26 de fevereiro de 2012

Empréstimo perpétuo

Faz muito tempo que não escrevo sobre política neste blog e, embora eu não veja nada de ruim nesse silêncio, um dos últimos livros que li me convenceu de que valia a pena fazer um post sobre o assunto. (O livro em questão nos foi emprestado pelo nosso amigo pastor Mauro Meister, que, mui generosamente, não o quis de volta quando tentamos devolvê-lo.) Trata-se de uma obra intitulada The challenge of marxist and neo-marxist ideologies for christian scholarship [O desafio das ideologias marxistas e neomarxistas para a academia cristã], que contém contribuições de onze autores de diversas partes do mundo, organizadas por John C. Vander Stelt, e foi produzido como resultado da Terceira Conferência Internacional de Instituições Reformadas para a Educação Superior, encontro realizado nos EUA (Sioux Center, Iowa) em agosto de 1981. O que há em comum entre todos os autores é apenas o fato de que são cristãos reformados, não se identificam como marxistas e estão, de algum modo, ligados ao movimento neocalvinista. Eu esperava que o livro fornecesse um panorama do pensamento político neocalvinista, e também descobrir em que medida esse movimento ainda se alinha, quanto a esse tema, às posturas conservadoras de Abraham Kuyper. Havia razões para esperar uma decepção nesse sentido, o que de fato se confirmou, mas não de modo tão desinteressante que não mereça uma postagem. No presente texto, tudo o que pretendo fazer é comentar brevemente cada um dos onze "capítulos", ressaltando o que me pareceu mais relevante, para o bem ou para o mal. Depois de dar um retrato do conjunto por essa via algo impressionista, farei uma breve conclusão.

1. The challenge of marxist and neo-marxist ideologies for christian scholarship [O desafio das ideologias marxistas e neomarxistas para a academia cristã], do filósofo holandês Sander Griffioen. O artigo que empresta seu nome ao livro como um todo tem vinte e duas páginas e é o melhor de todos. Com base em uma ampla leitura de autores como Kolakowski, revela uma boa compreensão do inferno totalitário do socialismo real e do modo como este, por força de sua própria lógica interna, leva à corrupção moral dos súditos do sistema. Traz ainda percepções valiosas quanto às raízes iluministas e renascentistas do marxismo, e constata corretamente que essa ideologia é uma cosmovisão integral e internamente consistente, não passível de aprimoramento pela correção de seus pontos falhos - e, por conseguinte, denuncia as diversas formas de neomarxismo (Escola de Frankfurt, gramscismo, teologia da libertação etc.) como tentativas artificiais de conciliar coisas inconciliáveis. Resta no autor, porém, certo respeito por Marx como intelectual e uma dificuldade de enxergar no pai da porcaria toda os defeitos exacerbados por seus filhos, bem como uma confiança bastante ingênua no compromisso democrático dos comunistas ocidentais.

2. Human freedom and social justice: a christian response to the marxist challenge [Liberdade humana e justiça social: uma resposta cristã ao desafio marxista], do cientista político americano James W. Skillen. Em uma tentativa de lidar com as críticas feitas ao cristianismo por intelectuais marxistas, sobretudo Ernst Bloch, esse artigo de trinta e uma páginas traz considerações muito pertinentes sobre a visão bíblica do trabalho, especialmente a partir do Sabbath, do jubileu e de suas conexões com o Reino de Cristo. O autor promove ainda um interessante confronto de ideias entre Marx, Locke e Agostinho, na qual sobram críticas a todos os lados. Seu maior defeito é aquela velha visão preconceituosa contra o conservadorismo e a demonização daquela entidade obscura denominada "capitalismo".

3. Human freedom and social justice (a case study: Poland) [Liberdade humana e justiça social (um estudo de caso: Polônia)], da historiadora americana Alice-Catherine Carls. Em trinta e duas páginas, a autora nos traz um resumo muito interessante da história das lutas contra o totalitarismo comunista na Polônia, ressaltando a imoralidade essencial do Estado polonês, não menos nas concessões que nas perseguições. O artigo analisa as ações das principais forças engajadas nessa luta: a Igreja Católica (liderada em grande parte por João Paulo II, antes e depois de sua ascensão ao papado), os movimentos populares (com a liderança, entre outros, de Lech Walesa, na sua fase posterior) e os intelectuais ex-marxistas ou marxistas incoerentemente democráticos (como Kolakowski). Contudo, essa incoerência não é notada pela autora, e os únicos opositores do regime tratados com desprezo são, como de costume, os conservadores. Não obstante, o artigo é muito valioso como fonte histórica, e não é nada condescendente com o caráter perverso do regime polonês e sua dependência do imperialismo soviético.

