Estado ideal não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração”. Ainda que tudo isso seja verdade, resta o fato de que Perks afirmou que a Grande Comissão trata de discipular nações, e não indivíduos. Se ele disse isso sendo inconsistente com sua posição teonomista, devem existir dezenas de obras teonomistas reprovando-o explicitamente por isso, e o comentarista poderia fortalecer seu argumento apresentando algumas citações nesse sentido. Se, ao contrário, outros teonomistas leram as afirmações de Perks e não viram nada de errado, isso indica que as coisas talvez não sejam bem como o comentarista as apresenta. Talvez haja alguma tensão interna a ser resolvida no pensamento de Perks, ou dos teonomistas em geral. Ou talvez, como já sugeri antes, Perks tenha se expressado mal. Em meio a todas essas possibilidades, que poderiam ser corroboradas com argumentos e citações adicionais, o comentarista optou por simplesmente acusar de ignorância o autor do apêndice sem fornecer evidência alguma, seja da ignorância, seja das verdades ignoradas. Não me parece justo que o autor do livro, que não é teonomista, tenha a obrigação de apresentar a teonomia sob uma luz positiva enquanto os teonomistas que o criticam desperdiçam tão grande oportunidade de demonstrar seus erros com argumentos melhores.
7. O comentarista diz que, segundo o teonomismo, “o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições, como ele sugere. Aliás, mesmo que o foco fosse nas instituições, estas são constituídas de indivíduos, ora bolas.”
O argumento é claramente falacioso. Nações são constituídas de indivíduos, e indivíduos constituem nações. Não é aí que Perks e o autor do apêndice divergem. Eles divergem especificamente sobre qual dos dois grupos de entidades constitui o foco do texto da Grande Comissão. E podem divergir justamente porque não é indiferente que o texto se refira a uns ou outras. Se fosse o caso, o próprio Perks não teria colocado tanta ênfase na importância de se entender que o texto se refere a nações, e não a indivíduos. E ele escreveu de modo a lançar dúvidas sobre se isso é mesmo tão óbvio quanto o comentarista afirma.
8. O comentarista volta a criticar o autor por associar teonomia e pós-milenismo e se põe a dissertar sobre as diferenças. Nenhuma evidência de que essa confusão de fato ocorreu é apresentada. Parece-me que o comentarista confia demais naquela menção a Henry, já discutida no item 1.
Para estabelecer a associação entre a interpretação de Perks e o pós-milenismo, seria relevante que o comentarista apresentasse evidências de que o pós-milenismo leva necessariamente (ou, pelo menos, com naturalidade) à visão que Perks apresenta na citação da página 230. A pergunta relevante é: por que o otimismo escatológico leva a privilegiar nações em detrimento de indivíduos na exegese de Mt 28.-18-20? Não vejo nenhuma razão para isso, e procurei delinear na seção 3 as razões pelas quais vejo alguma afinidade entre essa exegese e o espírito da teonomia. Esse seria um dos pontos mais importantes a demonstrar em uma defesa rigorosa da tese principal desse comentário. Especificamente, ficou faltando a fundamentação desta sentença: "os incautos, sem perceber, leem um trecho de Perks, atacam-no como se fosse um exemplo de heresia do teonomismo, quando na verdade é apenas o reflexo de uma visão pós-milenista”. Claro, faltou também demonstrar que o autor do livro é um incauto.
9. Na exposição do argumento final para dar só uma estrela ao livro, o comentarista declara: “Se este é o nível do conteúdo 'um pouco mais técnico' do livro, não me aventuro a ler o restante do livro.” Portanto, a nota foi dada com base apenas no apêndice. Ou talvez em parte dele, pois não há comentário algum sobre a maior parte do mesmo apêndice, que trata da teologia da missão integral. Ao todo, o comentarista parece ter lido menos de 5% do livro. Mas a estrela única foi para o livro todo. O comentarista está claramente confiante de que sua avaliação foi justa, e a razão para isso pode ser discernida nas palavras acima. Seu argumento é este: se a parte que o autor aponta como “mais técnica” é tão ruim, a parte menos técnica deve ser igualmente ruim, ou pior. Mas esse raciocínio é falacioso. Já li muitos livros que são ruins na parte mais técnica e excelentes nas outras partes. Já li também muitos livros na situação oposta. O fato é que cada autor tem seus pontos fortes e fracos. Ainda que suas opiniões sobre o apêndice fossem manifestamente confiáveis, o comentarista não possuiria meios legítimos de fazer a inferência que fez. Não sem ler o livro.
