28 de janeiro de 2010

O Diabo e seu advogado francês

Hoje, pela primeira vez, farei uma resenha de um livro que não li. Bem, na verdade não é bem isso, mas a vaga semelhança entre esse absurdo e o que pretendo fazer de fato tornou irresistível a ideia de começar o texto dessa forma. Mais de um ano atrás, minha então namorada - e atualmente noiva - me deu um livro que parecia interessante, mas cuja leitura fui adiando, movido por uma certa preguiça devida sobretudo ao fato de que o exemplar estava em espanhol. Mais recentemente, encontrei num sebo de Ribeirão Preto a mesma obra em português, a um preço acessível, e comprei-a. Trata-se de um livro do filósofo francês Jean-François Revel, que escreveu muito sobre política, arte e literatura. Eu sabia bem pouco sobre o autor além do fato de que ele escreveu um livro célebre, L'obsession anti-américaine: son fonctionnement, ses causes, sas inconsequences, que eu, aliás, ainda não li, mas sei que é uma crítica ao antiamericanismo idiota da Europa Ocidental. Mas desse livro que agora tenho em mãos, intitulado Nem Marx nem Jesus, publicado em 1970, eu não tinha a menor ideia do que esperar. No entanto, os títulos - do livro e dos capítulos - me pareceram interessantes. Cheguei, então, ao prefácio de treze páginas escrito por uma tal Mary McCarthy, de quem eu nunca havia ouvido falar. Ela fala algo sobre a vida de Revel e de sua obra pregressa, e em seguida se posiciona a respeito de algumas de suas opiniões. Algo sobre a própria prefaciadora pode ser inferido claramente a partir daí: é amiga pessoal de Revel, boa escritora, americana e esquerdista. Resumo-a em tão poucas palavras porque são as ideias do próprio Revel que devem ocupar o centro das atenções neste post, e algumas delas transparecem nos comentários de sua amiga.

O livro, ao que tudo indica, é sobre política, e as posições políticas de Revel são bastante incomuns entre os intelectuais franceses: nesse país em que o esquerdismo e o conservadorismo gaullista faziam uma oposição política e cultural comum aos Estados Unidos, ele surgiu para, na condição de autêntico advogado do diabo, defender a grande potência do Ocidente. Outros exemplos citados por Mary McCarthy confirmam a impressão de que Revel nutria o hábito de defender tudo quanto era tido como evidente de maneira unânime. "Parece, às vezes, que Revel, em criança, foi educado numa escola de debates onde o treino consistia em defender a negativa de afirmações tão evidentes e inatacáveis como 'a Terra é redonda', 'Proust era um snob', 'o ar puro é bom para a saúde', 'o trabalho desenvolve o cérebro', etc.". Mas, segundo ela, seu amigo "apenas se preocupa com que sua agressividade atinja a cultura respeitável e as opiniões preconcebidas". Assim, parece que, de alguma forma, a obra de Revel já continha certos elementos de sua crítica ao antiamericanismo francês, e isso mais de trinta anos antes que fosse publicado o livro destinado exclusivamente a combater essa tendência.


Se for correta a descrição feita por sua amiga americana - e parece que é -, o filósofo francês de modo algum pode ser considerado um conservador; ou, pelo menos, não podia há quarenta anos. Embora fosse crítico ferrenho do socialismo, mesmo em suas vertentes mais moderadas, Revel se colocava declaradamente no campo dos intelectuais que viam a revolução como uma coisa ótima. Como pode ele, então, defender o baluarte do capitalismo, do imperialismo e do espírito reacionário? A contradição é bem menor do que parece, visto que o propósito do livro é justamente dissolver, na mente do leitor, os clichês da propaganda esquerdista e sustentar, com firmeza e seriedade, o que diz já na sentença inicial do livro: "A revolução do século XX terá lugar nos Estados Unidos". Mary McCarthy comenta: "é indispensável ser francês para receber todo o impacto, para ter uma 'reação visceral'. Desde que alguém aprendeu a contar até dez e a soletrar g-a-t-o, ficou com a ideia bem firme de que os E.U.A. são a cidadela do imperialismo, do racismo, da vulgaridade e do conformismo". A autora do prefácio cita esse início bombástico como ilustração do método argumentativo de Revel: "Caracteristicamente, nas suas primeiras páginas ele se arrisca a ser retirado do palco numa camisa de força".


