16 de abril de 2009

Séculos de trapalhadas

Tão antigo quanto o próprio cristianismo é o desejo de extirpá-lo da face da Terra e dos corações dos homens, bem como o esforço correspondente a essa meta. A primeira tentativa foi a execução do próprio Cristo, resultando num fracasso que nós celebramos há poucos dias. Em seguida veio a perseguição a seus discípulos, iniciada pelos sacerdotes e fariseus partidários do Sinédrio, e logo continuada e ampliada pelo poder imperial romano. Durante séculos, os cristãos foram caluniados e perseguidos, e sua doutrina foi julgada uma superstição absurda e irracional pela classe culta da sociedade pagã de então. Mais recentemente, tal opinião voltou a ganhar força mais ou menos na época do iluminismo, gerando diversos movimentos anticristãos divididos em várias vertentes. Neste texto pretendo tecer alguns comentários sobre as tendências gerais de alguns deles, a maneira como se relacionam entre si e a natureza dos resultados que obtiveram, em especial do ponto de vista de sua relação com a razão.

Os intelectuais representantes do iluminismo, que em geral eram ateus, agnósticos ou (quando muito) deístas, tinham, a despeito dessa "diversidade" de opiniões, um ponto de acordo em torno do qual se uniam: a convicção de que as religiões populares, incluindo-se aí todas as variedades do cristianismo, eram superstições irracionais e perniciosas. (Note-se que, neste último período, empreguei o termo "intelectuais" basicamente no sentido que lhe foi atribuído por Paul Johnson, conforme explicado aqui. Esse uso não implica que eu reconheça a presença de algum intelecto entre os iluministas.) Por serem também progressistas e entusiastas do modelo newtoniano de ciência como a mais magnífica realização da mente humana, eles acreditavam ainda que o sonho dourado que enchia suas cabeças fatalmente se concretizaria no futuro, e que a religião tradicional tenderia a desaparecer, suplantada pelo domínio da razão científica.

Essa mesma idéia foi sustentada no século XIX pelos positivistas, anarquistas e comunistas, sendo que estes últimos, na condição de grupo politicamente mais bem sucedido, espalharam a propaganda de sua doutrina "científica", em oposição a toda forma de "idealismo", por todos os países em que chegaram ao poder ou adquiriram influência. Lênin, por exemplo, justificou sua Nova Política Econômica, que em dois anos matou de fome cerca de cinco milhões de camponeses russos, alegando que era necessária para destruir a crença do povo em Deus. Mas nas democracias ocidentais, onde esse e outros bombásticos métodos de propaganda materialista não puderam ser implantados, o anticristianismo militante prosseguiu por meios algo mais sutis. Isso se nota, por exemplo, no fato de que uma fração não desprezível da comunidade científica e da classe jornalística ainda sonha em ver o mundo "progredir", adotando a visão de mundo materialista ou cética. Sujeitos como Asimov, Sagan, Dawkins e Harris dedicaram (ou dedicam) suas vidas a isso, enquanto outros, menos esperançosos, consentem em que permaneçamos cristãos, desde que sejamos cristãos evolucionistas, liberais e politicamente corretos, sem qualquer pretensão de levar para fora de nossas respectivas casas e igrejas o que porventura reste dos conceitos retrógrados, irracionais e fundamentalistas de outrora. É o caso de Stephen Jay Gould, segundo o qual devem caber à religião as decisões no terreno da moral - a não ser, é claro, em questões que possam ser consideradas importantes.

