29 de abril de 2007

A ciência das causas ocultas

Uma das coisas que mais gosto de fazer é conversar sobre livros, e felizmente tenho conversas assim com uma freqüência quase satisfatória. O problema é que a maioria das pessoas lê muito pouco, e eu não costumo ler o pouco que essa maioria lê (e não me refiro apenas a best sellers - isso inclui também livros considerados de boa qualidade, lidos por pessoas consideradas cultas), de modo que freqüentemente tenho uma certa dificuldade para manter conversações desse tipo. Às vezes, quando estou com paciência suficiente para deixar de lado minhas leituras favoritas, me arrisco a ler um desses pra entender o que as pessoas estão falando. E devo confessar, não sem me encher de vergonha, que já levei isso a ponto de ler até O código Da Vinci. Mas nesse caso tenho pelo menos uma desculpa: resolvi lê-lo porque várias pessoas fizeram questão de me incentivar a isso apenas para saber o que eu pensaria sobre aquela teoria do casamento de Jesus com Maria Madalena e outras idéias igualmente ridículas que o livro apresenta.

Com Stephen Hawking foi mais ou menos a mesma coisa: tanta gente veio me perguntar o que eu achava dele que acabei concluindo que ler seus livros e ter uma opinião a respeito era, no mínimo, parte do meu dever social como físico. Então li Uma breve história do tempo, não gostei muito e desde então não reuni coragem suficiente para ler O universo numa casca de noz. Deste último, portanto, só tenho vagas lembranças do tempo em que um colega de república, também estudante de física, resolveu lê-lo e discutir comigo algumas passagens. Lembro-me particularmente de um trecho no qual Hawking afirmava que o princípio da incerteza de Heisenberg tornava impossível até a Deus conhecer simultaneamente e com exatidão a posição e o momento de uma partícula. Como não li o livro e só posso, por enquanto, confiar na minha memória, não sei se com isso o grande físico de Cambridge quis dizer que a mecânica quântica coloca objeções à onisciência divina. Pra dizer a verdade, a opinião de Hawking sobre isso não me interessa. A menos que ele tenha amadurecido muito desde 1988, considero-o muito bom como profissional da física, mas totalmente incapaz de extrair dela conclusões filosóficas e teológicas que, embora ele não perceba, fogem totalmente não só ao seu campo de especialidade como também à sua compreensão. Mas, independentemente do que Hawking possa ter tido a intenção de dizer, sua afirmação é interessante por si mesma e relaciona-se com o que pretendo discutir hoje, de modo que merece ser examinada.

Não é, porém, sobre a relação da mecânica quântica com a onisciência de Deus que pretendo falar. Mencionei essa questão apenas por julgar que ela serve como boa introdução à questão muito mais interessante do determinismo das leis físicas. Contudo, também não vou examinar o determinismo sob todos os ângulos possíveis, mas apenas do ponto de vista de sua relação com a física. Proposto ainda na Antigüidade por Demócrito, e desmoralizado filosoficamente com a ascensão do cristianismo e cientificamente com a ascensão da física aristotélica, o determinismo voltou à tona, em várias etapas, com o surgimento da física no início da era moderna. Trata-se de uma interessante história que envolve elementos pitagóricos e neoplatônicos no Renascimento e passa por Galileu e Newton até se consolidar conscientemente na obra de Laplace. Mas o interesse deste texto não é histórico, de modo que vou me limitar a dizer que, levada às suas últimas conseqüências, a física de Newton é inteiramente determinista. Excetuando-se as miraculosas e ocasionais intervenções divinas (que Newton admitia, mas Laplace não), o universo seguiria um rumo determinado univocamente pela forma matemática das leis que governam as interações entre suas partes constituintes. De fato, conhecendo-se as propriedades das partículas e a natureza das interações entre elas, seria possível, a partir do estado do universo num dado instante, deduzir matematicamente seu estado em qualquer outro instante. A mecânica celeste, que consiste na aplicação das leis de Newton ao estudo do movimento dos corpos do sistema solar, produziu o mais estrondoso sucesso conquistado na época pela aplicação dessa idéia. Rapidamente, alimentar dúvidas contra as leis de Newton passou a ser o mesmo que assinar uma confissão de estupidez. E, num ambiente intelectual crescentemente dominado pelo materialismo, o determinismo na sua versão laplaciana mais radical impôs-se como necessidade lógica inescapável diante do conhecimento acumulado sobre a realidade.

Nada disso significa, é claro, que a previsão matematicamente exata do destino das coisas seja sempre fácil ou mesmo possível. Mesmo de posse de um conhecimento rigorosamente certo sobre as leis da natureza, o físico ainda ver-se-ia pelo menos limitado pela imensa complexidade do universo, ou mesmo de sistemas idealizados muito mais simples que o universo, pois a complicação matemática resultante daí tornaria impraticável a resolução de uma porção de problemas. Os recentes desenvolvimentos da teoria do caos, por exemplo, bastam para demonstrar que o determinismo fundamental é perfeitamente compatível com a imprevisibilidade prática, a qual deriva da elevada sensibilidade dos sistemas caóticos às condições iniciais aliada à impossibilidade de conhecê-las com precisão suficiente. De qualquer forma, a concepção newtoniana da física, que Einstein e Infeld denominaram "conceito mecânico", sofreu sucessivos abalos, primeiro pela descoberta do magnetismo, e depois de maneira mais profunda, no início do século XX, com a relatividade e a mecânica quântica, das quais a última é a que mais nos interessa aqui.

Quando se fala em indeterminação quântica, a maioria das pessoas pensa logo no princípio da incerteza. Mas ele, na verdade, não tem muito a ver com essa questão. Esse princípio de fato impõe limitações ao conhecimento exato e simultâneo de certas grandezas fisicamente observáveis, mas isso só ocorre porque estas não constituem a realidade fundamental do mundo quântico. Se não podemos conhecer simultaneamente o momento e a posição de uma partícula, é apenas porque esses observáveis não estão lá para ser conhecidos. Talvez haja algum exagero em dizer que eles são apenas uma abstração inventada por nossas mentes macroscópicas, mas a verdade não está muito distante disso. A realidade fundamental do mundo quântico consiste nas chamadas "funções de onda", que são funções complexas (das coordenadas espaciais e temporal, por exemplo) que satisfazem certas propriedades. As funções de onda não têm análogo na física clássica, e portanto não podem ser identificadas com nenhuma entidade física, e no entanto dela se extraem todas as informações físicas de que precisamos. Meu professor de Física matemática definiu bem essa situação ao dizer numa aula: "A função de onda não é física, mas ela sabe tudo sobre física; se você quiser entender de física, faça as perguntas a ela".