O prefácio fornece uma prévia dos argumentos usados por Revel para defender sua tese, que devia soar tão implausível aos esquerdistas franceses de então quanto aos esquerdistas brasileiros de hoje e sempre. A segunda sentença do livro já dá um passo nesse sentido, e Mary McCarthy também fez questão de citá-la: "Só lá poderá ela ter lugar", disse ele, imediatamente após declarar que a revolução ocorreria nos Estados Unidos. Na verdade, conforme nos é explicado, o pensador francês não crê que a "segunda revolução americana" (título do primeiro capítulo), como a chama, ocorrerá e triunfará inevitavelmente, pois não compartilha da crença no determinismo histórico do marxismo. Apenas considera impossível que ocorra em qualquer outro lugar, e, a julgar pelo índice, parece que parte do livro é dedicada à defesa desta tese: em nenhum outro canto do mundo os revolucionários possuem aquela originalidade capaz de provocar mudanças profundas e autênticas na estrutura da sociedade, e nenhum outro país possui o clima cultural capaz de fomentá-la.


Mary McCarthy faz ainda algumas críticas ao pensamento de Revel. Basicamente, ela crê que seu otimismo com relação aos Estados Unidos é um tanto exagerado, parecendo derivar sobretudo do fato de que o antiamericanismo é quase uma unanimidade na França, e Revel vive para contrariar unanimidades. Além disso, ela considera que o termo "revolução" é utilizado por ele de modo vago e algo inapropriado; uma palavra mais branda como "reforma" seria, segundo ela, mais correta, inclusive por não dar a entender necessariamente um rompimento violento e súbito com o passado e o presente. Mas não me deterei muito nessas questões. Tive uma grata surpresa ao terminar a leitura do comentário de McCarthy e, virando a página, encontrar o início da réplica de Revel às palavras dela. Em nove páginas, redigidas em março de 1971, ele presta alguns esclarecimentos e responde às críticas de sua amiga de modo a lançar mais luz sobre a natureza de suas ideias sem que, no entanto, o quadro pintado por ela possa ser considerado equivocado, sobretudo quanto aos pontos que destaquei até aqui.


Revel defende seu otimismo quanto aos revolucionários americanos contrastando-os com os de outras nações, sobretudo os europeus ocidentais em geral e franceses em particular, que pecam por falta de criatividade e iniciativa. Ele considera que mesmo o maio de 1968 foi inspirado nas rebeliões estudantis americanas dos anos anteriores. O filósofo também se propõe a reexaminar a noção de revolução predominante na esquerda e substituí-la por um conceito mais amplo, e é por isso que não se importa em especificar se o fenômeno revolucionário se dá "lenta ou brutalmente, temporária ou permanentemente, pela revolução ou por reformas, com violência ou por aceitação passiva - esses métodos serão determinados pelo contexto histórico particular". É por isso que Revel se dispõe a aceitar como positivas e autenticamente revolucionárias certas mudanças que o esquerdista típico vê como insatisfatórias, insuficientes ou mesmo alienadoras.