10. Omiti vários ataques ad hominem contidos no comentário, limitando-me a apresentar apenas o suficiente para mostrar que houve má vontade na leitura, sobretudo na desproporção entre os defeitos (bem ou mal) verificados e os comentários depreciativos resultantes sobre a pessoa do autor. Apresento apenas mais um exemplo: “poderíamos resumir esse apêndice da seguinte forma, pelo menos no que concerne à teonomia: Yago não sabe o que está falando. Perdão por não vos apresentar uma novidade”. Essa última frase tem o efeito de reforçar eventuais predisposições contra o autor, mesmo que essa não tenha sido a intenção do comentarista.
11. Dentro desse mesmo espírito, era necessário ao propósito do comentário que algo fosse dito para neutralizar o efeito do prefácio do pr. Franklin Ferreira, que é reconhecidamente um dos maiores teólogos do Brasil. A questão que subjaz é: como um teólogo desse gabarito pôde prefaciar uma obra tão ruim? O comentário busca contornar esse problema ressaltando que no prefácio “quase não há interação com o texto” do livro. O post scriptum esclarece que não era sua intenção sugerir que o prefaciador não leu o livro, e sim “que talvez não haja nada digno de ser citado”. A sugestão implícita é a de que o pr. Franklin não vê problema em prefaciar livros nos quais não vê nada digno de ser citado. Basta pensar um pouquinho para ver que o argumento é fraco e, na verdade, está à beira do desespero.
Creio que devo concluir com alguns esclarecimentos sobre o que não tive intenção de fazer no presente texto. Primeiro, não é meu propósito incentivar qualquer desprezo pelo comentarista. Felipe Sabino não é exatamente um amigo próximo, mas mantenho por ele profundo respeito e gratidão, e essa invectiva lamentável não diminui meu apreço por ele. Também não pretendo fazer nenhum diagnóstico de suas motivações, pois isso é algo que ele mesmo pode fazer em seu autoexame diante de Deus. Da mesma forma, embora eu não seja teonomista, não vejo meu texto ou o apêndice do livro como condenações integrais da proposta teonomista. O movimento e o próprio Perks têm momentos melhores que essa interpretação específica da Grande Comissão, como o próprio apêndice sugere (p. 239 e 241). Se não foram abordados no livro, é porque o livro é sobre a Grande Comissão, e não sobre teonomia.
O que pretendo e espero ter feito neste texto é apenas favorecer um tratamento mais justo a um livro que não editei por acaso, nem por simples amizade com o autor, e sim porque sua leitura me abençoou muitíssimo. Seria uma pena e um desserviço ao Reino de Deus que alguém desistisse de ler o livro do pr. Yago Martins por causa do comentário que acabo de discutir. Se me dei ao trabalho de escrever uma refutação, foi apenas na esperança de soar mais convincente ao recomendar isto: que você ignore (ou melhor, suspenda o juízo sobre) o comentário de Felipe Sabino até ter lido o livro; mas, acima de tudo, que leia o livro. Vale a pena.
Não se trata de uma resenha, pois quase todo o conteúdo do comentário trata apenas de uma parte do apêndice do livro, que totaliza 13 páginas. Esse apêndice se chama “Discipulando o seu país”, e é especificamente sua primeira (e menor) seção que constitui o alvo da crítica. O subtítulo é “Teonomia, discipulado nacional e o ensino de todas as coisas”. O autor critica a visão delineada em um livro de Stephen Perks sobre a Grande Comissão, em particular seu entendimento de que ela ordena discipular nações, e não indivíduos. A tese principal do comentarista diz que “a interpretação de Perks não é oriunda do seu teonomismo, mas de uma visão escatológica particular, a saber, o pós-milenismo”. Os argumentos que ele apresenta são os seguintes. A divisão em tópicos é de minha responsabilidade.