A função de onda associada a uma partícula ou sistema de partículas é também função do tempo, e evolui ao longo do mesmo segundo a Equação de Schrödinger. Esta, porém, assim como todas equações diferenciais da física clássica, é perfeitamente determinística. A incerteza de Heisenberg, associada aos observáveis físicos, não afeta isso de modo algum, pois a função de onda não é um observável. Se a mecânica quântica se resumisse a isso, a onisciência divina não seria em nada afetada pelo princípio da incerteza: para conhecer tudo o que existe Deus não precisaria se preocupar com entidades abstratas como posição e momento; bastar-lhe-ia conhecer a função de onda associada ao universo, e tudo o mais estaria resolvido. Há, é claro, um sentido no qual o argumento de Hawking contra a onisciência de Deus (se é que foi essa a sua intenção) expressa algo verdadeiro: para que uma coisa possa ser conhecida é necessário, antes de tudo, que ela exista. Mas essa constatação é trivial demais para merecer maior atenção.

Porém, essa questão do princípio da incerteza não é tudo, e não é sequer o mais importante. A evolução da função de onda não se dá sob os cuidados da Equação de Schrödinger o tempo todo. Há instantes nos quais a função de onda pode ser (e geralmente é) alterada de forma descontínua e imprevisível. Isso ocorre no instante em que alguém toma uma medida de alguma das grandezas físicas do sistema, isto é, no instante em que um observável é efetivamente observado. Há um conjunto de resultados possíveis para cada medida, dependendo das propriedades do sistema, e há uma função de onda associada a cada um desses resultados (espero que o leitor eventualmente mais bem informado me perdoe por deixar de lado os casos em que há degenerescência). A teoria quântica permite calcular as probabilidades de ocorrência de cada um desses resultados, mas não fornece meios de prever de antemão qual deles efetivamente passará, como diria Aristóteles, da potência ao ato. Uma vez que a medida tenha sido feita e um certo valor tenha sido observado, a função de onda passará automaticamente a ser aquela associada a esse resultado, e a partir daí continuará a evoluir segundo a Equação de Schrödinger, até que alguém efetue uma nova medição.

Esse caráter meramente probabilístico, a derrocada total do determinismo diante dos olhos do observador, é a verdadeira revolução conceitual embutida na mecânica quântica, o verdadeiro rompimento com a física clássica e reconciliação com sua antecessora aristotélica. Cabe notar, de passagem, que esse fato não depõe contra a onisciência de Deus mais do que qualquer outro. Qualquer cristão deveria saber, pelo menos desde que Santo Agostinho e Boécio passaram por aqui, que Deus não está sujeito às vicissitudes temporais, que o tempo é também uma criação dele, de modo que para ele não existem eventos futuros; Deus conhece o futuro, assim como o passado, por presenciá-lo diretamente, e não por ter resolvido a Equação de Schrödinger do universo momentos antes de criá-lo.

Mas, como eu disse antes, não foi por causa dessa questão que me animei a escrever tudo isso. Desejo agora chamar a atenção para um fato importantíssimo: o que o caráter estatístico da teoria quântica revela é que seu formalismo matemático não tem a pretensão de abarcar todos os fatores que determinam os rumos tomados pelos sistemas estudados. Ou seja, a teoria não fornece a explicação para o fato de o resultado de uma observação específica ser um e não outro, mas apenas admite sua ignorância a respeito das causas e prossegue na descrição dos fatos. Mas não custa perguntar pela natureza dessas causas. Seriam elas materiais e, portanto, também determinísticas, como queria Einstein com sua hipótese das "variáveis ocultas"? Seriam violações da própria causalidade, como acreditam certos físicos atualmente? Seria essa causa imaterial, denunciando a existência de fatores externos ao universo físico que, sem violar suas leis fundamentais, poderiam ainda assim ditar-lhe os rumos, talvez até de maneira intencional (implicando, portanto, em personalidade)? Parece-me que a segunda pergunta pode ser respondida negativamente pelo simples fato de negar um dos princípios básicos da razão. De qualquer forma, não existe uma resposta científica para essas questões. A resposta precisa ser buscada em outros lugares, pois a evidência física é inconclusiva. Eu, particularmente, rejeito a tese determinista por excelentes razões, tanto filosóficas quanto teológicas, sendo que nenhuma das quais vem ao caso no momento. E o determinista de hoje, ao contrário de seu antepassado filosófico de duzentos anos atrás, já não tem nenhum argumento científico válido em favor de sua tese.

21 de abril de 2007

Segunda colheita

Acho que já é tempo de descrever os frutos que tenho colhido mais recentemente graças a esta modesta plantação que alguns amigos têm me ajudado a cultivar. Esta segunda colheita, assim como a primeira, não poderia deixar de ser muito fragmentária, dada a diversidade dos frutos colhidos, que por sua vez reflete, de certo modo, a variedade, real ou aparente, das próprias questões discutidas neste blog ao longo destes quase quatro meses. E, como fiz da outra vez, deixarei de lado as discussões ainda não encerradas.

Parece que algumas pessoas, pelo menos, gostaram do meu post Idéias em gestação. Eu, por outro lado, o considero não apenas o texto mais chato que já escrevi (exceção feita, é claro, aos relatórios de química analítica), mas também o que tive mais dificuldade em escrever. Colocar em palavras experiências tão subjetivas, ou mesmo conclusões racionais baseadas em tais experiências, não é nada fácil, especialmente para alguém tão introvertido quanto eu. Essa minha incompetência basta, penso eu, para explicar o fato de que algumas pessoas aparentemente não compreenderam o que eu quis dizer com esse texto, e inferiram daí que eu estava defendendo alguma espécie de oposição entre razão e emoção no ato do conhecimento. Na verdade, poucas idéias me parecem tão ingênuas quanto aquela de que todo conhecimento verdadeiro só pode ser atingido pela razão "pura", fazendo abstração dos elementos emocionais ou, pior ainda, de todos os demais elementos pessoais. Essa tese só poderia ser sustentada, supondo que pudesse, a partir de uma cosmovisão do tipo que atrai os materialistas, positivistas e outros que adotam uma teoria empirista e cientificista do conhecimento. Para eles, aliás, as emoções, assim como todos os juízos de valor, só podem mesmo ser manifestações subjetivas de algum instinto que, por sua própria natureza, não tem qualquer conexão com a realidade do ponto de vista cognitivo, de onde decorre naturalmente que só podem ser um entrave ao conhecimento.