Revel provavelmente pode ser considerado um liberal, e isso constitui boa parte da razão pela qual tanto conservadores quanto esquerdistas podem endossar entusiasticamente certas declarações suas e, ao mesmo tempo, repudiar muitas outras. Nele a fidelidade ao espírito revolucionário é mais evidente; ele se parece mais com um discípulo autêntico da Revolução Francesa que qualquer outro liberal que eu já tenha lido - muito embora, é claro, eu não tenha lido tantos assim. O progressismo de Revel se manifesta no fato de que ele vê as revoluções como fenômenos essencialmente bons e construtivos; se se opõe ao comunismo e outras formas de socialismo, é apenas por não crer que a esquerda tradicional seja capaz de gerar uma revolução autêntica; quase todas revoluções, diz ele, deixam as coisas como estão. (No que eu discordo: penso as revoluções deixam as coisas muito piores.) Nada disso faz de Revel um sujeito mais amigável ou mais correto que os liberais reacionários que estou acostumado a ver por aí, que gastam quase todo o seu tempo e seus esforços em demonstrar a ineficiência econômica do centralismo estatal, quando não chegam a defender que o livre mercado resolverá por si todos os problemas do mundo. Como eu dizia, isso não o torna mais amigável ou mais correto que tais sujeitos, mas ao menos faz dele mais interessante. Em ambientes dominados pela hegemonia da esquerda, como no Brasil atual, o lado revolucionário do liberalismo político costuma ficar menos evidente. Ler Revel é bom para evitar que nos esqueçamos disso; e, ao mesmo tempo, ele tem muito a ensinar. O francês parece ser o tipo de sujeito que pensa com clareza, mesmo quando pensa errado. E isso basta para colocá-lo muito acima de boa parte do mundo acadêmico de hoje.


Revel parece, em resumo, uma interessante combinação de ideias; algumas corretas, outras equivocadas, mas todas expressas de maneira clara, elegante e apaixonada. Eis meus motivos para crer que a leitura de Nem Marx nem Jesus será proveitosa e desafiadora. Tenho uma impressão preliminar de que, embora seja provável que ele confundirá uma porção de coisas, considerando bons alguns fatos que são ruins e vice-versa, a essência do que ele diz é correto e pertinente: parece que a maior parte das grandes transformações que têm conquistado o mundo vem dos Estados Unidos ou, pelo menos, passa por lá. E isso inclui as boas, as ruins, as boas que muitos consideram ruins e as ruins que muitos consideram boas. A grande potência do norte é ao mesmo tempo o laboratório da revolução e a cidadela da reação, como disse o próprio Revel. Todas as correntes políticas do Ocidente encontram ali muito o que admirar e muito o que repudiar.


Adendo:
escrevi o texto acima há alguns meses. Concluí a leitura do livro em dezembro e devo dizer que, se tivesse de escrever hoje um comentário sobre sua introdução, teria adotado outras ênfases. A despeito disso, não há correções a fazer.

19 de janeiro de 2010

Estranhas dimensões

Quem porventura tenha acompanhado meu outro blog nos últimos tempos sabe que uma de minhas últimas leituras de 2009 foi a do livro The fractal geometry of nature, do matemático francês Benoît Mandelbrot. Nessa magnífica obra, o autor defende que a teoria dos fractais, em grande parte inventada por ele próprio, é de grande importância para a compreensão da natureza, e não mera abstração de matemáticos de escrivaninha. Muito bem escrito, o livro me fez entender já nos primeiros capítulos um conceito que nunca me pareceu compreensível desde que, no segundo ou terceiro ano da faculdade, ouvi falar nele pela primeira vez. Tendo pensado em fazer um post a respeito, hesitei por um tempo, paralisado pela preguiça de fazer um desenho, o qual seria útil na explicação. Mais recentemente, porém, encontrei já pronto na internet o mesmo desenho, muito mais bem feito que qualquer coisa que eu saiba fazer no Paint, e isso me animou.