1. Depois de transcrever as palavras de Perks, o autor diz: “Muitos outros seguem esta visão. Segundo Matthew Henry, […]” (p. 231). Contudo, o comentarista informa que Henry não era teonomista, e infere dessa referência a ele que o autor não entende a distinção entre um posicionamento sobre teonomia e um posicionamento sobre escatologia.
Essa inferência da ignorância do autor, sobretudo quanto a uma questão tão básica, parece-me apressada demais. O apêndice não afirma que Henry era teonomista, e é mais natural entender as palavras “Muitos outros seguem esta visão” como se referindo especificamente ao que Perks acabou de afirmar na citação da página anterior, e não à teonomia em geral. Na verdade, as citações desse novo parágrafo, que além de Henry incluem John Peter Lange e David Chilton, são claramente menos ousadas que a de Perks, e se limitam a constatar que os Estados nacionais devem se submeter a Cristo. Nenhuma delas vai tão longe quanto Perks ao dizer que “A Grande Comissão não nos comanda sair e discipular indivíduos”. Parece mais natural inferir que o autor está aqui empenhado em demonstrar apenas que o foco em nações não é uma excentricidade isolada de Perks, conquanto ele possa ter disso uma visão particularmente radical.
Em suma, seria compreensível se o comentarista acusasse o autor de não saber que Henry não é teonomista, embora eu pense que o texto não permite essa inferência. Seria mais justo que o autor fosse acusado de cometer um pequeno deslize ao incluir sem aviso prévio um autor não teonomista por causa de certa afinidade com o pensamento de Perks. Mas nada no texto permite inferir que o autor desconhece a distinção entre teonomia e escatologia. Esse é um passo muitíssimo maior que o permitido pela evidência disponível, e seu único efeito é a interrupção da discussão séria mediante o expediente de denegrir, pela hipérbole, a imagem do criticado.
2. O comentarista argumenta que, dada uma adesão prévia ao pós-milenismo, “é natural ele acreditar que não somente uns poucos indivíduos de cada nação serão alcançados, mas um número tão grande que podemos dizer que toda uma nação foi convertida”. Suponho que sua intenção é sugerir que foi tão somente isso o que Perks quis dizer ao falar em “discipular as nações”. Resultaria daí que o autor do apêndice o entendeu mal e está argumentando contra um espantalho. Na verdade, o comentarista censura o autor por “sugerir que Perks nega a ideia de se discipular os indivíduos como MEIO de discipular uma nação como um todo, o que é absurdo completo. Trata-se de representação caluniosa, ou analfabetismo funcional.”
Se entender do mesmo modo que o autor revela analfabetismo funcional, também sou um analfabeto funcional. Contudo, não me parece que o comentarista o tenha interpretado corretamente. Em parte alguma o autor afirma que Perks é contra a evangelização individual. No entanto, a citação de Perks transcrita no apêndice diz claramente que “A Grande Comissão não nos comanda a sair para discipular indivíduos. […] Ela nos comanda discipular as nações” (p. 230). Se estivesse correta a interpretação do comentarista, não faria sentido algum contrapor as duas coisas, e essa contraposição é exatamente o que Perks faz. Pelo que está escrito aí, eu não cumpro a Grande Comissão ao evangelizar meu vizinho. Até onde posso ver, a interpretação do autor está correta, e o comentarista tenta em vão diluir a força das afirmações de Perks em um lugar-comum pós-milenista. Mas se for verdade que Perks, embora dê a entender o contrário, considera a evangelização individual um meio para o cumprimento da Grande Comissão, ele continua deslocando indevidamente o foco do texto dos indivíduos para as nações, e com isso o essencial das críticas do apêndice continua sendo pertinente.
É possível, naturalmente, que Perks tenha se expressado mal, que ele tenha se deixado levar pelo excesso de retórica. Nesse caso, porém, o comentarista podia não só ter expressado seu desacordo interpretativo com maior polidez, mas também ter resolvido a questão apresentando evidências de que sua interpretação é preferível. Se, ao contrário do que aquela citação isolada dá a entender, Perks crê que quem evangeliza indivíduos está de fato atuando no discipulado das nações, não deve ser difícil documentar isso com base em outras obras, ou mesmo de outras partes da mesma obra. Apresentar essa evidência elevaria o nível do debate e, na verdade, eliminaria qualquer dúvida sobre o problema. Acusar de calúnia e analfabetismo funcional não faz nenhuma das duas coisas.