Esse é um dos desenvolvimentos possíveis do reducionismo, o qual, como deixei claro num outro texto, considero uma desgraça em todos os aspectos possíveis. E, visto que tanto acredito na objetividade dos valores quanto rejeito a tese segundo a qual o conhecimento científico é o único válido, eu não poderia coerentemente tratar a emoção com o desdém com que tantos a tratam. É claro que eu não disse no meu post tudo o que se poderia dizer a respeito desse tema, e muito menos pretendo fazer isso agora. Desejo apenas chamar a atenção para o que eu realmente quis dizer: nossos sentimentos subjetivos não são obstáculos à compreensão da realidade, e sim dados da própria realidade. E, sendo o autoconhecimento pré-requisito para a obtenção de qualquer conhecimento relevante, a compreensão das próprias emoções (e não o desprezo pelas mesmas) torna-se um dos pilares essenciais do progresso intelectual, ainda que o esforço em direção a tal compreensão seja sempre árduo e ocasionalmente frustrante. Foi isso o que eu quis dizer naquele texto.

Para minha própria surpresa, minha crítica da teoria abiogênica suscitou outras reações além das que eu já comentei anteriormente. Meu amigo André Luiz, depois de gentilmente solicitar e obter minha autorização, utilizou os cinco parágrafos centrais do meu texto Mitologia bioquímica para iniciar uma discussão numa comunidade do orkut, a qual acabou rendendo rapidamente um tópico com duzentas e trinta e uma postagens. Não participei dessa discussão, que foi, quase toda, travada entre o André e um certo Gustavo, e girou em torno de uma única afirmação minha sobre a questão da presença de oxigênio na atmosfera primitiva. O mesmo Gustavo (isto é, suponho que seja o mesmo), aliás, também veio comentar aqui no meu blog. Porém, embora esse comentário não contenha nada de relevante e não chegue, na verdade, a fazer sentido, o mesmo não pode ser dito quanto ao debate travado no orkut, que possui muitos aspectos dignos de atenção. E não o comentei neste blog justamente porque não pude ainda dispor de tempo para conceder-lhe a atenção merecida. Mas ainda pretendo fazer isso, nem que seja daqui a alguns anos. A quem porventura tenha interesse nesse assunto peço apenas paciência, mas adianto desde já que minha posição com relação à questão discutida permanece, até o momento, exatamente a mesma.

Quando publiquei aquela breve descrição dos pensamentos de Albert Einstein sobre assuntos religiosos e outras questões do tipo, minha amiga Camila reclamou que havia gostado menos daquele texto do que dos anteriores. Naturalmente, fui perguntar a ela o motivo disso, que para mim não havia ficado claro. Quase todos os motivos possíveis passaram pela minha cabeça: talvez minha interpretação de Einstein estivesse equivocada, ou as opiniões dele é que fossem tão repugnantes que não mereciam uma exposição, ou tão lindas que eu não deveria ter me referido a elas num tom tão desdenhoso quanto o que utilizei num certo trecho. Mas descobri, aliviado, que não era nada disso. Ocorre que a Camila simplesmente não gosta de ouvir falar em assuntos religiosos, por considerar esse tema sem importância e sem qualquer conexão com a realidade ("subjetivo" foi a palavra que ela usou), e por isso achou que eu não deveria ter perdido tempo escrevendo sobre isso. Sendo assim, só tenho a lamentar pela minha amiga, já que, em vista de nossas diferentes concepções sobre a realidade, serei obrigado a desagradá-la ainda muitas vezes. E aproveito-me desse interessante episódio para prevenir outros leitores que porventura sofram desse mesmo problema.

Quando expus de maneira um tanto vaga e superficial as razões da minha revolta contra o reducionismo em suas diversas formas, foi também a Camila quem me chamou a atenção para algo que estava muito mal explicado no texto. Mencionei de passagem uma porção de "ismos" reducionistas, mas não expliquei exatamente o que há de errado com eles. É claro que o leitor precisaria conhecer no mínimo superficialmente essas doutrinas filosóficas para saber a quais aspectos delas eu me referia, ainda que fosse para discordar dos meus juízos. Infelizmente, mesmo uma descrição superficial e parcial de cada uma dessas correntes de pensamento (ou, em alguns casos, de oposição ao pensamento) ocuparia um espaço grande demais para um único post. Enviei um esboço de explicação à minha amiga, mas não o considero de modo algum satisfatório, por deixar de lado diversos pontos muito importantes. No caso do existencialismo, tentei explicar um pouco melhor as razões pelas quais não simpatizo com ele, mas mesmo essa explicação foi apenas parcial e incompleta. Em posts futuros, mais cedo ou mais tarde, tentarei esboçar explicações análogas com relação às outras correntes que mencionei.

Meus comentários sobre os dois poemas extraídos do primeiro livro de C. S. Lewis geraram uma conversa bem rápida com um amigo pelo MSN, a qual me fez sentir a necessidade de fazer mais um esclarecimento. Pela forma como escrevi, não é difícil associar coisas que não estavam de modo algum associadas na minha cabeça no momento em que escrevia. No sexto parágrafo eu afirmei que o primeiro Satan speaks possui semelhanças com o The tyger de William Blake, bem como com uma certa passagem do Baghavad Gita, mas não expliquei direito em que consistem essas semelhanças. No primeiro caso, trata-se do conteúdo dos dois poemas, que descrevem seus respectivos objetos com uma sensação mista de deslumbramento e terror diante da beleza e da crueldade da natureza. Os tons são muito diferentes, mas nem por isso deixa de haver certa correspondência entre as idéias transmitidas nos dois poemas.

Com relação ao Gita, porém, o caso é totalmente diferente. Eu estava pensando, antes de qualquer outra coisa, no aspecto estritamente poético, isto é, na autodescrição através de uma série de associações inusitadas. O que eu tinha em mente era a forma, não o conteúdo. Não era meu objetivo, nesse ponto, fazer qualquer comparação entre o ateísmo de Lewis e algum aspecto do hinduísmo. Só fiz algo parecido com isso dois parágrafos adiante, ao comparar, de passagem, o monismo materialista de Lewis com o monismo espiritualista das escolas vedantinas no hinduísmo e com o sufismo no Islam. E o que eu pretendia ali era apenas apontar que o contraste é absolutamente desvantajoso para o materialismo. Não que eu tenha grandes simpatias pelas versões espiritualistas do monismo, mas considero-as pelo menos dignas de respeito, principalmente pelo que sei sobre Shamkara e pelo que li diretamente de Ibn Arabi.

Finalmente, preciso mandar um recado à última pessoa que comentou neste blog, cujo nome é Chaia. Não é a primeira vez que recebo comentários vindos de alguém que não conheço, mas os desconhecidos anteriores também possuíam blogs ou eram localizáveis no orkut, e eu gosto de interagir com as pessoas que lêem o que escrevo. Por isso, Chaia, caso você volte a passar por aqui e leia este parágrafo, peço que me envie seu endereço de e-mail ou algo assim, para que possamos conversar melhor. Isso, é claro, se você não enxergar nenhum problema nisso.

13 de abril de 2007

Agnus Dei

A Páscoa já se foi há cinco dias, e eu sinto muito por não ter dito antes o que vou dizer hoje. Acontece que só me deu vontade de escrever a respeito dois dias depois, e os afazeres da vida me impediram de terminar de fazê-lo antes de hoje. Não houve nada que eu pudesse fazer contra esse atraso. Mas vamos lá.

A Páscoa é uma das celebrações religiosas mais antigas do mundo. Apesar de amplamente conhecida hoje como uma festa cristã, em referência à morte e ressurreição de Jesus Cristo, já era celebrada pelos judeus desde muito antes de haver cristianismo. A bela história de sua origem nos é contada no décimo-segundo capítulo segundo tomo da Torah, o Shemoth (ou Êxodo, como é mais conhecido por estas bandas). Trata-se na verdade de uma pequena parte, embora simbolicamente muito importante, de uma história muito mais abrangente. Mas, não sendo possível narrar toda a história do mundo (até porque ela ainda não terminou), terei de me contentar em contextualizá-la estabelecendo limites mais ou menos arbitrários.

O contexto imediato da instituição da Páscoa foi o da luta em prol da libertação de todo um povo. Os descendentes de Israel serviam, desde várias décadas, como escravos no Egito, sofrendo toda sorte de perigos e privações. Atendendo ao clamor desse povo, o Deus de seus antepassados decidiu intervir e livrá-lo dessa carga, e para tanto levantou Moisés e o fez líder dos hebreus. Teve início então uma longa série de tentativas de persuadir o teimoso Faraó a permitir que o povo de Israel partisse. Entretanto, essa "negociação", que incluiu estupendas demonstrações do poder de Deus e da relativa insignificância do monarca, não rendeu bons resultados, mesmo após o envio de nove pragas progressivamente aterradoras. Mas a décima, conforme o Senhor havia revelado a Moisés, resolveria o problema, ao convencer o Faraó de que seria melhor curvar-se diante do desejo do Deus de Israel. E foi, de fato, a pior de todas as pragas: a morte dos primogênitos de todas as famílias da terra do Egito.

O rito da Páscoa foi ordenado como preparação do povo hebreu para aquela noite terrível em que Deus executaria sua sentença sobre os egípcios. Cada família deveria tomar um cordeiro sem defeito e sacrificá-lo ao escurecer. Sua carne seria assada no fogo e comida pelos que se encontrassem na casa, juntamente com pães sem fermento e ervas amargas, em alusão à vida cruel que o povo levava naquela terra. O cordeiro devia ser comido por inteiro, e o que sobrasse seria queimado ao amanhecer; e os participantes precisavam comê-lo com pressa e já trajados, como peregrinos, para a viagem a que, segundo Deus havia garantido, dariam início no dia seguinte.A porta de cada casa onde fosse celebrada a Páscoa deveria ser molhada com o sangue do animal, num ato simbólico que determinava a posição tomada por cada família naquela guerra silenciosa entre Israel e o Egito, ou antes entre o Deus de Israel e os deuses do Egito, contra a libertação dos hebreus ou a favor dela. Cada filho de Israel deveria aspergir sangue sobre a sua porta como um sinal de sua fidelidade. Naquela noite fatídica, o próprio Deus, segundo suas próprias palavras, passaria por ali e verificaria a situação de cada casa. Os lares obedientes, protegidos pelo sinal combinado, seriam poupados da morte de seus primogênitos. O sangue do animal os protegeria; o cordeiro sem defeito havia sido sacrificado no lugar de um dos habitantes da casa.

O sacrifício divinamente ordenado de muitos cordeiros permitiu que o povo de Israel escapasse de sua miserável condição de escravos numa terra estranha e partissem rumo a uma difícil peregrinação à terra que seria deles por direito, e que precisariam conquistar arduamente. Mas aquele povo nunca se esqueceu de sua história e, seguindo as recomendações do Senhor, passaram a reviver todos os anos aquele momento de gloriosa apreensão que seus antepassados haviam experimentado, na noite em que o Todo-poderoso passou por entre eles. Reviveram tudo isso, e o fazem até hoje, preservando aquele mesmo ritual, chamado Pessach, que significa, simplesmente, "passagem".

Durante a peregrinação no deserto do Sinai, entre o Egito e Canaã, instituíram-se as leis civis e os ritos religiosos do povo de Israel. Dentro desta última categoria foi concedido um papel de importância primária aos sacrifícios de animais, nos quais os cordeiros desempenhavam o papel principal, muito embora essa fosse uma prática muito mais antiga que o próprio Israel. A centralidade do cordeiro era evidente na vida desse povo pastoril, em todos os sentidos, e o fundador da mais duradoura casa real foi também um humilde pastor de ovelhas. Quando o Messias finalmente veio, também se serviu amplamente da figura do cordeiro a fim de comunicar ao seu povo o significado de sua própria obra. Ele próprio apresentou-se como o bom pastor e como a porta do aprisco, dentro do qual o rebanho estaria seguro. Mais tarde, seus seguidores o compararam ao sacerdote que entrava anualmente na presença de Deus com a oferta em nome do povo. Mais do que isso, porém: ele foi comparado ao próprio cordeiro do holocausto. Oito séculos antes de sua chegada, o profeta Isaías já havia se referido a ele nesses termos, isto é, como alguém sem qualquer pecado que seria morto em lugar de todo o seu povo, e o faria de forma voluntária e mansa, como um cordeiro.

Coincidentemente (ou não), Jesus foi morto na véspera da Páscoa, que naquele ano ocorreu num sábado, e seu túmulo foi encontrado vazio na manhã subseqüente à mesma. Essa confluência de datas ajuda a explicar, sem dúvida, a apropriação e reinterpretação do significado da Páscoa pelo cristianismo, que nasceu ali mesmo. A semelhança entre a velha Páscoa e a nova, porém, vai muito além disso. Para os judeus, a Páscoa era a comemoração da passagem de Deus entre os egípcios para libertar seu povo do cativeiro e levá-lo a uma boa terra em que seriam livres. Mas apenas foram poupados os que sacrificaram o cordeiro e aspergiram seu sangue na porta de suas casas. Apenas foram libertos da escravidão os que creram na eficácia do sangue do cordeiro. Para nós, cristãos, a analogia é exata: a Páscoa é a comemoração da passagem de Deus por este mundo para nos libertar no cativeiro e nos levar à boa terra em que seremos livres. Mas para isso cremos na eficácia do sangue do Cordeiro; ele morreu para que nós vivêssemos. E aspergimos seu sangue nas vergas de nossas portas.

O paralelo é, evidentemente, profundo demais para que a "usurpação" da festa da Páscoa pelos cristãos possa ser interpretada como mero resultado de uma coincidência fortuita de datas. A Páscoa cristã pode ser considerada superficialmente como uma reformulação radical de sua antecedente judaica. Mas isso não é totalmente verdadeiro, pois a essência perpetuou-se de maneira inabalável. A morte de Cristo é a manifestação concreta e visível de algo de que a celebração milenar que a antecedeu não era muito mais que um símbolo profético, no sentido mais amplo dessa palavra. Ouvi certa vez um pregador dizer Jesus Cristo é o tema principal de todo o Antigo Testamento. Hoje sei que, entendida em sua perspectiva correta, essa afirmação não é exagerada, de modo algum. Olhando retrospectivamente, torna-se claro que todo aquele complicadíssimo e quase incompreensível sistema de leis e rituais visava não apenas satisfazer as necessidades do povo da época, mas também o de prepará-lo culturalmente e espiritualmente para a compreensão e aceitação daquela luz mais perfeita que haveria de brilhar em Belém da Judéia, a mais plena e palpável revelação já vinda do alto, porque consistiu na encarnação de ninguém menos que o próprio Verbo de Deus.

O Apocalipse descreve eloqüentemente o resultado disso quando se refere aos santos reconciliados com Deus como aqueles que "lavaram suas vestiduras e as alvejaram no sangue do Cordeiro". Mas, seguindo o profeta Isaías, João Batista já havia se utilizado dessa mesma metáfora. A diferença é que o profeta mais antigo falava de algo que então se perdia nas brumas do futuro, ao passo que o mais recente teve a imensa alegria de dizer o mesmo apontando para um indivíduo que estava bem à sua frente. E o que ele disse foi: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo".

É claro que se referir a Cristo como um cordeiro é uma metáfora, mas dizer isso não nos permite colocar a situação em sua perspectiva correta. Não devemos supor que essa figura de linguagem tenha surgido como mera tentativa por parte de alguns judeus cristãos de racionalizar ou mesmo apenas ilustrar a obra de Cristo à luz de seu próprio pano de fundo cultural. No sentido que realmente importa, esse substrato é que foi a metáfora, e a vida de Cristo era a realidade transcendente para a qual ela apontava. A liberdade que ele trouxe é de um tipo muito superior à que os hebreus conquistaram ao sair do Egito; a vida futura é incomparavelmente mais excelente que aquela encontrada pelos judeus na Palestina; e a manifestação da glória de Deus, presente entre os homens, será muito mais plena então do que poderiam esperar encontrar os peregrinos que anualmente buscavam o templo em Jerusalém.

Não espanta que, assim como a antiga Páscoa, a nova também esteja vinculada a uma refeição. Há, talvez, algo de melancólico na Ceia do Senhor, uma saudosa lembrança no ato de comer a carne e beber o sangue do Filho de Deus. Mas não deixa de ser verdade que a Comunhão pressupõe um aparente paradoxo, o de celebrar a memória de alguém que não está ausente. Por outro lado, a refeição em comum é provavelmente a melhor forma de demonstrar afeto e amizade verdadeiros. Hoje, ao repartir o pão e beber o vinho, cristãos em todas as partes do mundo rememoram um momento glorioso do passado. Mas não se trata apenas de olhar para o passado, mas também para o futuro, ou melhor, para a consumação da história, quando beberemos do fruto da videira no reino do Pai. Foi o que Jesus prometeu naquela mesma noite, e é por esse momento que aguardamos ansiosamente.

8 de abril de 2007

Um vislumbre do inferno

"Há algo singularmente significativo no uso que o jornalismo faz de seus arquivos biográficos. Ele nunca pensa em noticiar a vida até o momento de noticiar a morte. E ele lida com instituições e idéias da mesma forma com que lida com indivíduos. Depois da Grande Guerra o público começou a ouvir sobre a emancipação de todos os tipos de nações, mas nunca tinham lhe dito uma palavra sobre o fato de estarem escravizadas. Fomos chamados a julgar a justiça dos acordos quando nunca nos haviam deixado ouvir sobre a própria existência das disputas. As pessoas achavam pedante falar sobre os épicos sérvios e preferiam falar sobre a nova diplomacia da Iugoslávia; e estavam muito excitadas com algo que chamavam Tchecoslováquia sem aparentemente jamais terem ouvido falar na Boêmia."

Com estas palavras, Chesterton lançou sua crítica àquele hábito jornalístico que ele denominava "fofoca da história". Tenho mais de uma boa razão para iniciar este post com essa citação, mas não pretendo falar sobre jornalismo, nem sobre a Europa, e tampouco sobre história. Estou começando a perceber (e não estou muito satisfeito com isso) que sou muito bom em começar escrevendo acerca uma coisa qualquer e então mudar completamente de assunto. Mas nisso também sigo Chesterton, que escreveu as palavras acima como introdução a um capítulo de uma biografia de São Francisco de Assis. E, de qualquer forma, isso não deixa de servir ao meu propósito, que é o de apontar que a verdade enunciada por Chesterton é válida em domínios muito mais amplos que o do jornalismo. Nós, enquanto indivíduos temporais e históricos, estamos sujeitos a uma série de contingências que, inevitavelmente, tornam nosso próprio caminhar pela estrada do conhecimento muito mais sinuoso e desordenado do que os livros escolares poderiam dar a entender.

Esse é um dos principais motivos pelos quais eu gosto de relatos autobiográficos (contanto, é claro, que seus respectivos protagonistas tenham algum conteúdo a transmitir). O conhecimento é algo que se constrói ao longo da vida a partir dos diversos níveis da experiência individual. Sendo assim, torna-se de grande importância reconstituir fidedignamente a história das próprias idéias e percepções. E aprender a partir das experiências alheias, seja pela semelhança ou pelo contraste, é no mínimo um exercício interessante e útil (e não apenas do ponto de vista estritamente intelectual). Quem quer que se proponha a fazer isso logo notará a importância que as referências ocasionais a algo que não pertence ao assunto principal do momento, as percepções súbitas e inesperadas e os caminhos alternativos sugeridos pela nossa própria imaginação; enfim, todos esses fenômenos concretos da consciência, que dificilmente poderiam ser adivinhados por um observador externo, são decisivos na formação de uma personalidade.

Assim, o fenômeno que Chesterton denuncia (corretamente, no meu entender) como um aspecto indesejável no jornalismo é, ao mesmo tempo, um fato incontornável no labor filosófico. Conseqüentemente, uma filosofia que não leve em conta esse fato básico que está por trás de sua própria formulação estará, fatalmente, deixando de fora algo importante. O mínimo que se pode dizer é que o perigo de cair num esquema abstrato qualquer, desviando-se cada vez mais do que é relevante ou mesmo essencial, torna-se uma tentação constante. Ao longo da história das idéias, algumas correntes mantiveram-se bem longe desse perigo, enquanto outras caíram nele em maior ou menor grau.

Essas considerações bastam para descrever a única coisa que considero boa no existencialismo: depois de não sei quantas gerações em que reinaram o idealismo, o racionalismo, o positivismo e outras escolas dessa classe, ele representa um movimento saudável de volta à valorização da personalidade e da subjetividade. Nisso, porém, não há nada novo. A subjetividade foi desprezada por amplos segmentos da filosofia moderna, e mesmo os escolásticos puseram de lado, até certo ponto, o aspecto histórico e pessoal da busca pela verdade. Mas a patrística, tanto grega quanto latina, fez muito bom uso dessas características, e assim também o fez a tradição mística da Europa medieval e da Igreja Ortodoxa oriental, só pra citar uns poucos exemplos. Olhado sob esse aspecto, o existencialismo é apenas uma caricatura moderna e mal feita da sabedoria dos antigos. O que há de bom em seus maiores expoentes pode ser encontrado em muito melhor estado nas Confissões de Santo Agostinho.

Sören Kierkegaard, o iniciador dessa coisa toda, tinha em mente um propósito muito nobre: combater o racionalismo estéril e abstrato de Hegel e restaurar o lugar de honra à fé cristã que ele sinceramente professava. O problema é que ele resolveu fazer isso aceitando, contra toda a tradição do pensamento cristão, a contraposição kantiana entre fé e razão, que até hoje quase todos os ateus e agnósticos aceitam como a definição perfeita da essência da religião. É natural e compreensível que eles não saibam do que estão falando, mas é simplesmente lamentável que um cristão inteligente como Kierkegaard tenha feito tamanho esforço na tentativa de escapar de Hegel apenas para, no passo seguinte, cair na armadilha preparada por Kant. Resultou daí a convicção de que a razão é algo que atrapalha, e que os verdadeiramente interessados numa vida de santidade e comunhão com Deus deveriam deixá-la de lado e conformar-se com o absurdo. "Credo quia absurdum" ("creio porque é absurdo"), que antes era apenas um artifício retórico, tornou-se o lema literal da nova teologia. Pela primeira vez na história do cristianismo Cristo deixou de ser a encarnação do Logos divino, e o fundamento último da realidade tornou-se inteiramente absurdo.

Obviamente, esse é o jeito menos promissor possível de se dar início a uma escola filosófica. Mas ainda podia piorar, e foi o que de fato aconteceu. O pensamento de Kierkegaard era uma deformação grosseiramente equivocada da tradição mística cristã, mas ainda era movido por um esforço moralmente genuíno e espiritualmente sincero. No século XX, porém, a linha principal do existencialismo se tornou irreligiosa, e o que havia de bom nesse sentido parece ter se conservado apenas em Gabriel Marcel. Houve a influência de Nietzsche, outro devoto do absurdo que mantinha, além disso, um enorme desprezo pela virtude moral.

Passando por Martin Heidegger, o resultado desastrosamente acabado disso tudo foi visto em Jean-Paul Sartre, que personifica ainda hoje o espírito existencialista. Indo além de Kierkegaard, eles pretenderam construir uma teoria geral sobre o ser baseando-se tão somente nas sensações mais subjetivas e mais dificilmente comunicáveis do ser humano. Aquilo que os racionalistas desprezavam foi considerado pelos existencialistas como a única coisa não desprezível. Na ânsia por escapar do erro daqueles, estes se dirigiram diretamente ao erro oposto.

Esse extremismo se manifesta também em outros aspectos fundamentais do pensamento de Sartre, como na sua defesa apaixonada da liberdade e da responsabilidade do homem por seu próprio destino. Mas essa causa, que poderia ser nobremente defendida não só enquanto experiência concreta como também do ponto de vista puramente moral, acabou sendo defendida por razões essencialmente imorais. A liberdade que Sartre desejava é a do criminoso que não quer ser punido, ou pior, a revolta pura e simples contra o universo. Ele queria se ver livre de tudo que o impedisse de ser seu próprio Deus. É o egoísmo diabólico de Nietzsche ressurreto, o super-homem que se julga acima da misericórdia e da justiça.

A invenção de um conceito ontológico tão absurdo quanto a precedência da existência sobre a essência de fato só se explica mesmo por esse desejo insano de sobrepor-se à própria estrutura da realidade ao invés de submeter-se a ela. Trata-se de uma forma de anarquia que vai muito além da rebelião contra as leis do Estado: é uma rebelião contra as leis da natureza, as leis morais e mesmo as leis da lógica. Levando até o fim esse raciocínio, Sartre chegou à conclusão absurda de que não existe tal coisa como uma "natureza humana", restando apenas a cada homem a tarefa de construir sua própria natureza como lhe parecer mais desejável. E foi Chesterton, mais uma vez, quem definiu corretamente o problema com isso:

"O anarquismo nos pede para sermos artistas audaciosamente criativos e não nos preocuparmos com leis e limites. Mas é impossível ser um artista e não se preocupar com leis e limites. Arte é limitação; a essência de todo quadro é a moldura. Se você desenha uma girafa, deve desenhá-la com um pescoço comprido. Se você, à sua maneira audaciosamente criativa, se mantiver livre para desenhar uma girafa de pescoço curto, realmente descobrirá que não é livre para desenhar uma girafa. No momento em que entra no mundo dos fatos, você entra em um mundo de limites. Você pode livrar as coisas das leis alheias ou acidentais, mas não das leis de sua própria natureza. Você pode, se quiser, libertar um tigre de sua jaula, mas não o liberte de suas listras. Não liberte um camelo do peso de sua corcova: você pode estar libertando-o de ser um camelo."

Quando essas palavras foram escritas ainda não haviam surgido Heidegger e Sartre, e Kierkegaard não era conhecido. Mas munido tão somente do senso comum, como ele gostava de dizer, Chesterton previu e refutou as bobagens que o século XX teria a oferecer. E de fato todo o capítulo de onde retirei essa citação (a começar pelo seu título, O suicídio do pensamento) é quase profético em seu diagnóstico do problema intelectual da modernidade. É correto dizer que o existencialismo não se preocupa muito com a coerência lógica, mas isso não é tudo. Assim como Kierkegaard, Sartre sabia que muitas de suas teses eram ridiculamente autocontraditórias. Seu propósito não era o de entender a realidade, e sim o de impor sobre ela a sua própria vontade. Eis o significado da liberdade em seu pensamento. Eis a razão pela qual, em sua argumentação, as demonstrações lógicas mais rigorosas conviviam pacificamente com as contradições mais evidentes. Isso não é tanto a conformação com o irracional quanto a busca ativa por ele. O sensato pensador à moda antiga, ao se deparar com uma contradição em seu sistema, coçava a cabeça e punha-se, intrigado, a elaborar uma solução. O existencialista, por seu turno, apenas abre um sorriso e exclama: "Quod erat demonstrandum!"

Uma monstruosidade dessas não merece o nome de filosofia, e Francis Schaeffer estava corretíssimo em dizer que se trata na verdade de uma antifilosofia. Do ponto de vista racional, o inegociável subjetivismo torna o existencialismo incapaz de justificar suas próprias afirmações. Pois se tudo o que importa para o conhecimento da realidade é o exame de suas próprias sensações interiores, e visto que ninguém tem acesso direto à subjetividade alheia, não há meios que permitam qualquer generalização. O universal está automaticamente excluído, ainda mais quando se nega a própria existência da natureza humana. Kierkegaard tinha todo o direito de escrever um livro e chamá-lo "O desespero de Sören Aabye Kierkegaard". Estranhamente, porém, ele decidiu dar-lhe o título "O desespero humano". O existencialismo se vê o tempo todo nesse dilema: de um lado estão os que não querem fazer generalizações, e no entanto as fazem o tempo todo; do outro estão os que pretendem construir uma ontologia do ser, mas não dispõem dos elementos que a tornam possível.

Sendo assim, o filósofo existencialista, mesmo que não o perceba, só pode nos oferecer a partir de seus métodos uma análise psicológica e espiritual de sua própria pessoa. Nada garante, em princípio, que sua situação existencial corresponderá à de toda a humanidade. Ao tentar fazer seus juízos sobre o mundo, tudo o que ele consegue é dar ao mundo um retrato de si mesmo. O leitor deve julgar por si se elas correspondem ou não à sua própria realidade interior. E aqui, creio eu, reside a razão pela qual essa doutrina, a despeito de suas óbvias inconsistências, granjeou tanta popularidade numa época como a nossa. Basta examinar os termos com que os existencialistas descrevem suas experiências: o "desespero" de Kierkegaard, a "angústia" de Heidegger, a "náusea" de Sartre, o "abandono" de Jaspers.

Marcel é um caso a parte; ele parece ter sido o único a compreender a natureza humana, embora só tenha podido fazê-lo por ser o menos existencialista de todos. Os outros só têm a oferecer imagens vívidas de sua própria ruína interior. Os grandes filósofos da história sabiam que não poderia haver sucesso na busca pela verdade sem o esforço moral correspondente na mesma direção. Eis a razão pela qual os existencialistas, a despeito de suas pretensões, falharam tão miseravelmente em compreender os elementos fundamentais da natureza humana. A leitura de suas análises existenciais está entre as experiências mais horripilantes da minha vida, porque vejo nelas o que eu, pela graça de Deus, não sou, mas poderia perfeitamente ter sido. Às vezes tenho a impressão de que o inferno não poderá ser muito pior que isso; na verdade, talvez ele consista exatamente nisso. Nem Dante foi capaz de imaginar algo tão horroroso.

1 de abril de 2007

Papel pequeno

Na última sexta-feira vivi uma das experiências mais longamente esperadas da minha não muito longa existência: o recebimento do meu diploma. Na verdade, a cerimônia de colação de grau da minha turma foi há quase um mês, mas, devido a uma série de complicações burocráticas que não vêm ao caso agora, não pude participar. Paguei por isso tendo de esperar um pouco mais para receber meu diploma. Pra dizer a verdade, considero que foi um bom negócio, já que não sou mesmo muito chegado nesse tipo de cerimônia. Prefiro cem vezes a coisa como aconteceu: cheguei à DiCA (Divisão de Controle Acadêmico), assinei um papel e a mocinha me deu o que eu havia ido buscar.

Isso nem de longe significa, porém, que aquele momento tenha sido despido de seu óbvio significado simbólico. Na verdade, foi um momento de intensa alegria: aquela quase incomparável alegria proporcionada pela consciência do dever cumprido. Não, é claro, que tenha sido tão bem cumprido quanto poderia. Mas deixo para outro dia, ou talvez para nunca, os comentários sobre essa questão.

Apesar de ser raro que ocorra mais de uma vez na vida de uma pessoa, parece-me que há nesse acontecimento algo que pode ser considerado banal. Refiro-me ao sentimento de realização, de conquista, de qualquer dessas coisas com grande potencial para inflar o ego. Todo mundo passa por isso pelo menos algumas vezes, e não só (nem principalmente) na vida acadêmica. Se o que senti na sexta-feira fosse tão somente isso, garanto que eu não diria aqui uma palavra a respeito, por achar esse assunto demasiado sem importância, e estaria agora, como era a minha intenção, escrevendo sobre a filosofia existencialista. Mas julguei conveniente deixar isso pra depois justamente porque a experiência subjetiva vinculada ao ato de receber o referido documento não foi o que eu teria esperado há alguns anos.