Houve, entretanto, muitas tentativas mais sinceras de conciliação entre o cientificismo e uma visão de mundo espiritualista. Os próprios racionalismo e materialismo dos iluministas eram, em grande parte, pura fachada: o século das luzes foi também o da proliferação do ocultismo, do gnosticismo e das sociedades e rituais secretos entre a classe revolucionária. Meu assunto do dia não é esse, porém, e tampouco falarei da perpetuação de interesses escusos dessa ordem nos círculos anarquistas e comunistas do século XIX, ardorosos defensores do ateísmo na política e na filosofia. Mas, como eu disse, falo de tentativas realmente sinceras de salvar Deus de ser morto pelo progresso da ciência: alguns, como Kant, Schleiermacher e outros protestantes liberais, restringiram a devoção a Deus ao plano puramente subjetivo; outros, como Hegel, Bradley e Bergson, tornaram-se antimaterialistas declarados que, elevando a evolução à categoria de dogma teológico, reduziram Deus a uma força informe ou a um Absoluto metafísico distante e impessoal; outros ainda, dos quais provavelmente o exemplo mais conhecido por aqui é Allan Kardec, aderiram de corpo e alma à grosseira miopia metafísica do positivismo, mas fizeram de tudo para forjar métodos que permitissem promover o conhecimento espiritual à categoria de ciência experimental, certos de que isso seria uma grande coisa.

Não convém discutir em profundidade esses desdobramentos. Observo apenas que todos, cada um a seu modo, tentaram uma conciliação entre o espírito da época e os valores morais e espirituais das eras passadas, e fizeram isso através de um mesmo artifício: o de arrancar concessões de ambos os lados. Divergiram entre si apenas quanto às exigências que faziam a cada parte. Tinham em comum ainda a inabalável convicção de que a sabedoria religiosa antiga, embora contendo muitos elementos valiosos, deveria ser purificada a fim de se livrar de certos equívocos que o progresso do conhecimento humano tornou evidentes como tais. E, finalmente, admitiam como óbvio que o guia mais confiável que o homem tinha à disposição para realizar essa tarefa era a razão, livre e desassistida de qualquer auxílio superior. Mesmo nos casos em que algum papel foi atribuído a outros elementos constituintes da natureza humana, coube a ela determinar-lhes o lugar e o alcance.

Um dia, entretanto, o homem ocidental começou a se cansar disso. Era natural e previsível que acontecesse assim. A fantasia racionalista, naturalista, materialista (quer se tome essa última palavra no sentido metafísico ou no pragmático, pois muitas vezes o primeiro acaba levando ao segundo, e vice-versa), não pode ir muito longe, pois sufoca outros aspectos de nossa natureza. Foi justamente assim que o próprio cristianismo ganhou força: graças ao vazio resultante de um estilo de vida dominado por excessivas preocupações com o conforto e o prazer materiais e por uma prática religiosa cheia de rituais e exterioridades, mas desprovida de autêntica espiritualidade. O mesmo fenômeno, aliás, tem sido repetidamente responsável por muitos avivamentos cristãos em todo o mundo, bem como pelo crescimento de outros movimentos religiosos. Trata-se de um dado simples da realidade, da natureza das coisas, o qual pôs abaixo todas as mais elevadas pretensões dos adoradores da razão humana em nossa civilização moderna e científica.

Considerada em si mesma, portanto, a reação contra a valorização excessiva da razão nada tem de peculiar à civilização ocidental. Há, porém, algumas particularidades que não podem ser desprezadas. Em todos os tempos e lugares, os que combateram os excessos de uma cosmovisão demasiado pragmática e materialista, ou do modo de vida correspondente a ela, procuraram apenas colocar as faculdades racionais do homem em seu devido lugar, corrigindo suas más aplicações e sua tendência reducionista e totalitária, sem jamais deixar de reconhecer que possuem um papel saudável a desempenhar na vida humana, se apenas puderem coexistir com as demais faculdades do homem sem sufocá-las ou escravizá-las. Em parte alguma, exceto no Ocidente, a reação contra o racionalismo se converteu numa reação contra a própria razão, numa busca ativa pelo irracional, numa veneração ao absurdo sem qualquer motivo além de seu caráter absurdo. A civilização que mais se preocupou em ser razoável produziu também a mais poderosa força que já procurou arrastar o homem rumo ao invencível abismo do contra-senso.

O inaugurador dessa batalha contra a razão provavelmente foi Kierkegaard, numa reação exagerada à quase onipresente influência do racionalismo hegeliano sobre os círculos intelectuais de sua época. O escritor dinamarquês passou a considerar que a razão era um obstáculo à fé - ele era luterano -, e que esta significava a confiança na verdade absurda da mensagem cristã contra tudo o que era apregoado pelo bom senso deste mundo. Seus sucessores, porém, não o seguiram em sua fé; preferiram seguir Nietzsche, que atacou a própria noção de verdade e transformou o culto ao absurdo numa rebelião niilista contra Deus e tudo o que cheirasse a uma influência tardia do cristianismo sobre uma sociedade que, em larga medida, julgava ter deixado para trás essa velha religião. E assim foi plantada a semente que, décadas mais tarde, iria produzir os frutos funestos da pós-modernidade: o subjetivismo desmedido, o absoluto relativismo, a malícia sistemática no ataque aos adversários, o desprezo pela verdade - não por verdades específicas, mas pelo próprio conceito de Verdade - sustentado em nome de uma sede de poder que não admite ser contrariada.

Racionalistas e pós-modernos são hoje as principais facções em disputa pelo controle do universo acadêmico, digladiando-se infindavelmente a partir das trincheiras cavadas em torno de suas respectivas cátedras e periódicos. Para os racionalistas do século XX foi um duro golpe descobrir que o combate à religião, levado a efeito ao longo de séculos, não produziu uma classe de intelectuais uniformemente cientificista, e sim um grupo ainda mais hostil à razão que os próprios fundamentalistas cristãos. Os criacionistas, por exemplo, ainda defendem que a evidência científica corrobora suas teses teológicas. Não convém discutir agora se essa reivindicação é verdadeira; importa apenas assinalar que o criacionismo atribui valor à ciência, e isso é coisa que o pós-modernismo autêntico não faz. A ciência, para seus adeptos, tende a ser apenas um discurso destinado a legitimar as escusas pretensões de poder da comunidade científica, não escapando de modo algum ao veredito severo promulgado contra todos os que se pretendem portadores de alguma verdade objetiva - como o cristianismo.

O pós-modernismo, de fato, lança explicitamente à face do racionalismo a acusação de não ter se distanciado suficientemente do cristianismo histórico, sustentando ainda, dogmaticamente, velhos mitos como a existência da Verdade e a capacidade humana de conhecê-la e comunicá-la. Por seu turno, os defensores da razão cientificista acusam seus antagonistas de compartilharem com o velho credo cristão uma aversão supersticiosa à razão e à ciência. Resumindo, nossos inimigos não decidiram ainda, após décadas de intensos debates, se somos racionais demais ou de menos. Portanto, enquanto aguardo pacientemente pela resolução de tão complicado problema, vou me encaminhando para o fim deste texto com minha própria opinião sobre essas duas vertentes anticristãs: são ambas irracionais. E no caso do pós-modernismo essa constatação é fácil e direta: ele é irracional porque jamais pretendeu mesmo ser algo além de uma criança mimada que, sem se preocupar com explicações ou justificativas, grita e esperneia violentamente para conseguir o que quer.

O racionalismo, por outro lado, é irracional por portar-se irresponsavelmente, não se dando conta de que é o pai da criança. Ou, dizendo de maneira menos metafórica, por ter suposto que sua idolatria da racionalidade - de uma modalidade bastante restrita dela, na verdade - não geraria reações radicais contra tão presunçosa tirania. Pior ainda é a pretensão racionalista de que a eliminação do cristianismo produziria um mundo não apenas mais razoável, mas também menos religioso. O único efeito palpável do combate à influência cristã foi a proliferação de uma infinidade de religiões de quinta categoria, de superstições infinitamente menos respeitáveis e verdadeiras que os sublimes mistérios da verdadeira fé. O combate à religião por parte do totalitarismo norte-coreano não levou ao ateísmo, e sim à veneração do último ditador comunista, hoje cultuado oficialmente como um deus. Nada muito diferente disso poderia resultar desse tipo de atividade.