3. O comentarista acusa o autor de arbitrariedade por chamar de “teonomista” a interpretação que Perks e Gentry dão ao texto da Grande Comissão. Ele qualifica essa associação como “absurda" e diz que isso “é o mesmo que chamar a interpretação de Perks sobre João 1.1 de 'interpretação teonomista'. Ora, se o tema de Mateus 28 não é o papel da lei de Deus no mundo moderno, não podemos chamar a interpretação de interpretação teonomista ou não teonomista.”
O argumento me parece falho por duas razões. A primeira é que, embora eu esteja longe de me considerar um conhecedor profundo do pensamento teonomista, estou informado de que uma de suas ênfases é precisamente a validade perene da lei de Deus. E, justamente por ser perene, essa validade nada tem de particularmente moderno. Se os teonomistas enfatizam o mundo moderno em suas discussões, é tão somente porque vivem nele, e não porque o mundo moderno esgote o interesse da teonomia. Daqui a mil anos poderemos estar no mundo pós-pós-(…)-pós-moderno, e os teonomistas de então ainda estarão dissertando sobre o papel da lei de Deus naquele contexto. Tanto a lei de Deus (segundo o entendimento teonomista) quanto a Grande Comissão estão em vigor, de modo que não há nada, em princípio, que impeça um teonomista de ver conexões entre as duas coisas. Ou, se há, essa razão não foi bem expressa no argumento do comentarista.
A segunda razão pela qual considero esse argumento fraco é justamente o fato de que Perks parece ver uma conexão entre as duas coisas. Embora o comentarista se esforce para nos convencer do contrário, não é nem um pouco despropositado que um teonomista enxergue afinidade entre a ideia de “discipular as nações” e a adoção da lei de Deus pelos Estados nacionais, interpretando dessa maneira o texto da Grande Comissão. Isso não é arbitrário nem absurdo, sobretudo porque Perks, em sua exegese, enfatiza o alvo institucional em contraposição ao individual.
A expressão “interpretação teonomista” talvez pudesse ser desrecomendada em outras bases. Por exemplo, se fosse demonstrado que o entendimento que Perks apresenta do texto da Grande Comissão é contradito pelo de outros teonomistas, que é minoritário nesse meio ou que há opções hermenêuticas igualmente (ou ainda mais) compatíveis com a teonomia. Mas não há a mínima sugestão de nada disso no comentário.
4. Sobre os problemas que o autor aponta na visão de Perks, o comentarista declara que “são tão ilógicos e sem relação com a posição do autor, que não merecem ser comentados”. Apesar disso, ele graciosamente comenta dois itens. O primeiro é que, segundo o autor, a visão de Perks “faz com que acreditemos que o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O comentarista pergunta: “Mas como os estados se tornariam cristãos sem que houvesse um número de convertidos majoritário nesta nação?” A implicação pretendida parece ser a de que isso é contraditório e demonstra que o autor do apêndice não entendeu bem a posição de Perks. Como demonstrei no item 2, o comentarista já tentou provar isso, mas sem sucesso. Se o comentarista estiver correto em ver aí uma contradição, nada em seu argumento nos obriga a pensar que o responsável por ela seja o autor do apêndice. Pode muito bem ser uma contradição de Perks. Na verdade, talvez nem seja uma contradição (pessoalmente, não estou convencido de que seja). Mas essa pressa do comentarista em atribuir contradição ao autor, quando há outras opções claramente disponíveis e não refutadas por argumentação consistente, é indício de certa má vontade de sua parte, e isso é tudo o que julgo dever observar.
5. O segundo item comentado pelo comentarista é a comparação com o islamismo. O autor afirma que, adotando-se as ênfases de Perks, “nossa visão teológica da Missão será mais parecida com a visão islâmica” (p. 232). O comentarista objeta a essa comparação dizendo que os principais teonomistas defendem um Estado mínimo constituído exclusivamente para punição de malfeitores. Ele objeta também que o Estado teonomista, ao contrário do islâmico, “não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração” (essa afirmação do comentarista constitui uma trapalhada transcultural, mas não convém tratar disso aqui). E alfineta novamente, com frases como “qualquer pessoa que estude minimamente a posição teonomista sabe que […]” e “Eu esperaria que um comentário 'um pouco mais técnico' considerasse isso”.