Tentarei explicar abaixo, de maneira bastante intuitiva e nada rigorosa do ponto de vista matemático, o que se quer dizer quando se fala em um objeto de número não-inteiro dimensões, e de que maneira se deve compreender isso. Todo mundo sabe que um ponto tem dimensão 0, uma curva tem dimensão 1, uma figura plana tem dimensão 2 e um sólido tem dimensão 3. Podemos também aceitar sem grandes problemas, embora sem uma visualização mental apropriada, um objeto ou um espaço com 4 ou mais dimensões, como nas maluquices dos cosmólogos e teóricos das supercordas. Porém, a mera ideia de uma dimensão não-inteira não me parecia fazer o menor sentido, e sei que muita gente tem a mesma dúvida quando ouve os estudiosos de fractais mencionando coisas desse tipo com imensa naturalidade.

Para entender isso, imaginemos um segmento de reta qualquer, com início e fim em pontos bem definidos. A fim de medir seu tamanho, precisamos comparar seu comprimento a outro definido como padrão. Pelo sistema internacional, a unidade padrão é o metro, mas isso não vem ao caso. Tomemos um padrão qualquer de comprimento L. Medir um segmento de reta significa descobrir quantos Ls cabem nele. Assim, podemos comparar diferentes segmentos e verificar qual deles é maior, e quão maior ele é.

Agora passemos a um objeto da geometria plana, como o retângulo. Não podemos usar o mesmo padrão L do parágrafo anterior para medi-lo. Um retângulo se mede pela área, não pelo comprimento. Qualquer tentativa de preencher um retângulo com segmentos de reta de comprimento L fracassará, pois seria necessário um número infinito deles. Assim como é sempre possível encontrar um número entre dois números, é sempre possível colocar uma reta entre duas retas paralelas. Ninguém pensaria, pois, em medir o comprimento de um retângulo. O retângulo se mede pela área, ou seja, pela comparação com uma unidade padrão de área. Esta pode ser, por exemplo, um quadrado de lado L, resultando numa área L2.

A medida de área, por sua vez, é inaplicável ao segmento de reta de que partimos no princípio. Por menor que seja o quadrado escolhido, nunca haverá um segmento de reta capaz de preenchê-lo completamente. Por isso é que o segmento tem dimensão 1 e o retângulo tem dimensão 2: eles só podem ser medidos por um padrão L (que, não nos esqueçamos, é o mesmo que L1) e L2, respectivamente. O valor do expoente é, pois, de importância fundamental. Se o expoente escolhido for grande demais, o resultado será sempre nulo: o comprimento de um ponto, a área de uma reta, o volume de um retângulo. Por outro lado, se for muito pequeno, o resultado será sempre infinito: a área de um cubo, o comprimento de um retângulo, o número de pontos em uma reta.

(Antes de prosseguir, convém fazer um esclarecimento importante: no dia a dia, ou nas aulas de matemática, podemos às vezes dizer coisas como "a área de um cubo". Trata-se de uma metonímia, pois na verdade nos referimos à área das faces do cubo, que são quadradas. Não é esse o sentido em que o termo está sendo empregado neste texto; quando digo "a área de um cubo", refiro-me ao cubo propriamente dito, o objeto tridimensional delimitado por suas seis faces quadradas. Considerações análogas valem para todos os outros objetos matemáticos mencionados.)

Mantendo tudo isso em mente, examinemos a figura abaixo, que encontrei no site da Vanderbilt University, e que terá a honra de ser a primeira figura que publico neste blog. Ela mostra os primeiros estágios de construção de um objeto pertencente a uma família de curvas denominadas "curvas de Koch", descritas em 1904 pelo matemático sueco Helge von Koch. No topo, temos apenas um segmento cujo comprimento é igual a 1. Para dar origem à segunda etapa, esse segmento é transformado da seguinte forma: o segmento é dividido em três partes iguais (cada uma de comprimento 1/3, portanto), a parte do meio é retirada e substituída por dois segmentos de comprimento 1/3. Agora temos 4 segmentos de idêntico comprimento, de modo que o comprimento total é 4/3. No passo seguinte, o mesmo procedimento é aplicado - em escala menor, é claro - aos quatro segmentos resultantes: cada um deles é dividido em três partes iguais de comprimento 1/9 (1/3 de 1/3), a parte do meio é retirada e substituída por dois segmentos de mesmo comprimento. Visto que cada parte da figura anterior teve seu comprimento multiplicado por 4/3, o novo comprimento total é (4/3).(4/3)=(4/3)2=16/9. O último passo mostrado na figura abaixo aplica o mesmo procedimento a cada um dos 16 segmentos resultantes do anterior, resultando em 64 segmentos, cada um com comprimento 1/27, totalizando 64/27=(4/3)3.


