20 de agosto de 2016

Profecia e divindade - parte 4

1.4.3. Questões legais

Os textos bíblicos que o preletor cita para demonstrar que os muçulmanos, e não os cristãos, seguem os ensinamentos da Bíblia e de Jesus se dividem em duas categorias. A primeira é sobre a identidade de Jesus, assunto que discutirei mais extensamente a partir da próxima postagem. Agora vou tratar da segunda categoria, que é a das prescrições práticas e da atitude de Jesus diante da lei. Diante do que expliquei no item 1.2 a respeito da relação entre cristianismo e judaísmo, creio que não será necessário aprofundar muito as explicações neste ponto, sendo suficiente especificar e aplicar alguns princípios gerais já delineados. O preletor do vídeo levanta três supostos pontos de divergência entre Jesus e os cristãos:

Circuncisão: é mencionado que, segundo o evangelho de Lucas, Jesus foi circuncidado; não é fornecida a passagem específica, mas isso de fato está dito em Lucas 2.21. Contudo, a circuncisão era parte da lei cerimonial judaica, que, como expliquei, os apóstolos vieram a considerar como sombras da realidade trazida por Cristo. (Na verdade, a circuncisão foi instituída por Deus nos tempos de Abraão; como os árabes também descendem de Abraão, eles mantêm essa prática até hoje, à parte da tradição judaica.) No caso específico da circuncisão, esse entendimento de que ela era de caráter provisório é expresso no Novo Testamento de modo bastante explícito. Já citei Paulo dizendo que a circuncisão que importa é a do coração, e não a da carne, mas o fato é que todo o capítulo 15 de Atos é dedicado a narrar a controvérsia que esse assunto levantou na igreja primitiva, e de que maneira os apóstolos e a igreja reunida em Jerusalém decidiram a questão: em essência, o argumento que venceu foi que visivelmente Deus estava salvando os gentios e manifestando seu poder entre eles sem que tivessem sido circuncidados, e isso indicava que não era a intenção de Deus que eles se submetessem à lei cerimonial dos judeus. Paulo também discutiu o assunto extensamente na carta aos Gálatas, e sua posição é bastante contundente: os que queriam que os cristãos gentios se circuncidassem estavam implicitamente negando o evangelho ao afirmar que nossa relação com Deus depende do cumprimento da lei, e não da graça que Cristo nos oferece. Veja-se o seguinte trecho do capítulo 5: "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Portanto, permaneçam firmes e não se deixem submeter novamente a um jugo de escravidão. Ouçam bem o que eu, Paulo, lhes digo: Caso se deixem circuncidar, Cristo de nada lhes servirá. De novo declaro a todo homem que se deixa circuncidar que está obrigado a cumprir toda a lei. Vocês, que procuram ser justificados pela lei, separaram-se de Cristo; caíram da graça. Pois é mediante o Espírito que nós aguardamos pela fé a justiça que é a nossa esperança. Porque em Cristo Jesus nem circuncisão nem incircuncisão têm efeito algum, mas sim a fé que atua pelo amor." Parece-me claro, portanto, que o ensino dos apóstolos sobre a circuncisão está de acordo com o ensino geral do Novo Testamento sobre a relação entre Jesus e a lei. O preletor muçulmano ignorou completamente esses ensinos bastante claros, que divergem consideravelmente tanto do judaísmo quanto do islã.

Carne de porco: o Alcorão proíbe explicitamente o consumo de carne de porco, assim como o Antigo Testamento nas passagens que o preletor cita (Deuteronômio 14.8 e Levítico 11.7). Nessas passagens, o porco aparece no meio de uma longa lista de animais que não poderiam ser comidos. De fato, a lei do Antigo Testamento contém uma porção de prescrições desse tipo, incluindo outras que não têm nada a ver com comida (como datas comemorativas, sábado, roupas etc.): proibições e estipulações sobre coisas que não são imorais, mas tinham um propósito didático, ou seja, que tinham uma carga simbólica através da qual Deus pretendia apresentar ao povo representações visíveis de seu próprio caráter; a lei promovia costumes culturais que distinguiriam o povo de Israel dos demais povos e, com isso, reforçava na mente do povo a natureza e a importância da relação que só eles tinham com o Deus verdadeiro. O Novo Testamento prontamente apresenta isso como aspecto cerimonial que perdeu a vigência quando Cristo veio. No caso específico do porco e outros animais considerados impróprios para consumo, o capítulo 10 de Atos traz um relato muito claro, em que Pedro teve a seguinte visão: "Viu o céu aberto e algo semelhante a um grande lençol que descia à terra, preso pelas quatro pontas, contendo toda espécie de quadrúpedes, bem como de répteis da terra e aves do céu. Então uma voz lhe disse: 'Levante-se, Pedro; mate e coma'. Mas Pedro respondeu: 'De modo nenhum, Senhor! Jamais comi algo impuro ou imundo!' A voz lhe falou segunda vez: 'Não chame impuro ao que Deus purificou'. Isso aconteceu três vezes, e em seguida o lençol foi recolhido ao céu." A continuação da narrativa deixa claro que o sentido da visão, além de ser literal, tinha também um propósito didático: Deus estava incentivando a pregação do evangelho aos gentios. Assim como as proibições do Antigo Testamento tinham o propósito de salvaguardar a identidade dos judeus como povo de Deus, a abolição dessas proibições anunciava a universalização do evangelho, rompendo as barreiras entre judeus e gentios. Não há nenhuma passagem no Novo Testamento proibindo o consumo da carne de poco, ou de qualquer outro bicho. Mais uma vez, o preletor muçulmano ignorou completamente a mensagem do Novo Testamento e sua diferença em relação à lei do Antigo Testamento.