Essa objeção desconsidera o contexto da afirmação do autor. A semelhança que ele vê entre a visão teonomista da Grande Comissão e a visão islâmica está explicada no mesmo parágrafo: não reside no tamanho ou função do Estado, e sim na convicção de que “o foco principal de Deus é em países e estados cristãos, e não em convertidos de todas as nações” (p. 232). O texto do apêndice não autoriza a suposição de que o autor enxerga qualquer outra semelhança além dessa. Sem perceber, o comentarista mudou de assunto e desperdiçou alfinetes.
6. Vem em seguida uma série de recriminações que repetem a falácia do item 4. O autor é reprovado por desconsiderar que “no teonomismo […] o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições” e que “para qualquer um que conheça a posição teonomista, esse Estado ideal não deve ser alcançado mediante revolução, mas por meio de regeneração”. Ainda que tudo isso seja verdade, resta o fato de que Perks afirmou que a Grande Comissão trata de discipular nações, e não indivíduos. Se ele disse isso sendo inconsistente com sua posição teonomista, devem existir dezenas de obras teonomistas reprovando-o explicitamente por isso, e o comentarista poderia fortalecer seu argumento apresentando algumas citações nesse sentido. Se, ao contrário, outros teonomistas leram as afirmações de Perks e não viram nada de errado, isso indica que as coisas talvez não sejam bem como o comentarista as apresenta. Talvez haja alguma tensão interna a ser resolvida no pensamento de Perks, ou dos teonomistas em geral. Ou talvez, como já sugeri antes, Perks tenha se expressado mal. Em meio a todas essas possibilidades, que poderiam ser corroboradas com argumentos e citações adicionais, o comentarista optou por simplesmente acusar de ignorância o autor do apêndice sem fornecer evidência alguma, seja da ignorância, seja das verdades ignoradas. Não me parece justo que o autor do livro, que não é teonomista, tenha a obrigação de apresentar a teonomia sob uma luz positiva enquanto os teonomistas que o criticam desperdiçam tão grande oportunidade de demonstrar seus erros com argumentos melhores.
7. O comentarista diz que, segundo o teonomismo, “o foco do ensino está obviamente no indivíduo, e não nas instituições, como ele sugere. Aliás, mesmo que o foco fosse nas instituições, estas são constituídas de indivíduos, ora bolas.”
O argumento é claramente falacioso. Nações são constituídas de indivíduos, e indivíduos constituem nações. Não é aí que Perks e o autor do apêndice divergem. Eles divergem especificamente sobre qual dos dois grupos de entidades constitui o foco do texto da Grande Comissão. E podem divergir justamente porque não é indiferente que o texto se refira a uns ou outras. Se fosse o caso, o próprio Perks não teria colocado tanta ênfase na importância de se entender que o texto se refere a nações, e não a indivíduos. E ele escreveu de modo a lançar dúvidas sobre se isso é mesmo tão óbvio quanto o comentarista afirma.
8. O comentarista volta a criticar o autor por associar teonomia e pós-milenismo e se põe a dissertar sobre as diferenças. Nenhuma evidência de que essa confusão de fato ocorreu é apresentada. Parece-me que o comentarista confia demais naquela menção a Henry, já discutida no item 1.
Para estabelecer a associação entre a interpretação de Perks e o pós-milenismo, seria relevante que o comentarista apresentasse evidências de que o pós-milenismo leva necessariamente (ou, pelo menos, com naturalidade) à visão que Perks apresenta na citação da página 230. A pergunta relevante é: por que o otimismo escatológico leva a privilegiar nações em detrimento de indivíduos na exegese de Mt 28.-18-20? Não vejo nenhuma razão para isso, e procurei delinear na seção 3 as razões pelas quais vejo alguma afinidade entre essa exegese e o espírito da teonomia. Esse seria um dos pontos mais importantes a demonstrar em uma defesa rigorosa da tese principal desse comentário. Especificamente, ficou faltando a fundamentação desta sentença: "os incautos, sem perceber, leem um trecho de Perks, atacam-no como se fosse um exemplo de heresia do teonomismo, quando na verdade é apenas o reflexo de uma visão pós-milenista”. Claro, faltou também demonstrar que o autor do livro é um incauto.