Imaginemos agora que esse processo fosse reaplicado infinitamente, sempre em escalas cada vez menores. O que aconteceria? Pode-se perceber que, depois de n aplicações, o comprimento total seria dado por (4/3)n. Se n tender a infinito, portanto, o comprimento também tende a infinito. Não deixemos de notar que essa figura não é ilimitada, nem por se estender indefinidamente numa dada direção, como uma reta infinita, nem por ter limites indefinidos, como uma circunferência. A curva de Koch apresentada começa e termina em pontos bem definidos; e, no entanto, seu comprimento é infinito. Por outro lado, a área continua sendo nula.

Qual é, então, o problema? Temos em mãos um objeto geométrico cuja grandeza não podemos apreender, nem pelo comprimento, nem pela área. O primeiro padrão de medida usa um expoente pequeno demais (1), e seu resultado tende ao infinito; já o segundo usa um expoente grande demais (2), e seu resultado é nulo. É natural, portanto, supor que o expoente correto a ser utilizado está em algum lugar entre os números 1 e 2. Esse expoente existe, de fato, e seu valor é aproximadamente igual a 1,2619.

Esse valor é denominado dimensão fractal ou dimensão de Hausdorff, e seu valor não necessariamente coincide com o da dimensão utilizada em topologia. A dimensão topológica está mais próxima do conceito que intuitivamente utilizamos, embora possa ser definida mais rigorosamente. Um ponto, por exemplo, tem dimensão topológica nula, assim como um conjunto qualquer de pontos desconectados. Um objeto definido por pontos conectados tem dimensão positiva. Um segmento de reta, por exemplo, pode ter suas partes desconectadas pela remoção de um ponto, e portanto sua dimensão topológica é 1. Uma figura plana não pode ser "partida" dessa forma, de modo que é necessária a remoção de um conjunto unidimensional; por isso, a figura plana tem dimensão 2. De modo geral, um objeto que pode ter quaisquer de seus pontos desconectados pela remoção de um conjunto de dimensão topológica N possui dimensão topológica N+1.

Dada essa maneira de definir as coisas, não se pode, ao menos até onde sei, falar em dimensões topológicas não-inteiras. O mesmo não ocorre, porém, com a dimensão de Hausdorff, pois os dois conceitos nem sempre se equivalem. No caso da curva de Koch discutida acima, por exemplo, a dimensão topológica é 1. Aliás, os objetos fractais distinguem-se dos demais justamente pelo fato de apresentarem essa desigualdade, na qual a dimensão topológica é sempre menor que a dimensão de Hausdorff. Os objetos não-fractais, com o qual está acostumada a vasta maioria da humanidade apenas iniciada nos rudimentos da matemática, apresentam dimensão de Hausdorff inteira e idêntica à dimensão topológica, não restando, nesse caso, qualquer mistério.