Álcool: o Alcorão proíbe o consumo de bebidas alcoólicas, e o preletor cita duas passagens bíblicas em apoio à sua tese de que Jesus e os profetas bíblicos também o fazem. As duas referências estão erradas. A primeira é Efésios 4.18, mas creio que o que o preletor tinha em mente na verdade é Efésios 5.18, que diz: "Não se embriaguem com vinho, que leva à libertinagem, mas deixem-se encher pelo Espírito". A outra passagem citada é Romanos 20.1, texto que não existe, pois a carta aos Romanos só tem 16 capítulos. Suponho que o preletor tinha em mente outra passagem, mas infelizmente não sei qual poderia ser. De qualquer modo, note que o texto citado, ao contrário do Alcorão, não proíbe o consumo moderado e responsável, e sim a embriaguez, que é, esta sim, condenada repetidamente na Bíblia. O argumento ignora que o próprio Jesus transformou água em vinho durante uma festa de casamento em que o vinho havia acabado (João 2); que Jesus usou o pão e o vinho como símbolos da nova aliança que estava inaugurando entre Deus e os homens, e ordenou que todos os cristãos comessem e bebessem; que Jesus tinha uma conduta pública notoriamente diferente de João Batista, fato a que o próprio Jesus aludiu ao criticar a inconsistência de seus inimigos em Mateus 11.18-19: "Pois veio João, que jejua e não bebe vinho, e dizem: 'Ele tem demônio'. Veio o Filho do homem comendo e bebendo, e dizem: 'Aí está um comilão e beberrão, amigo de publicanos e pecadores'." E em muitas outras partes, na verdade, a Bíblia fala do vinho sabiamente utilizado como uma grande bênção. Veja-se, por exemplo, o belo poema do Salmo 104, que trata da benevolência de Deus em conceder bênçãos a todas as suas criaturas. Os versículos 13-15 desse salmo dizem: "Dos seus aposentos celestes ele rega os montes; sacia-se a terra com o fruto das suas obras! É ele que faz crescer o pasto para o gado, e as plantas que o homem cultiva, para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem; o azeite, que faz brilhar o rosto, e o pão que sustenta o seu vigor." Uma vez mais, a leitura bíblica do preletor muçulmano é seletiva demais e de péssima qualidade.

Um último ponto que vale a pena mencionar é que essas semelhanças entre os códigos cerimonial e civil judaico e islâmico, ainda quando verdadeiras, são pontuais. O preletor do vídeo faz parecer que a lei do antigo Israel é idêntica à lei promulgada por Maomé, mas isso está muito longe da verdade. Mesmo no espírito geral da lei há divergências fundamentais, embora haja também algumas semelhanças; mas, quando descemos às particularidades, encontramos muito mais diferenças que semelhanças. Por exemplo, a lei mosaica institui milhões de regras referentes ao ofício dos sacerdotes, aos sacrifícios, à construção e manutenção do local sagrado (originalmente uma tenda móvel, mais tarde um templo fixo), celebrações em datas específicas e muitas outras coisas que sequer existem no mundo islâmico. Mesmo uma leitura superficial do Levítico, por exemplo, basta para evidenciar isso. Portanto, ainda que a vinda de Jesus não tivesse abolido os aspectos cerimonial e civil da antiga Lei de Israel, isso não favoreceria em nada a lei islâmica.

Nenhum comentário: