24 de novembro de 2011

O irracional dos racionalismos - parte 1

Desde pouco mais de um ano atrás tenho escrito aqui e ali contra algumas tendências que considero reprováveis em alguns círculos reformados, ligadas, de modos diversos, ao pensamento do teólogo e pastor americano Gordon Haddon Clark. Comecei com uma série sobre um artigo de outro teólogo americano, W. Gary Crampton, intitulado A Bíblia contém paradoxo lógico?, série à qual dei o título O direito ao mistério e que publiquei em quatro partes (eis os links para a primeira, segunda, terceira e quarta) neste blog entre 31 de outubro e 15 de novembro de 2010. Mais recentemente, retomei a tarefa de modo parcial, desta vez comentando o segundo capítulo do livro A soberania banida: redenção para a cultura pós-moderna, de um terceiro teólogo americano, R. K. McGregor Wright. Publiquei quatro postagens sobre o tema entre 22 de agosto e 11 de setembro deste ano, sob o título Sutilezas causais, sendo que, na verdade, apenas a primeira e a quarta partes consistiram de comentários ao capítulo em si, enquanto a segunda e a terceira foram um interlúdio destinado a lidar com as críticas e perguntas levantadas a respeito da primeira parte pelo quarto teólogo americano desta história, Alan Myatt, no espaço para comentários deste blog. Enquanto essa última série estava ainda em processo de publicação, publiquei um outro texto isolado comentando alguns aspectos do texto A rejeição do racionalismo por Gordon H. Clark, de autoria de Phil Fernandes, o quinto teólogo americano citado neste parágrafo. De todos os textos que comentei, esse é o único em que o pensamento de Clark ocupa de fato o centro das atenções. O que há em comum entre os conteúdos de todos esses nove textos é apenas isto: expressei neles algumas razões que me levam a reprovar e a me preocupar com o que tenho designado sob o termo "racionalismo" dentro do meio reformado.

Essas postagens despertaram várias reações, tanto favoráveis quanto contrárias às opiniões que tenho defendido sobre o tema. Além do próprio Myatt, recebi visitas de amigos como o Jorge Fernandes e o Osmar Neves, que discordaram respeitosamente nos espaços de comentários deste blog, e tive conversas muito produtivas com outros amigos em outros ambientes. No dia 8 deste mês, apareceu mais uma reação negativa, vinda de Felipe Sabino de Araújo Neto, proprietário do site Monergismo, tradutor e divulgador dos textos de Crampton e Fernandes acima citados, o qual publicou um texto de sua lavra intitulado O racionalismo dos irracionais. Por meio do Monergismo, Sabino e seus colaboradores estão empenhados há anos na divulgação de uma cultura teológica reformada em língua portuguesa, e incontáveis reformados brasileiros (e, suponho, lusófonos em geral) já foram tremendamente abençoados por essa iniciativa. Sou um desses incontáveis; cinco ou seis anos atrás, gastei horas e horas baixando artigos e outros textos para mim mesmo e para meu pai, que na época não tinha nenhuma relação mais direta com a internet. Apesar disso, em parte porque minha vida se tornou muito mais atarefada desde então, não sou mais um leitor do Monergismo, a não ser de modo excepcional. Ainda assim, esse texto que mencionei chegou ao meu conhecimento por ter sido divulgado no Facebook pelo Jorge; como não tenho conta no Facebook, um outro amigo, Leonardo Galdino, me avisou a respeito. O que chamou a atenção deste último foi o fato de terem sido citados no artigo, em tom crítico, um André e um Leonardo. São nomes aparentemente escolhidos a esmo, que poderiam ser substituídos por José e João, ou Fulano e Beltrano, sem prejuízo da compreensão do texto. Contudo, o Leonardo não pôde deixar de notar essa coincidência, pois ele tem aprovado ao menos em parte minhas críticas ao racionalismo, e o artigo em questão destina-se justamente a criticar alguns indivíduos não especificados que atribuem racionalismo a Gordon Clark. Ainda assim, nada no texto indica necessariamente que se referem a duas pessoas reais, e de fato não parecia ser assim em um primeiro momento; o próprio Leonardo me mostrou o artigo em tom de brincadeira, não crendo que se tratasse de algo mais que uma divertida coincidência. Nesse mesmo espírito jocoso, ele perguntou diretamente a Sabino, ainda no Facebook, se o texto se referia a nós, e recebeu uma resposta deveras ambígua. Pouco mais tarde, contudo, depois de uma breve participação minha na conversa, que fiz por meio da conta da Norma, minha esposa, Sabino acabou deixando claro que eu era, de fato, pelo menos um dos alvos de seu texto. Nessa conversa, depois de ter inviabilizado qualquer diálogo civilizado, Sabino lançou sobre mim diretamente as mesmas acusações feitas no texto a sujeitos indefinidos, e acrescentou que não divulgou seu texto no Facebook porque sabia que isso daria confusão.