11 de janeiro de 2010

Briguinha na areia

Há um ano publiquei um texto, Areias invasoras, sobre o que me pareciam ser os pontos positivos e negativos do livro As raízes do problema e da pessoa, o primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, do historiador americano John Paul Meier. Recebi dois comentários sobre esse texto, e hoje pretendo apenas falar um pouco sobre um deles, o segundo, recebido em 3 de julho. Achei-o muito enigmático à primeira vista. Na verdade, não chega a ser um comentário sobre meu texto, de modo algum. Traz dois subtítulos, A gnose moderna e A oposição entre a gnose moderna e o cristianismo, e no final há um nome e um link, presumivelmente para a fonte de onde os trechos foram retirados. O link, porém, não funciona. O nome é de Nivaldo Cordeiro, conhecido articulista católico e conservador. (Pelo menos é assim que o conheço.) Creio já ter lido quase uma centena de seus textos, e boa parte deles me pareceu no mínimo interessante. Mas até hoje não ficou claro para mim se seu nome estava ali a título de assinatura ou de mera referência bibliográfica, isto é, se foi ele mesmo quem transcreveu em meu blog os trechos de um de seus artigos ou se outra pessoa fez isso. Prefiro crer na segunda opção, pois ela proporciona uma explicação plenamente satisfatória para o nome ali transcrito, e eu, como simpatizante da navalha de Ockham, não vejo razão para postular uma segunda função para esse nome. Além disso, há apenas um Nivaldo Cordeiro na internet, e milhões de outras pessoas que não o são, de modo que é estatisticamente improvável que logo ele tenha aparecido por aqui. De qualquer forma, o tom do comentário é bastante impessoal. Não há saudações nem qualquer referência ao conteúdo de meu texto. Há apenas a transcrição do trecho, o nome do autor e o link. E, além de tudo isso, um comentário estritamente idêntico foi postado num outro texto meu, Briga de família, apenas um minuto depois do primeiro. Tal identidade de comentários é bem-vinda, pois me dispensa de responder duas vezes. Mas o fato em si demonstra que a publicação deles foi premeditada. Algúem lera com antecedência os dois textos e decidira que ambos mereciam essas idênticas palavras, e isso mostra que o elemento que chamou a atenção dessa pessoa é exatamente o mesmo em ambos os casos.

Agora vamos ao que interessa, isto é, passemos a essas palavras propriamente ditas. É fácil notar qual é o nexo entre as duas postagens que saltou aos olhos do autor do comentário: no texto
Briga de família, de novembro de 2007, expus algumas de minhas impressões sobre certos aspectos do catolicismo. (Não devo deixar de dizer, de passagem, que minhas impressões mudaram consideravelmente desde então, e isso está entre os temas com que pretendo lidar em minhas futuras retratações.) No texto Areias invasoras fiz um breve e parentético comentário sobre essa mesma doutrina. Não pode ser outra a razão que motivou o duplo comentário do Anônimo (referir-me-ei a esse anônimo específico dessa forma, de agora em diante), que evidentemente é católico e pretendia atacar minha posição protestante, muito embora, de modo geral, no primeiro texto eu tenha publicado considerações mais favoráveis que contrárias ao catolicismo. Quem quiser ler o comentário completo do Anônimo pode fazê-lo acessando um dos links disponibilizados ao longo deste post. Descreverei e comentarei aqui seus aspectos essenciais.

O comentário começa falando do gnosticismo, heresia antiga que, sustentada por Pelágio e derrotada por Agostinho, afinal triunfou na modernidade, tendo se manifestado em
"diferentes teorias e movimentos religiosos e políticos". Ele menciona como exemplos os pensamentos de Smith, Ricardo, Kant, Hegel, Marx e Nietzsche. Afirma ainda que a ideia central do gnosticismo é "a de que o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo", e o denominador comum a toda a gnose moderna é "declarar a imanência da salvação e reduzir a psique do homem à relação binária busca do prazer/fuga da dor". Tudo isso está sob o primeiro subtítulo, enquanto o segundo declara o seguinte:

"O inimigo dessa gente é um só, a Igreja Católica e o Cristianismo ele mesmo. Na verdade as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica. Sei que muitos dos seguidores dessas religiões ditas cristãs talvez nem tenham a noção do que se passou, porque não é tarefa fácil encontrar livros de história e menos ainda livros de filosofia política que relatem fielmente o que aconteceu. A decretação de morte de Deus por Nietzsche é o coroamento da modernidade e a síntese de tudo, o corolário da Reforma."


