1 de março de 2008

Através dos séculos

Na postagem anterior, a terceira da série sobre ecdótica bíblica, expus brevemente alguns fatos sobre a história textual do Novo Testamento, introduzi a questão das famílias de manuscritos e descrevi a primeira delas, a alexandrina. Passo agora a falar sobre as outras três, e a seguir farei alguns comentários gerais sobre o papel desempenhado por cada uma delas nas mais importantes traduções ocidentais do Novo Testamento, especialmente as protestantes.

O texto ocidental tem esse nome não porque sua hegemonia tenha se restringido sempre ao oeste do Império Romano (onde Alexandre Magno nunca dominou e, por conseguinte, não houve helenização e a língua comum era o latim), e sim porque foi apenas nessa região que ele manteve seu domínio ao longo dos séculos, mesmo depois que o Oriente aderiu gradualmente a alguma das demais famílias. É o texto geograficamente mais disperso. A relativa falta de familiaridade com o idioma grego no Ocidente talvez explique em parte a qualidade textual geralmente ruim de seus manuscritos, mas mesmo isso não a explica de todo, pois predominam as alterações intencionais: geralmente interpolações (que chegam, por exemplo, a aumentar em quase 10% o tamanho de Atos), mas também omissões importantes, principalmente no evangelho de Lucas. Também abundam as paráfrases. Não surpreende, portanto, que as divergências internas dentro dessa família sejam muito mais fortes que no caso alexandrino, e seu texto seja o menos confiável de todos. Apesar disso, o texto ocidental é o único a conservar algumas variantes reputadas como autênticas.

Pertence à família ocidental um importante manuscrito uncial em papiro: o Códice Beza, que tem esse nome por ter passado pelas mãos de Teodoro Beza, discípulo de João Calvino, antes de ser doado por ele à Universidade de Cambridge. Foi copiado no quinto século e contém os evangelhos e boa parte de Atos. Pertenceu também a Beza o Códice Claromontano, do século VI, que contém as epístolas paulinas e Hebreus. Seguiram ainda essa família a primeira tradução siríaca do Novo Testamento, bem como todas as traduções latinas anteriores à Vulgata de São Jerônimo, todos os pais latinos dos primeiros séculos (como Irineu, Tertuliano, Cipriano e o herege Marcião) e o Diatessaron, uma tentativa de harmonização dos evangelhos feita no segundo século por Taciano, e que rapidamente se tornou muito popular no Oriente, além das fronteiras do Império. O texto ocidental, como já foi dito, também teve certa aceitação no Oriente, tendo sido adotado pelos pais gregos até o século III e pelos sírios até meados do século V.

O texto cesareense, embora possua certas peculiaridades, é basicamente uma combinação dos dois anteriores, tendendo um pouco mais para o texto ocidental no que diz respeito às variações menos significativas. Apesar disso, o texto cesareense não endossa as interpolações e paráfrases do texto ocidental, e exibe um esforço consciente para a produção de um texto mais elegante. Sua origem deu-se no início do século III, muito provavelmente graças à influência pessoal de Orígenes, que ao se mudar para Cesaréia colocou os cesareenses, até então habituados ao texto ocidental, em contato com a família alexandrina.

Pertence a essa família o Códice Korideto, do nono século, que contém os evangelhos e veio a público em 1901. Também os dois mais importantes grupos de pergaminhos: a Família Lake, composta de cinco manuscritos copiados entre os séculos XII e XIV, e a Família Ferrar, contendo dezessete manuscritos, cuja maioria foi composta entre os séculos XI e XIII. Desse último grupo destaca-se o pergaminho 565, do nono século, o qual contém os evangelhos. Também se basearam no texto cesareense não apenas o próprio Orígenes, depois de sua migração, mas também Eusébio de Cesaréia e Cirilo de Jerusalém, bem como a tradução armênia e a geórgica.

A quarta e última família, a bizantina, surgiu em Antioquia no início do quarto século. Resulta, muito provavelmente, de uma revisão feita por Luciano (que viria a ser martirizado pouco tempo depois) a partir de textos mais antigos que circulavam na região. Sua popularidade logo atingiu Constantinopla, de onde alcançou facilmente o predomínio em todo o Império Romano do Oriente. Esse texto combina características das três famílias que o antecederam: evita a aspereza, insere interpolações (embora sejam bem menos significativas que as do texto ocidental, pois são breves e destinam-se apenas a facilitar a interpretação, explicitando o que está implícito), tem forte tendência a harmonizar passagens paralelas e tornar a leitura mais fácil e fluente. Traz variantes emprestadas das famílias anteriores, mas também acrescenta muitas novas; pelo fato de ser a mais recente das famílias, no entanto, as novidades introduzidas no texto bizantino não têm nenhuma chance de representar a versão autêntica.

Seu mais importante representante para a ecdótica são os evangelhos do já mencionado Códice Alexandrino. Pertence a essa família também a esmagadora maioria dos pergaminhos minúsculos, que são tardios (século IX em diante) e quase sempre de pouco valor para a crítica textual. Porém, eles dão uma idéia do quanto se popularizou o texto bizantino em toda a cristandade, especialmente a grega. O texto bizantino também influenciou a Europa pela tradução gótica feita no quarto século por Wulfila, o "apóstolo dos godos", e pela tradução eslava de Cirilo e Metódio, no século IX, embora nenhuma delas seja puramente bizantina.

