29 de abril de 2007

A ciência das causas ocultas

Uma das coisas que mais gosto de fazer é conversar sobre livros, e felizmente tenho conversas assim com uma freqüência quase satisfatória. O problema é que a maioria das pessoas lê muito pouco, e eu não costumo ler o pouco que essa maioria lê (e não me refiro apenas a best sellers - isso inclui também livros considerados de boa qualidade, lidos por pessoas consideradas cultas), de modo que freqüentemente tenho uma certa dificuldade para manter conversações desse tipo. Às vezes, quando estou com paciência suficiente para deixar de lado minhas leituras favoritas, me arrisco a ler um desses pra entender o que as pessoas estão falando. E devo confessar, não sem me encher de vergonha, que já levei isso a ponto de ler até O código Da Vinci. Mas nesse caso tenho pelo menos uma desculpa: resolvi lê-lo porque várias pessoas fizeram questão de me incentivar a isso apenas para saber o que eu pensaria sobre aquela teoria do casamento de Jesus com Maria Madalena e outras idéias igualmente ridículas que o livro apresenta.

Com Stephen Hawking foi mais ou menos a mesma coisa: tanta gente veio me perguntar o que eu achava dele que acabei concluindo que ler seus livros e ter uma opinião a respeito era, no mínimo, parte do meu dever social como físico. Então li Uma breve história do tempo, não gostei muito e desde então não reuni coragem suficiente para ler O universo numa casca de noz. Deste último, portanto, só tenho vagas lembranças do tempo em que um colega de república, também estudante de física, resolveu lê-lo e discutir comigo algumas passagens. Lembro-me particularmente de um trecho no qual Hawking afirmava que o princípio da incerteza de Heisenberg tornava impossível até a Deus conhecer simultaneamente e com exatidão a posição e o momento de uma partícula. Como não li o livro e só posso, por enquanto, confiar na minha memória, não sei se com isso o grande físico de Cambridge quis dizer que a mecânica quântica coloca objeções à onisciência divina. Pra dizer a verdade, a opinião de Hawking sobre isso não me interessa. A menos que ele tenha amadurecido muito desde 1988, considero-o muito bom como profissional da física, mas totalmente incapaz de extrair dela conclusões filosóficas e teológicas que, embora ele não perceba, fogem totalmente não só ao seu campo de especialidade como também à sua compreensão. Mas, independentemente do que Hawking possa ter tido a intenção de dizer, sua afirmação é interessante por si mesma e relaciona-se com o que pretendo discutir hoje, de modo que merece ser examinada.

Não é, porém, sobre a relação da mecânica quântica com a onisciência de Deus que pretendo falar. Mencionei essa questão apenas por julgar que ela serve como boa introdução à questão muito mais interessante do determinismo das leis físicas. Contudo, também não vou examinar o determinismo sob todos os ângulos possíveis, mas apenas do ponto de vista de sua relação com a física. Proposto ainda na Antigüidade por Demócrito, e desmoralizado filosoficamente com a ascensão do cristianismo e cientificamente com a ascensão da física aristotélica, o determinismo voltou à tona, em várias etapas, com o surgimento da física no início da era moderna. Trata-se de uma interessante história que envolve elementos pitagóricos e neoplatônicos no Renascimento e passa por Galileu e Newton até se consolidar conscientemente na obra de Laplace. Mas o interesse deste texto não é histórico, de modo que vou me limitar a dizer que, levada às suas últimas conseqüências, a física de Newton é inteiramente determinista. Excetuando-se as miraculosas e ocasionais intervenções divinas (que Newton admitia, mas Laplace não), o universo seguiria um rumo determinado univocamente pela forma matemática das leis que governam as interações entre suas partes constituintes. De fato, conhecendo-se as propriedades das partículas e a natureza das interações entre elas, seria possível, a partir do estado do universo num dado instante, deduzir matematicamente seu estado em qualquer outro instante. A mecânica celeste, que consiste na aplicação das leis de Newton ao estudo do movimento dos corpos do sistema solar, produziu o mais estrondoso sucesso conquistado na época pela aplicação dessa idéia. Rapidamente, alimentar dúvidas contra as leis de Newton passou a ser o mesmo que assinar uma confissão de estupidez. E, num ambiente intelectual crescentemente dominado pelo materialismo, o determinismo na sua versão laplaciana mais radical impôs-se como necessidade lógica inescapável diante do conhecimento acumulado sobre a realidade.