Nunca fui mesquinho o suficiente para desejar um diploma apenas pela importância social que sua posse conferiria à minha pessoa. Ou talvez seja mais correto dizer que, de modo geral, eu era (e sou) egocêntrico demais pra dar muita atenção ao que os outros acham de mim. Seja como for, o fato é que eu sempre gostei e senti necessidade de símbolos, e esse pedaço de papel é simbólico para mim. Meu empenho por ele desde o ano 2000, quando comecei a estudar para os vestibulares, era na verdade uma busca por aquilo que ele apenas representava: o conhecimento, ainda que específico, que eu adquiriria ao longo do percurso e que, afinal, me habilitaria a receber um atestado da minha competência para fazer alguma coisa na vida. Além, é claro, da preocupação muito saudável e pragmática com meu futuro profissional e financeiro, o que eu queria era isso. Foi com esse pensamento que cheguei à universidade.

Mas quão pobre e estreita era a minha expectativa se comparada ao que realmente me aguardava! Eu, um adolescente de 17 anos que não gostava de sair de casa nem pra ir à padaria, e que não sabia sequer lavar as próprias cuecas, de repente me vi morando longe de casa (cento e cinqüenta quilômetros constituíam uma distância psicologicamente infinita) e cuidando dos meus próprios problemas. Em nenhum outro período da minha vida conheci tantas pessoas e situações, nem tão diferentes entre si, quanto no primeiro semestre de 2002. Houve, felizmente, mais experiências boas do que ruins, mas de qualquer forma seria impossível prosseguir vivendo como se nada tivesse acontecido.

Fui exposto a todas as oportunidades, riscos e tentações da vida universitária; fiz amizades boas e verdadeiras; tive as conversas mais inteligentes e interessantes, assim como as mais idiotas, em todos os sentidos possíveis da palavra; aproveitei muito do meu tempo, e joguei fora também uma boa parte dele. Fora da universidade propriamente dita também passei por inúmeras experiências enriquecedoras, dentre as quais destaco a calorosa recepção dos membros da minha nova igreja, que me acolheram com um amor cristão tão genuíno que me colocam até hoje em imensa dificuldade na tentativa de expressar em palavras a minha gratidão.

Mas, em meio a tudo isso, há duas experiências que merecem destaque. Uma delas é que perdi quase todo o encanto pela vida acadêmica tão logo comecei a conhecê-la por dentro. Não pretendo entrar em detalhes sobre as causas disso. Basta dizer que ela não me satisfez, e isso é de importância enorme para o assunto de que estou falando neste texto. Rapidamente descobri que havia muitas coisas que eu precisava aprender com urgência, e que o curso não poderia me ensinar de modo algum.

Não me refiro apenas à questão do crescimento pessoal. Mesmo no plano meramente intelectual isso se manifesta de maneira evidente. Menos de 15% dos livros que li durante a graduação podem ser considerados de alguma utilidade para a formação profissional e acadêmica que o curso se propõe a oferecer. Isso constitui a segunda experiência a que me referi. E nisso, devo dizer, o curso não me ajudou, mas a universidade sim, colocando à minha disposição uma biblioteca maior do que qualquer outra que eu já vira. Ali, sozinho ou acompanhado, lendo ou simplesmente passeando entre as prateleiras, vivi vários dos mais importantes e decisivos momentos da minha história. Ainda hoje aquele prédio é para mim uma espécie de santuário, só superado em importância sentimental pela casa dos meus avós maternos, onde passei quase todos os natais da minha infância. (Meus pais nunca moraram muito tempo em casa alguma, de modo que minhas lembranças do lar não se vinculam a nenhum local específico, mas tão somente aos móveis).

Vou parar por aqui, porque isso está se tornando demasiado parecido com as reflexões autobiográficas de um velho. Não que eu não goste de ouvir histórias de velhos; o problema é que não me considero velho o suficiente para ter o direito de escrever uma autobiografia ou mesmo para ser capaz de escrever alguma que seja minimamente interessante. Cada fase da vida tem seus prazeres característicos e, embora eu realmente me considere velho demais para a minha idade, não devo usurpar benefícios aos quais minha condição atual não me dá direito. E muito menos pretendo dar a entender que, tendo aprendido a lavar minhas cuecas e a fazer algumas coisinhas mais, sou agora um sujeito maduro e adulto que já não tem mais nada a aprender e por isso pode falar de seus anos anteriores com ar de superioridade paternal e pedante. Na verdade, minha intenção é quase o oposto exato disso e, a fim de explicar melhor esse ponto, passo logo à conclusão.

Não poucos dos pensadores mais notáveis que já encontrei jamais tiveram um diploma de nível superior, sem que isso tenha chegado a fazer-lhes falta; até tenho a impressão de que alguns deles não seriam tão brilhantes caso tivessem passado pelo estudo formal. Apesar disso, considero que, para a maioria das pessoas e na maior parte das circunstâncias, o diploma, ou melhor, o conhecimento representado nele, é algo intrinsecamente benéfico e desejável. Mas assim como o mal, mesmo quando aparenta ser inofensivo e superficial, pode nos conduzir a um caminho que afunda em trevas cada vez mais espessas e inescapáveis, também o bem, mesmo buscado de maneira frívola e inconsciente, tem o poder de abrir as portas à contemplação de bens cada vez maiores e mais elevados.

Eis a explicação para o que aconteceu no meu caso. Vim a São Carlos para buscar conhecimento em questões de física e engenharia, assim como o diploma que atesta a posse dos mesmos. Mas vejo agora que o que encontrei é infinitamente superior e mais vasto. O conhecimento técnico e científico não foi tudo e, olhando da perspectiva mais geral da minha vida como um todo, não foi sequer o mais importante. O diploma que recebi há dois dias representa a consecução de um objetivo e o fim de uma etapa da minha vida. Mas muito do que efetivamente aprendi ao longo dessa etapa não cabe, nem mesmo simbolicamente, nesse pedaço de papel. Nela tiveram início muitas outras buscas mais importantes que ainda não terminaram. Não sei quanto tempo persistirei nelas, mas sei que não terminarão com a emissão de um documento.