Do exposto, nota-se claramente que todas as variantes verdadeiras originam-se, em última análise, do texto alexandrino ou do ocidental; do primeiro, na maioria dos casos, razão pela qual a maior parte dos manuscritos importantes pertence a essa família. Porém, foi exatamente o texto alexandrino o menos conhecido e menos influente ao longo da história da cristandade, até meados do século XIX. Convém, portanto, examinarmos brevemente essa história à luz do conhecimento que agora temos, a fim de verificar de que maneira todas essas complicadas questões influíram na forma como os cristãos do Ocidente conheceram a Bíblia ao longo dos séculos.

A partir do quarto século, quando as condições de produção e transmissão dos textos bíblicos melhoraram em todos os sentidos possíveis, houve, naturalmente, uma forte tendência à uniformização do texto adotado em todo o Império do Oriente. O texto que se impôs, conforme mencionado acima, foi o bizantino, graças à tremenda influência de Constantinopla. A uniformização teve início já no quinto século, e completou-se por volta do oitavo. No Ocidente prevaleceu o texto ocidental, principalmente através da Vulgata de São Jerônimo, pois este seguiu fortemente, para traduzir o Novo Testamento, versões latinas mais antigas que, aliás, também se perpetuaram. Mesmo assim, o texto bizantino não era desconhecido ali. A tendência na Europa Ocidental foi a existência de alguma mistura entre os dois textos; e, na verdade, nem a própria Vulgata escapou totalmente das variantes bizantinas.

A partir do século XV, a imprensa e o Renascimento trouxeram, respectivamente, um acesso facilitado e um renovado interesse pelos manuscritos gregos entre os eruditos da Europa católica. E, a partir do século XVI, os intelectuais protestantes foram levados ao mesmo caminho naturalmente pela centralidade da Bíblia em sua doutrina. Porém, a primeira edição impressa do Novo Testamento completo em grego só surgiu em 1516, e foi produzida por Erasmo de Rotterdam. Nela, porém, foram usados apenas seis manuscritos, sendo um deles cesareense e os demais bizantinos, e nenhum anterior ao século XII. Seguiu-se logo uma edição espanhola, como parte da monumental Bíblia poliglota complutense, baseada em manuscritos fornecidos pelo próprio Vaticano, cuja qualidade textual era melhor, mas não muito. Porém, o Novum Tetamentum de Erasmo tornou-se mais popular, por ter sido publicado primeiro e ser consideravelmente mais barato, e foi a partir dessa versão que Lutero elaborou sua tradução do Novo Testamento para o alemão.

Na verdade, todas as traduções protestantes anteriores a 1881 - inclusive a primeira versão em língua portuguesa, de João Ferreira de Almeida - basearam-se num texto basicamente idêntico ao de Erasmo, popularizado pelas edições do parisiense Roberto Estéfano e do já mencionado genebrino Teodoro Beza, que lhe fizeram pouquíssimas alterações, embora este último tenha acrescentado muitas informações relevantes para a crítica textual nas notas marginais. Essas duas edições foram, inclusive, utilizadas na produção da célebre King James Version inglesa. Almeida utilizou uma edição produzida em 1633 pelos irmãos Elzevir, dois editores holandeses.

Essa mesma edição foi responsável pela popularização da expressão "textus receptus" ("texto recebido") para designar a versão grega que seria utilizada daí em diante por muito tempo pelos eruditos protestantes, convictos de que era fiel aos originais em cada uma de suas letras. Na verdade, como já foi dito, essa versão era apenas o texto de Erasmo com pequenas adaptações: era um texto basicamente bizantino e, portanto, representante da mais recente família textual. Quase todos os tradutores e exegetas, porém, aferraram-se ao textus receptus, em parte como reação às críticas racionalistas. A despeito da pesquisa séria e dos inúmeros avanços da crítica textual, com a constante descoberta e publicação de manuscritos e a elaboração de aparatos críticos cada vez mais completos, o textus receptus continuou a ser publicado e defendido. A resistência foi sendo vencida muito lentamente; a primeira edição a fugir do texto recebido foi publicada apenas em 1719 por Edward Wells, de Oxford, e mesmo assim foi um esforço isolado e sem grandes conseqüências. Pouco depois, porém, Richard Bentley, de Cambridge, declarou guerra aberta ao textus receptus, acusando-o de ter se tornado tão deletério ao protestantismo quanto a Vulgata para o catolicismo, e basicamente pelas mesmas razões. Muitos debates ocorreram a partir daí, e muitos eruditos tomaram parte nele. Houve também importantes contribuições de alguns estudiosos católicos, embora, de modo geral, a questão lhes interessasse menos, talvez pelo fato de a Vulgata ter sido declarada suficiente pelo Concílio de Trento. De qualquer forma, o peso da evidência acumulada acabou dando ganho de causa aos partidários de Bentley, mas apenas dois séculos mais tarde.

Graças a milhares de pessoas que se dedicaram a essas pesquisas durante cinco séculos - e também, é claro, à multidão anônima dos cristãos copistas dos quinze séculos anteriores - podemos hoje dizer, com absoluta segurança, que dispomos de um texto muitíssimo próximo do original. Essa afirmação também não poderia ser feita, entretanto, sem a evolução dos critérios usados para escolher corretamente entre as variantes textuais disponíveis. Será esse o assunto abordado a seguir.