Essa teoria não me é desconhecida; se não por outros motivos, ao menos porque conheço algo da obra de um grande defensor dela, Eric Voegelin, a quem Nivaldo Cordeiro dedica uma admiração intelectual que não é segredo para ninguém. Eu gostaria de responder aos argumentos levantados em favor dessa teoria, mas estou impossibilitado disso simplesmente por não ter encontrado nenhum. Não há nada no comentário que indique a razão pela qual a morte de Deus é o corolário da Reforma, nem são apresentadas provas de que o protestantismo prega a imanência da salvação e reduz a psique do homem à busca do prazer e à fuga da dor. Todas essas proposições me parecem mero resultado de uma tremenda ignorância sobre a doutrina protestante, como a que estou habituado a encontrar mesmo entre os católicos mais cultos. Além disso, não posso sequer discutir apropriadamente a proposição de que
"o homem pode ser aperfeiçoado nesta vida e buscar a salvação ainda nesse mundo" por ser ela flagrantemente imprecisa. Talvez se refira à doutrina do progresso, ao sucessivo aperfeiçoamento da natureza humana levado a cabo pelo poder do próprio homem, de modo a atingir o paraíso terrestre no futuro. Tal acusação, que cabe perfeitamente às doutrinas liberais e socialistas em geral, não se aplicam de modo algum à doutrina dos reformadores, e muita ignorância é necessária para fazer tal associação. E, se era outra a acusação que se tinha em mente, fico aguardando que o Anônimo explique o que quis dizer. Seja como for, não convém que eu me estenda em considerações sobre ideias que não foram bem expostas, e muito menos bem defendidas. Ou, pior ainda, não foram defendidas de modo algum.

Mas nossa história não acaba por aqui. Não podendo crer que o sempre mui argumentativo Nivaldo Cordeiro tenha passado tão rapidamente por um ponto tão importante, fui procurar na internet o texto de onde foi retirado o trecho que o Anônimo publicou aqui. E encontrei o tal texto. Trata-se de um artigo intitulado
A gnose petista, de 18 de novembro de 2007. O objetivo do artigo é expor a origem do triunfo do PT no cenário político e cultural nacional, tanto na história recente do Brasil quanto nas raízes profundas de nossa civilização. O autor identifica os antepassados remotos do petismo em Epicuro e seus discípulos, e vem gradualmente se aproximando até o presente. É em algum momento desse processo que surge o trecho que veio a aparecer em meu blog. Com relação ao protestantismo, porém, há somente esse comentário, feito de passagem. Nenhuma tentativa é feita para aprofundar ou justificar as acusações ali contidas. Talvez Nivaldo Cordeiro esteja correto em dizer que não é fácil encontrar livros que relatem o que ocorreu nos tempos da Reforma, mas é ainda mais difícil encontrar argumentos sobre isso no artigo em questão.

O autor tem a seu favor, naturalmente, o fato de que o assunto do artigo não era esse, e a questão não podia mesmo ser discutida em profundidade. Isso de modo algum torna suas declarações menos absurdas, mas ao menos justifica a brevidade nada argumentativa com que foram apresentadas. Além disso, talvez suas opiniões sobre o protestantismo tenham sido melhor expostas e defendidas em algum outro lugar, muito embora eu tenha procurado em vão por algo do tipo em seu site. Mas mesmo que exista essa exposição, tal análise fugiria ao meu propósito imediato, que é apenas o de dar uma resposta ao Anônimo que comentou em meu blog. Tendo, pois, descoberto que o artigo original completo nada pode acrescentar ao trecho aqui transcrito, posso agora me voltar para este último e dar-lhe uma resposta com rigor argumentativo compatível com o encontrado no desafio ali proposto. Assim sendo, à afirmação de que
"as denominações protestantes são elas próprias uma plena manifestação do gnosticismo usando a roupagem evangélica", minha resposta é: são nada!