4. Liberation theology [Teologia da libertação], do teólogo equatoriano (então na Argentina) Carlos René Padilla (sim, o próprio). Em apenas dezoito páginas, Padilla faz um bom resumo dos pontos essenciais da teologia da libertação - ou, dizendo de modo mais preciso, dos pontos comuns às várias teologias da libertação disponíveis. A julgar por esse resumo, trata-se de um dos piores desserviços prestados por nosso subcontinente à história das ideias. Em seguida, o autor tece algumas críticas a essa teologia. As críticas são precisas, pertinentes e tocam em vários dos pontos fundamentais do problema. Contudo, Padilla não as faz sem gastar um espaço equivalente em considerações bastante bajulatórias sobre a pureza e a grandiosidade das intenções dos criticados, e do quanto é importante que haja pessoas tão boas assim se opondo aos famigerados conservadores. Uma piada.

5. Liberation theology (a case study: USA) [Teologia da libertação (um estudo de caso: EUA)], do pastor americano John Perkins. O autor é um adepto declarado da teologia da libertação, e começa anunciando sua pretensão de "responder" às críticas de Padilla, a quem afirma dedicar grande admiração. Contudo, não há resposta alguma, e tampouco há qualquer conteúdo intelectual identificável no texto. Perkins é um pastor negro envolvido com a tal "teologia negra", e o "estudo de caso" que ele apresenta é, em grande parte, o de sua própria história pregressa, contando de sua origem humilde e de como foi explorado por patrões brancos e ricos. Visivelmente não há um pingo de vocação intelectual nesse homem e, quanto a esse aspecto, ele está para seu predecessor assim como Lula está para Marilena Chauí. O texto tem sete páginas, das quais um total de duas linhas é dedicado à crítica do comunismo e quase todo o restante à crítica do capitalismo. É o pior artigo do livro, e o mais ostensivamente esquerdista de todos - e, não por acaso, seu autor é o único que tem o apoio oficial da Fundação Ford, o que, para quem pensa, já bastaria para desmentir sua tese fundamental de que a teologia conservadora é que está do lado dos ricos.

6. Christian belief, marxism and rich and poor countries [Crença cristã, marxismo e países ricos e pobres], do economista holandês (então na Argentina) Roelf L. Haan. Quase todas as trinta e oito páginas desse texto são dedicadas a uma crítica do "capitalismo" - em cuja conta são lançadas todas as ditaduras militares da América Latina, bem como o nazismo e os fascismos europeus. Nazismo, fascismo, liberalismo e conservadorismo são todos reunidos sob o termo "capitalismo", de modo a criar-se uma unidade inexistente por meio de um artifício verbal. Contudo, a maior parte da crítica se dá pelo viés econômico e é dirigida sobretudo à teoria econômica (neo)liberal, de cujas ideias o autor traz uma versão ridiculamente caricatural, semelhante à que muitos católicos e esquerdistas fazem do pensamento econômico de Calvino a partir de uma leitura equivocada de Weber. Também são feitas várias tentativas risíveis de apresentar os conservadores como adeptos idiotas de teorias conspiratórias mais idiotas ainda. E, em vários pontos, o autor apela, de modo passageiro e mal explicado (ou não explicado), a conceitos extraídos de Dooyeweerd, Goudzwaard e até Kuyper para dar ares de neocalvinismo à sua crítica. O termo "totalitarismo" é usado uma porção de vezes para descrever o capitalismo, e nenhuma para descrever o comunismo. Embora, é claro, alguma coisa sempre se aproveite, trata-se de uma obra-prima de charlatanismo intelectual, que constitui um complemento adequado ao charlatanismo antiintelectual de seu predecessor americano.

7. Function and role of the State (with special reference to its relation to the church and educational institutions) [Função e papel do Estado (com referência especial à sua relação com a igreja e as instituições educacionais)], do jurista sul-africano Lourens M. du Plessis. Nesse texto de trinta e oito páginas, o autor analisa alguns posicionamentos da Escola de Frankfurt, em especial de Max Horkheimer e Jürgen Habermas, sem deixar de incluir uma exposição inicial dos pensamentos do próprio Marx. Quanto a esse ponto, cabe ao autor o mérito de ser o único no livro todo a ressaltar que o ódio marxiano a toda autoridade (inclusive ao Estado), herdado dos anarquistas, converte-se, mui contraditoriamente, no estabelecimento do Estado como única instituição legítima e digna da lealdade do cidadão, sendo todas as outras (incluindo-se aí a igreja) apenas toleráveis, na melhor das hipóteses. A análise do neomarxismo também é deveras interessante, retratando essa vertente como inimiga do "capitalismo" e, ao mesmo tempo, profundamente desiludida com as possibilidades do comunismo, o que resulta em uma visão pessimista só superada por uma esperança irracional, bem ao estilo do "salto" schaefferiano. Apesar de sua atitude algo condescendente quanto a vários dos erros apontados, cabe ao autor o mérito de fazer algumas das declarações mais ousadamente sensatas de todo o livro - inclusive a de condenar a adesão do cristão, não só ao comunismo, mas a qualquer movimento revolucionário.