A presente série de postagens, que dividi em seis partes, destina-se, pois, a tecer considerações sobre o artigo de Sabino. A história que contei sem detalhes no parágrafo acima não tem outro propósito além de esclarecer que não estou, com isso, tentando estabelecer um diálogo filosófico e teológico com ele, pois os fatos precedentes já tornaram patente que um diálogo desse tipo nunca fez parte de suas intenções. Enquanto o Jorge e o Osmar, ambos admiradores de Clark (o que também sou, embora em menor medida), vieram ao meu blog argumentar e fazer perguntas, ele não só não fez isso (e não digo que tivesse alguma obrigação de fazê-lo), mas também escreveu sua crítica sem especificar a quem se dirigia, e privou-se de divulgá-la no Facebook na esperança de que ela não chegasse ao meu conhecimento. Dessa forma, ele me privou de qualquer direito de contra-argumentação ou mesmo simples esclarecimento de minhas posições. Esse procedimento me parece injusto, e por isso mesmo, em todos os meus textos listados no parágrafo inicial, nunca deixei de especificar a pessoa cujas ideias, disposições ou cosmovisão eu estava criticando; sempre que possível, disponibilizei os links para que meus leitores pudessem conhecer os textos criticados; e, já no parágrafo inicial do mais antigo desses textos, sugeri: "Recomendo aos interessados que o leiam, de preferência antes de prosseguir com a leitura deste meu post, para que possam aprovar ou condenar minha análise com propriedade". Essa é a postura que considero correta e que continuarei aplicando, inclusive a Felipe Sabino, muito embora ele tenha agido de modo diferente para comigo, por razões acerca das quais não convém especular. Peço, pois, aos meus leitores que leiam o texto O racionalismo dos irracionais de Felipe Sabino antes de ler o meu texto, caso já não o tenham feito.

Antes de entrar no assunto propriamente dito, convém que eu esclareça algo sobre minha motivação. Eu disse, no parágrafo anterior, que não pretendo estabelecer um diálogo com Sabino. Qual é, então, meu objetivo? Temo que só me seja possível explicar isso antecipando uma das conclusões do que escreverei a seguir: a compreensão demonstrada pelo autor do artigo acerca do que defendi em minhas postagens acima listadas é mínima, e O racionalismo dos irracionais não chega a lidar de maneira séria com nenhuma das questões por mim levantadas. No entanto, isso não impediu que meu amigo Jorge recomendasse o texto aos seus amigos com grande entusiasmo, descrevendo-o como "deveras apropriado". (Ainda que ele não tenha percebido que o artigo se dirigia a mim, resta o fato de que, conhecendo meus posicionamentos, ele poderia ter percebido que o artigo não pode ser considerado uma refutação séria a pelo menos algumas críticas à visão ali defendida.) Ora, se a incompreensão de um irmão a quem respeito é sempre motivo para preocupação, a de dois o é muito mais. E, se duas pessoas que conheço me entenderam tão pouco, deve haver muitas outras que sofrem de incompreensão semelhante, ainda que eu não as conheça. Levando em conta esses fatos, concluí que vale a pena tomar a publicação do texto de Sabino como uma oportunidade de explicar melhor o que não ficou suficientemente claro nos textos anteriores, e sondar as razões de tamanha falta de entendimento. Tenho esperança de que o empreendimento a que agora dou início tenha um efeito bastante didático nesse sentido. Além disso, será uma boa oportunidade para que os irmãos que concordam com Sabino, e talvez até o próprio, venham a entender meus posicionamentos e argumentos e, quem sabe, a dialogar comigo a respeito como convém a irmãos em Cristo numa oportunidade futura.

A primeira coisa que me chama a atenção no texto pode ser vista já em suas palavras iniciais:

"Eu não creio que haja paradoxos lógicos na Escritura. Contudo, não estou em guerra contra aqueles que creem diferente. [...] Contudo, incomoda-me ver aqueles que defendem o paradoxo lógico xingar (sim, trata-se de um xingamento!) os que pensam diferente de racionalistas, mesmo quando esses são calvinistas, crendo na suficiência da Escritura. Gordon Clark, autor que possui vários textos disponibilizados no Portal Monergismo, bem como alguns livros publicados pela Editora Monergismo, é algumas vezes alvo de tal crítica. Isso a despeito de ele ter sido um teólogo calvinista e pastor presbiteriano."

Em seguida, Sabino cita duas vezes o testemunho de R. J. Rushdoony, teólogo e filósofo calvinista que, embora seja crítico de Clark, não o considera racionalista. Lidarei depois com o argumento de Rushdoony, e também com o propósito da menção feita a ele no texto. No momento, convém ressaltar a lição que o autor do artigo extrai das duas citações:

"Rushdoony, a despeito de suas diferenças com Clark, mesmo em questões como o lugar da lógica na teologia e filosofia, não permite que as diferenças transformem-se em calúnia contra um seguidor de Cristo, que cria absolutamente na inerrância e suficiência da Escritura. Num livro que pretendia ser um lugar para críticas à teologia e filosofia de Clark, Rushdoony não sucumbiu ao erro de muitos nesse aspecto. Não precisamos nos valer de calúnias para expressar nossas divergências para com outras pessoas."

Tudo isso deixa claro que, na opinião de Sabino, dizer que é racionalista um pastor presbiteriano, teólogo calvinista e crente na absoluta inerrância e insuficiência da Escritura é algo intrinsecamente absurdo, a tal ponto que só resta descrever essa atitude mediante os qualificativos de "xingamento" e "calúnia". Esse ponto é tomado no artigo como óbvio, como se nota no fato de que não se julgou necessário argumentar a respeito. Dizendo de outra forma, o autor está convencido de que a simples exposição dos fatos - Clark é pastor presbiteriano, teólogo calvinista e crente na absoluta inerrância e insuficiência da Escritura - já basta para evidenciar a falsidade da acusação de que se trata de um racionalista. Estou registrando isso apenas pelo seguinte motivo: não iremos a lugar algum se não entendermos por que Sabino acha isso tão óbvio, e não entenderemos isso antes de compreender que conceito de racionalismo ele tem em mente. Mas, antes de começar a fazer isso, há uma coisa muito importante que preciso esclarecer, e o farei, no próximo post, começando por uma digressão que se revelará de não pouca importância.