31 de julho de 2012

Velhas e boas maneiras


Em março deste ano, publiquei um post intitulado Covardia e decência, no qual analisei, já com alguns meses de atraso, o artigo em que Richard Dawkins explicou as razões de sua recusa ao debate com o filósofo e teólogo cristão William Lane Craig. Naquele texto, mencionei que as desculpas esfarrapadas de Dawkins suscitaram o protesto de alguns não-teístas, especialmente do filósofo Daniel Came, que também é professor em Oxford e escreveu contra ele o artigo Richard Dawkins's refusal to debate iscynical and anti-intellectualist [A recusa de Richard Dawkins a debater é cínica e anti-intelectualista]. (A propósito, afirmei no post que Came é agnóstico, mas, nesta breve e interessante correspondência com Dawkins, ele próprio se definiu como ateu.) Na ocasião, prometi: Pretendo, aliás, traduzir seu breve texto e publicá-lo neste blog qualquer hora dessas, se até lá não encontrar uma tradução já feita em algum canto da internet lusófona”. Pensei nisso em especial por causa dos meus amigos que não leem em inglês e que poderiam se interessar pelo assunto. Na semana passada, fiz uma busca para ver se, de março para cá, alguém se animara a empreender essa tradução. Como não encontrei, aqui estou para cumprir minha promessa. O texto segue abaixo, mas creio que convém fazer alguns comentários preliminares.

O debate entre Bertrand Russell e o padre Frederick Copleston mencionado por Came se encontra transcrito neste endereço. Considero-o apenas moderadamente interessante, mas sem dúvida Came tem razão quando o aponta como modelo de civilidade e respeito mútuo. Da mesma forma, não tenho em alta conta a filosofia de Russell (nem seu caráter, em vista dos fatos levantados por Paul Johnson no ótimo livro Os intelectuais, do qual transcrevi trechos no post Uma dúzia de tiranos), mas, quando penso que o ateísmo e o agnosticismo já tiveram entre seus expoentes pessoas como ele e Anthony Flew, é impossível não perceber que o neoateísmo de Dawkins e Hitchens representa uma notável decadência intelectual em relação ao ateísmo clássico. Aliás, lembro que C. S. Lewis já denunciava (creio que no Surpreendido pela alegria, mas não tenho certeza) essa decadência em sua época, na década de 50, ao comparar os autores ateus de então com os de sua juventude, no tempo em que ele próprio ainda era ateu.

É claro que não devemos idealizar os ateus de outrora, nem nutrir expectativas demasiado elevadas quanto à qualidade de suas razões. Digo isso porque eu mesmo já cometi o erro de superestimar os escritores ateus em geral, mas tenho em minha defesa o fato de que, nessa época, eu ainda não os havia lido. Contudo, o fato é que Marx, Nietzsche e Sartre, por mais fracos que fossem, eram gigantes intelectuais em comparação com o biólogo de Oxford que hoje possui o título de maior apologista do ateísmo, para constrangimento dos melhores representantes dessa classe. Came é um desses, e o texto abaixo mostra que ele não só percebe essa decadência em alguma medida, mas também se ressente do fato de que alguém tão mal preparado receba tamanha publicidade. Embora eu hoje já não sinta um autêntico respeito intelectual por nenhuma forma de ateísmo, não posso deixar de ver como boa notícia o fato de ainda haver por aí alguns ateus mais sérios e capazes que o biólogo inglês.

Não posso encerrar estas palavras introdutórias sem mencionar que tenho uma razão a mais para simpatizar com o protesto de Came: é que, a despeito de nossas diferenças, vejo-me em uma situação algo semelhante à dele. Assim como ele não considera Dawkins um bom representante do ateísmo, também não considero Craig portador de uma cosmovisão profundamente cristã. É claro que isso não me impede de nutrir certa admiração por Craig enquanto cristão, filósofo, escritor e debatedor, admiração da qual não se vê análogo nas menções de Came a Dawkins. Uma explanação adequada de minhas ressalvas às posições de Craig terá de ficar para outra ocasião. Basta dizer, por ora, que o exemplo das crianças cananeias, conquanto tenha sido usado por Dawkins apenas como estratégia de fuga, fala de modo bastante eloquente sobre um dos problemas fundamentais que tenho em mente: não cabe muito bem na teologia de Craig a ideia bíblica de um Deus soberano, santo e corretamente irado com a depravação do coração humano, seja ele de que idade for. Parece que, na visão dele, as crianças são tão inocentes que Deus ficaria em dívida para com elas se, ao tirar-lhes a vida, não lhes desse algo melhor em troca. Falei contra essa visão contaminada pelo humanismo por ocasião da morte do meu bebê, e continuo falando agora. Ou melhor, falarei depois. Já escrevi demais por hoje, e agora passo a palavra a Daniel Came.

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A recusa de Richard Dawkins ao debate é cínica e anti-intelectualista

Richard Dawkins não está sozinho em sua recusa de debater com William Lane Craig. O vice-presidente da Associação Humanista Britânica (BHA), A. C. Grayling, também se recusou terminantemente a debater com Craig, declarando que seria melhor debater “a existência de fadas e ninfas aquáticas”.

Dado que não há muita argumentação séria no arsenal dialético dos neoateístas, talvez devesse chegar sem causar surpresa a notícia de que Dawkins e Grayling não estão exatamente fazendo fila para entrar em um fórum público com um teísta intelectualmente rigoroso com Craig a fim de ter suas visões dissecadas e a inadequação de seus argumentos exposta.

Ironicamente, não há nada substancialmente novo sobre os neoateístas também. A despeito de seu tom autocongratulatório, Deus, um delírio não contém nenhum argumento original em favor do ateísmo. Resumindo o que ele chama de “o argumento central de meu livro”, Dawkins insiste que, mesmo sem uma explicação inteiramente convincente para o ajuste fino da física, as explicações “relativamente fracas” que temos no presente são claramente melhores que “a autodestrutiva [...] hipótese de um designer inteligente”.

Dawkins sustenta que não estamos justificados em inferir um designer como a melhor explicação da aparência de design no universo porque então um novo problema vem à tona: quem projetou o designer? Esse argumento é velho como as montanhas e patentemente inválido, como qualquer calouro universitário razoavelmente competente poderia assinalar. Para uma explicação ser bem-sucedida, não precisamos de uma explicação da explicação. Poder-se ia dizer igualmente que a evolução por seleção natural não explica nada porque não ajuda a explicar por que há organismos vivos no mundo, em primeiro lugar; ou que o big bang não consegue explicar a radiação cósmica de fundo porque o próprio big bang é inexplicável.

O que há de novo é a postura depreciativa diante dos que creem na religião e a fúria da polêmica. O neoateísmo está certamente muito longe do modelo de interlocução civilizada entre o “veteroateísta” Bertrand Russell e o padre Copleston, que aconteceu e foi transmitido pela Rádio BBC em 1948. Os neoateístas poderiam aprender muito com as inclinações de Russell, cuja abordagem, mais poderosa em todos os aspectos, era respeitosa e, ao mesmo tempo, um modelo de precisão filosófica.

Em seu último discurso retórico indigno, Dawkins afirmou que não dividiria uma tribuna com Craig porque este é “um apologista do genocício”. Dawkins está se referindo à defesa feita por Craig da ordem de Deus em Deuteronômio 20.15-17 para aniquilar os cananeus. Aqui está a passagem ofensiva de Craig:

“[Se] a graça de Deus é estendida aos que morrem na infância ou como crianças pequenas, a morte das crianças [cananeias] foi, na verdade, sua salvação. Nós estamos tão comprometidos com uma perspectiva terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morrem ficam felizes em trocar esta terra pela incomparável alegria do paraíso. Portanto, Deus não faz nenhum mal a essas crianças ao tirar sua vidas.”

Não me inclino a defender a política de infanticídio do Deus do Antigo Testamento. Mas, em matéria de lógica, Craig está provavelmente correto: se um bem infinito é possibilitado por um mal finito, então pode ser dito de modo razoável que o mal foi compensado. Porém, tenho dúvidas de que o próprio Craig seria guiado pela lógica nessa questão e empreenderia um infanticídio. Ou seja, eu duvido que ele desejaria que fosse adotado como princípio moral que nós deveríamos massacrar crianças porque assim elas receberiam salvação imediata.

Mas, seja o que for que se faça com a visão de Craig sobre o assunto, isso é irrelevante para a questão da existência ou inexistência de Deus. É muito óbvio, então, que Dawkins está oportunisticamente usando essas observações como uma cortina de fumaça para ocultar as razões reais de sua recusa ao debate com Craig – a qual tem uma história que antecede em muito os comentários de Craig sobre os cananeus.

Como um cético, eu tendo a concordar com a conclusão de Dawkins sobre a falsidade do teísmo, mas as táticas empregadas por ele e pelos outros neoateístas, segundo me parece, são fundamentalmente ignóbeis e potencialmente nocivas à vida intelectual pública. Pois há algo cínico, ameaçadoramente paternalista e anti-intelectualista em seu modus operandi, com sua premissa implícita de que atirar insultos é um modo efetivo de influenciar as crenças das pessoas sobre religião. A presunção está em supor que seu amplo público de leitores não-acadêmicos não se importa em, ou é incapaz de, pensar sobre as coisas; que a paixão prevalece sobre a razão. Ao contrário, as atitudes das pessoas diante da crença religiosa podem e devem ser moldadas pela razão, não pela cólera e pela invectiva. Ao ignorar isso, os neoateístas procuram substituir uma forma de irracionalidade por outra.