9 de maio de 2011

A verdadeira inteligência - parte 2

Aqui vai a segunda e última parte do trecho que traduzi de Boécio falando, em A consolação da filosofia, sobre o tema da conciliação entre a soberania divina e a liberdade humana. Vale lembrar, mais uma vez, que não concordo com tudo o que ele diz. Mas é, de qualquer forma, uma leitura interessante.

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Suponha que os sentidos e a imaginação assim se opusessem à razão, dizendo: 'Os tipos universais naturais, que a razão crê poder perceber, nada são; pois o que é compreensível aos sentidos e à imaginação não pode ser universal. Portanto, ou o juízo da razão é verdadeiro, e aquilo que pode ser percebido pelos sentidos e pela imaginação nada é, ou, visto que a razão bem sabe que há muitos assuntos compreensíveis aos sentidos e à imaginação, a concepção da razão é vã, pois sustenta como universal o que é matéria individual e compreensível pelos sentidos.' A isso a razão poderia responder: 'Vejo de um ponto de vista geral o que é compreensível aos sentidos e à imaginação, mas eles não podem aspirar ao conhecimento dos universais, já que seu modo de conhecimento não pode ir além das aparências materiais ou corpóreas. E, em matéria de conhecimento, é melhor confiar no juízo mais forte e mais próximo à perfeição.' Se ocorresse tal julgamento dos argumentos, não deveríamos nós, que temos em nós a força da razão assim como os poderes dos sentidos e da imaginação, aprovar a causa da razão contra a dos outros? É de modo semelhante que a razão humana pensa que a inteligência divina não pode perceber as coisas do futuro exceto como ela própria as concebe. Pois argumentas assim: 'Se há eventos que não parecem certos ou necessários, seus resultados não podem ser conhecidos como certos de antemão; portanto, não pode haver presciência desses eventos. Pois se crêssemos que há alguma presciência deles, nada poderia existir exceto o que é trazido à existência pela necessidade.' Portanto, se nós, que compartilhamos da posse da razão, pudéssemos ir além e possuir o juízo da mente de Deus, pensaríamos então ser mais justo que a razão humana se rendesse à mente de Deus, assim como determinamos que os sentidos e a imaginação devem se render à razão.

Portanto, ergamo-nos, se pudermos, à altura da mais elevada inteligência. Pois ali a razão verá o que não pode perceber por si mesma, e isso significa saber como até as coisas cujos resultados são incertos são percebidas definidamente como certas pela presciência; e tal presciência não é mera opinião, mas sim a forma singular e direta do mais elevado conhecimento, não restrito por limites finitos. [...] Portanto, desde que tudo o que é conhecido é apreendido, como já mostramos, não de acordo com sua natureza, e sim de acordo com a natureza do conhecedor, examinemos, até onde pudermos, o caráter da natureza divina, de modo a sermos capazes de aprender o que é esse conhecimento.

A opinião comum, de acordo com todos os homens vivos, é de que Deus é eterno. Consideremos, pois, o que é eternidade. Pois penso que a eternidade esclarecerá para nós ao mesmo tempo a natureza divina e seu conhecimento. Eternidade é a posse simultânea e completa da vida infinita. Isso ficará mais claro se a compararmos às coisas temporais. Tudo o que vive sob as condições do tempo se move no presente, do passado para o futuro; nada há no tempo que possa num momento apreender todo o espaço de seu tempo de vida. Não podes compreender o amanhã; o ontem já está perdido. E, nesta vida de hoje, tua vida não é mais que uma mudança, um momento passageiro. Como disse Aristóteles do universo, ele é de tal forma que tudo está sujeito ao tempo; embora nunca tenha passado a existir, jamais cessará, e sua vida é coextensiva com a infinidade do tempo; ainda assim, não pode ser chamado de eterno. Pois embora ele apreenda e inclua um tempo de vida infinito, não abrange o todo simultaneamente; ainda não experimentou o futuro. O que devemos corretamente considerar eterno é o que apreende e possui inteiramente e simultaneamente a plenitude da vida sem fim, que nada deixa ao futuro e nada perdeu ao passado fugaz; e tal existência deve estar sempre presente em si mesma ao controle e ajudar a si mesma, e também deve manter presente consigo a infinidade do tempo mutável. Portanto, pessoas que ouvem que Platão pensava que este universo não teve princípio no tempo e não terá fim estão erradas em pensar que dessa forma o mundo criado é coeterno com seu Criador. Pois passar pela vida sem fim, o atributo que Platão imputa ao universo, é uma coisa; mas outra é apreender simultaneamente toda a vida sem fim no presente; essa é claramente uma propriedade peculiar à mente de Deus.

Então, desde que todo juízo apreende os sujeitos de seu pensamento de acordo com sua própria natureza, e Deus tem uma condição de eternidade sempre presente, Seu conhecimento, que sobrepuja toda mudança temporal, abarcando extensões infinitas de passado e futuro, visualiza tudo em sua própria compreensão direta como se estivesse tomando lugar no presente. Se ponderasses a presciência pela qual Deus distingue todas as coisas, mais corretamente sustentarias que é um conhecimento de constância infalível no presente, e não presciência do futuro. Daí se segue que a Providência pode ser mais corretamente entendida como um olhar à frente que como um olhar para o futuro, pois está estabelecida longe da matéria inferior e olha todas as coisas como que de um pico montanhoso elevado acima de tudo. Por que, então, exiges que todas as coisas ocorram por necessidade, se a luz divina repousa sobre elas, enquanto os homens não julgam necessárias essas coisas tais como as veem? Por poderes ver coisas do presente, tua vista impõe sobre elas alguma necessidade? Certamente não. Se se pode sem indignidade comparar o tempo presente ao tempo divino, assim como vês coisas neste teu presente temporal, assim Deus vê todas as coisas em Seu presente eterno. Daí se segue que essa presciência divina não muda a natureza das qualidades individuais das coisas; ela vê as coisas presentes em seu entendimento tal como resultarão em algum momento no futuro. Ela não faz confusão em suas distinções e, com uma visão de sua mente, ela discerne tudo o que virá a ser, seja necessário ou não. Por exemplo, quando vês ao mesmo tempo um homem caminhando sobre a terra e o sol se levantando nos céus, vês ambas as coisas simultaneamente, e contudo distingues entre elas e decides que um está se movendo voluntariamente, e o outro necessariamente.

De modo semelhante, a percepção de Deus desce sobre todas as coisas sem perturbar de modo algum sua natureza, embora estejam presentes a Ele mas sejam futuras sob as condições do tempo. Daí se segue que presciência não é opinião, mas conhecimento que repousa sobre a verdade, já que Ele sabe o que um evento futuro é, embora saiba também que não ocorrerá necessariamente. Se respondes que o que Deus vê que está para acontecer não pode senão acontecer, e que o que não pode senão acontecer está preso à necessidade, prendes-me à palavra 'necessidade', e concederei que temos uma questão da mais firme verdade, mas é uma que dificilmente algum homem pode abordar a menos que seja um contemplador do divino. Pois responderei que tal coisa ocorrerá necessariamente, quando é vista a partir do conhecimento divino; mas, quando é examinada em sua própria natureza, parece perfeitamente livre e irrestrita. Pois há dois tipos de necessidade. Uma é simples; por exemplo, um fato necessário, 'todo homem é mortal'. A outra é condicional; por exemplo, se sabes que um homem está andando, ele só pode estar andando, pois o que cada homem sabe não pode ser de outro modo senão do modo sabido. Mas o fato condicional não se segue da necessidade simples e direta; pois não há necessidade de compelir um caminhante voluntário a andar, embora seja necessário que ele esteja caminhando, já que está caminhando. Do mesmo modo, se a Providência vê um evento em seu presente, esse evento deve existir, embora não tenha essa necessidade em sua própria natureza. E Deus olha em Seu presente para aquelas coisas futuras que acontecem pela livre vontade. Portanto, se essas coisas são observadas do ponto de vista do discernimento divino, acontecem por necessidade sob a condição do conhecimento divino; se, por outro lado, são vistas em si mesmas, não perdem a perfeita liberdade de sua natureza. Sem dúvida, então, todas as coisas de que Deus tem presciência acontecem, mas algumas delas procedem da livre vontade; e, embora resultem em vir à existência, não perdem sua própria natureza, pois antes que acontecessem poderiam também não ter acontecido.

Podes perguntar: 'Qual é, então, a diferença por não serem presas à necessidade, já que resultam sob todas as circunstâncias como se o fossem, devido à condição do conhecimento divino?' Esta é a diferença, como acabo de apontar: considere o sol subindo e o homem andando; enquanto essas operações ocorrem, não podem senão ocorrer; mas um precisava ocorrer antes que ocorresse; o outro não se encontrava restrito dessa forma. O que Deus tem em Seu presente existe sem dúvida; mas, de tais coisas, algumas ocorrem por necessidade, outras pelas vontades de seus autores. Portanto, estou justificada em dizer que, se essas coisas forem consideradas do ponto de vista do conhecimento divino, são necessárias, mas, se são vistas por si mesmas, são perfeitamente livres de todos os laços da necessidade; assim como quando referes à razão algo que é claro aos sentidos, torna-se uma verdade geral, mas permanece particular se considerado em si mesmo. Mas dirás: 'Se está em meu poder mudar um propósito meu, desconsiderarei a Providência, já que posso mudar o que a Providência prevê'. Ao que respondo: 'Podes mudar teu propósito, mas, desde que toda verdade da Providência sabe em seu presente que podes fazer assim, e se o farás, e em que direção o mudarás, não podes fugir à presciência divina; assim como não podes evitar o olhar de um olho presente, embora possas, por tua livre vontade, entregar-te a todo tipo de ação'. Dirás: 'Quê? Posso por minha ação mudar o conhecimento divino, de modo que, se escolho ora uma coisa, ora outra, a Providência também parecerá mudar seu conhecimento?' Não; o discernimento divino precede todas as coisas futuras, tornando-as atrás e chamando-as de volta ao tempo presente de seu conhecimento peculiar. Ele não muda, como podes pensar, entre esta e aquela alternância de presciência. Ele é constante em preceder e abarcar num olhar todas as tuas mudanças. E Deus não recebe essa apreensão sempre presente de todas as coisas da visão, no presente, da ocorrência de eventos futuros, mas sim de Sua própria direção peculiar.

Está então resolvida aquela dificuldade que expuseste há pouco, de que é indigno dizer que nossos eventos futuros são a causa do conhecimento de Deus. Pois esse poder de conhecimento, mesmo no presente e abarcando todas as coisas em sua percepção, restringe todas as coisas, e nada deve aos eventos futuros, dos quais nada recebeu. Assim, portanto, os homens mortais têm sua liberdade de julgamento intacta. E, visto que suas vontades são livres de toda necessidade, as leis não impõem recompensas e punições injustamente.