8. Function and role of the State: the place of religion and education (a case study: China) [Função e papel do Estado: o lugar da religião e da educação (um estudo de caso: China)], do teólogo e missionário chinês (então em Hong Kong) Jonathan Chao. Em vinte e três páginas, o autor traz uma excelente descrição do funcionamento profundamente antidemocrático do Estado chinês, em sua relação com o Partido Comunista e as Forças Armadas, bem como o modo de funcionamento das disputas politicas internas entre as diversas facções comunistas. Descreve também, com muito realismo, a cooptação das instituições religiosas em geral pela burocracia governamental para seus próprios fins políticos e a falta de liberdade religiosa dominante no país e na mentalidade de seus governantes, mesmo dos defensores da linha mais "tolerante" com relação ao tema, que ascendeu ao poder após a morte de Mao.

9. Marxism and education: a survey report [Marxismo e educação: um relatório de pesquisa], do teólogo Klaus Bockmuehl, professor no Canadá. Esse artigo de trinta e cinco páginas trata do conceito marxista de educação, apenas embrionário na obra do próprio Marx, mas desenvolvido de modos diversos pelos educadores comunistas do século XX. Achei o artigo um tanto acrítico e focado demais na teoria educacional marxista, e não em sua prática. Não obstante, o texto é interessante por documentar a centralidade da educação no marxismo, entendida como empenho consciente na produção de um novo tipo de homem, numa visão que tem muito de "religiosa" (assim, entre aspas, e no sentido pejorativo). Além disso, como curiosidade, achei interessante descobrir que Marx e seus sucessores nos regimes comunistas apoiavam o trabalho infantil como meio de educação - coisa que, nos países "capitalistas", seria prontamente denunciado pelos próprios marxistas como pretexto ideológico para uma cruel exploração por parte da burguesia.

10. Marxism and education (some observations) [Marxismo e educação (algumas observações)], do cientista político holandês (então no Canadá) Bernard Zylstra. Em apenas seis páginas, o autor traz considerações perspicazes sobre as raízes humanistas do marxismo e sobre seu caráter de "versão imanente" da teologia cristã (que costumo chamar de parasitismo). Seu principal mérito está em enfatizar que, ao contrário do que condescendentemente asseveraram vários dos articulistas anteriores, o problema de Marx com a religião se deve pura e simplesmente ao seu apego ao materialismo, e não aos defeitos, reais ou imaginários, das instituições eclesiásticas. O grande demérito do autor é desconhecer (ou ao menos desconsiderar, quando deveria ter considerado) o conservadorismo enquanto candidato a solução autenticamente cristã à luta de monstros entre marxistas e liberais.

11. The marxist challenge to christians in education [O desafio marxista aos cristãos na educação], do filósofo holandês (então no Canadá) Hendrik Hart. Em apenas sete páginas, o autor busca sintetizar o que foi aprendido com todos os articulistas anteriores. Por isso mesmo, não acrescenta quase nada. Fala sobre a importância de os eruditos cristãos não se submeterem a nenhuma cosmovisão mundana (colocando, implicitamente, o marxismo e o "capitalismo" no mesmo nível) e depois resolve mostrar, mediante exemplos, o perigo de se fazer isso. Mas, como só escolhe exemplos da América do Norte, suas críticas acabam caindo exclusivamente sobre os "capitalistas". O tom geral do artigo traz, pois, uma defesa deveras parcial (em todos os sentidos) da importância da imparcialidade.

Convém não generalizar demais a partir do resultado de um único evento realizado há três décadas. Mas é justo dizer que o que se pode ver nesse livro revela um grau elevado de heterogeneidade e confusão no pensamento político neocalvinista, uma abundância considerável de cacoetes mentais esquerdistas e certo grau de ignorância preconceituosa contra o pensamento conservador. Nada disso chega a ser uma surpresa, mas é, de qualquer modo, decepcionante. Por outro lado, impressionou-me o alto nível de vários dos artigos, e não pude deixar de notar o padrão de que os autores mais anticomunistas são justamente os que conhecem o comunismo mais de perto - e não necessariamente os que vivem em países ricos, como afirmou Zylstra. O livro me enriqueceu com novas informações e ideias e me convenceu da importância de um conhecimento mais aprofundado da obra de Marx e, mais ainda, dos frankfurtianos. Foi não só uma excelente leitura, mas também um excelente presente que o Mauro nos deu ao não querer o livro de volta.