9. Na exposição do argumento final para dar só uma estrela ao livro, o comentarista declara: “Se este é o nível do conteúdo 'um pouco mais técnico' do livro, não me aventuro a ler o restante do livro.” Portanto, a nota foi dada com base apenas no apêndice. Ou talvez em parte dele, pois não há comentário algum sobre a maior parte do mesmo apêndice, que trata da teologia da missão integral. Ao todo, o comentarista parece ter lido menos de 5% do livro. Mas a estrela única foi para o livro todo. O comentarista está claramente confiante de que sua avaliação foi justa, e a razão para isso pode ser discernida nas palavras acima. Seu argumento é este: se a parte que o autor aponta como “mais técnica” é tão ruim, a parte menos técnica deve ser igualmente ruim, ou pior. Mas esse raciocínio é falacioso. Já li muitos livros que são ruins na parte mais técnica e excelentes nas outras partes. Já li também muitos livros na situação oposta. O fato é que cada autor tem seus pontos fortes e fracos. Ainda que suas opiniões sobre o apêndice fossem manifestamente confiáveis, o comentarista não possuiria meios legítimos de fazer a inferência que fez. Não sem ler o livro.
10. Omiti vários ataques ad hominem contidos no comentário, limitando-me a apresentar apenas o suficiente para mostrar que houve má vontade na leitura, sobretudo na desproporção entre os defeitos (bem ou mal) verificados e os comentários depreciativos resultantes sobre a pessoa do autor. Apresento apenas mais um exemplo: “poderíamos resumir esse apêndice da seguinte forma, pelo menos no que concerne à teonomia: Yago não sabe o que está falando. Perdão por não vos apresentar uma novidade”. Essa última frase tem o efeito de reforçar eventuais predisposições contra o autor, mesmo que essa não tenha sido a intenção do comentarista.
11. Dentro desse mesmo espírito, era necessário ao propósito do comentário que algo fosse dito para neutralizar o efeito do prefácio do pr. Franklin Ferreira, que é reconhecidamente um dos maiores teólogos do Brasil. A questão que subjaz é: como um teólogo desse gabarito pôde prefaciar uma obra tão ruim? O comentário busca contornar esse problema ressaltando que no prefácio “quase não há interação com o texto” do livro. O post scriptum esclarece que não era sua intenção sugerir que o prefaciador não leu o livro, e sim “que talvez não haja nada digno de ser citado”. A sugestão implícita é a de que o pr. Franklin não vê problema em prefaciar livros nos quais não vê nada digno de ser citado. Basta pensar um pouquinho para ver que o argumento é fraco e, na verdade, está à beira do desespero.
Creio que devo concluir com alguns esclarecimentos sobre o que não tive intenção de fazer no presente texto. Primeiro, não é meu propósito incentivar qualquer desprezo pelo comentarista. Felipe Sabino não é exatamente um amigo próximo, mas mantenho por ele profundo respeito e gratidão, e essa invectiva lamentável não diminui meu apreço por ele. Também não pretendo fazer nenhum diagnóstico de suas motivações, pois isso é algo que ele mesmo pode fazer em seu autoexame diante de Deus. Da mesma forma, embora eu não seja teonomista, não vejo meu texto ou o apêndice do livro como condenações integrais da proposta teonomista. O movimento e o próprio Perks têm momentos melhores que essa interpretação específica da Grande Comissão, como o próprio apêndice sugere (p. 239 e 241). Se não foram abordados no livro, é porque o livro é sobre a Grande Comissão, e não sobre teonomia.
O que pretendo e espero ter feito neste texto é apenas favorecer um tratamento mais justo a um livro que não editei por acaso, nem por simples amizade com o autor, e sim porque sua leitura me abençoou muitíssimo. Seria uma pena e um desserviço ao Reino de Deus que alguém desistisse de ler o livro do pr. Yago Martins por causa do comentário que acabo de discutir. Se me dei ao trabalho de escrever uma refutação, foi apenas na esperança de soar mais convincente ao recomendar isto: que você ignore (ou melhor, suspenda o juízo sobre) o comentário de Felipe Sabino até ter lido o livro; mas, acima de tudo, que leia o livro. Vale a pena.