Nada disso significa, é claro, que a previsão matematicamente exata do destino das coisas seja sempre fácil ou mesmo possível. Mesmo de posse de um conhecimento rigorosamente certo sobre as leis da natureza, o físico ainda ver-se-ia pelo menos limitado pela imensa complexidade do universo, ou mesmo de sistemas idealizados muito mais simples que o universo, pois a complicação matemática resultante daí tornaria impraticável a resolução de uma porção de problemas. Os recentes desenvolvimentos da teoria do caos, por exemplo, bastam para demonstrar que o determinismo fundamental é perfeitamente compatível com a imprevisibilidade prática, a qual deriva da elevada sensibilidade dos sistemas caóticos às condições iniciais aliada à impossibilidade de conhecê-las com precisão suficiente. De qualquer forma, a concepção newtoniana da física, que Einstein e Infeld denominaram "conceito mecânico", sofreu sucessivos abalos, primeiro pela descoberta do magnetismo, e depois de maneira mais profunda, no início do século XX, com a relatividade e a mecânica quântica, das quais a última é a que mais nos interessa aqui.

Quando se fala em indeterminação quântica, a maioria das pessoas pensa logo no princípio da incerteza. Mas ele, na verdade, não tem muito a ver com essa questão. Esse princípio de fato impõe limitações ao conhecimento exato e simultâneo de certas grandezas fisicamente observáveis, mas isso só ocorre porque estas não constituem a realidade fundamental do mundo quântico. Se não podemos conhecer simultaneamente o momento e a posição de uma partícula, é apenas porque esses observáveis não estão lá para ser conhecidos. Talvez haja algum exagero em dizer que eles são apenas uma abstração inventada por nossas mentes macroscópicas, mas a verdade não está muito distante disso. A realidade fundamental do mundo quântico consiste nas chamadas "funções de onda", que são funções complexas (das coordenadas espaciais e temporal, por exemplo) que satisfazem certas propriedades. As funções de onda não têm análogo na física clássica, e portanto não podem ser identificadas com nenhuma entidade física, e no entanto dela se extraem todas as informações físicas de que precisamos. Meu professor de Física matemática definiu bem essa situação ao dizer numa aula: "A função de onda não é física, mas ela sabe tudo sobre física; se você quiser entender de física, faça as perguntas a ela".

A função de onda associada a uma partícula ou sistema de partículas é também função do tempo, e evolui ao longo do mesmo segundo a Equação de Schrödinger. Esta, porém, assim como todas equações diferenciais da física clássica, é perfeitamente determinística. A incerteza de Heisenberg, associada aos observáveis físicos, não afeta isso de modo algum, pois a função de onda não é um observável. Se a mecânica quântica se resumisse a isso, a onisciência divina não seria em nada afetada pelo princípio da incerteza: para conhecer tudo o que existe Deus não precisaria se preocupar com entidades abstratas como posição e momento; bastar-lhe-ia conhecer a função de onda associada ao universo, e tudo o mais estaria resolvido. Há, é claro, um sentido no qual o argumento de Hawking contra a onisciência de Deus (se é que foi essa a sua intenção) expressa algo verdadeiro: para que uma coisa possa ser conhecida é necessário, antes de tudo, que ela exista. Mas essa constatação é trivial demais para merecer maior atenção.

Porém, essa questão do princípio da incerteza não é tudo, e não é sequer o mais importante. A evolução da função de onda não se dá sob os cuidados da Equação de Schrödinger o tempo todo. Há instantes nos quais a função de onda pode ser (e geralmente é) alterada de forma descontínua e imprevisível. Isso ocorre no instante em que alguém toma uma medida de alguma das grandezas físicas do sistema, isto é, no instante em que um observável é efetivamente observado. Há um conjunto de resultados possíveis para cada medida, dependendo das propriedades do sistema, e há uma função de onda associada a cada um desses resultados (espero que o leitor eventualmente mais bem informado me perdoe por deixar de lado os casos em que há degenerescência). A teoria quântica permite calcular as probabilidades de ocorrência de cada um desses resultados, mas não fornece meios de prever de antemão qual deles efetivamente passará, como diria Aristóteles, da potência ao ato. Uma vez que a medida tenha sido feita e um certo valor tenha sido observado, a função de onda passará automaticamente a ser aquela associada a esse resultado, e a partir daí continuará a evoluir segundo a Equação de Schrödinger, até que alguém efetue uma nova medição.

Esse caráter meramente probabilístico, a derrocada total do determinismo diante dos olhos do observador, é a verdadeira revolução conceitual embutida na mecânica quântica, o verdadeiro rompimento com a física clássica e reconciliação com sua antecessora aristotélica. Cabe notar, de passagem, que esse fato não depõe contra a onisciência de Deus mais do que qualquer outro. Qualquer cristão deveria saber, pelo menos desde que Santo Agostinho e Boécio passaram por aqui, que Deus não está sujeito às vicissitudes temporais, que o tempo é também uma criação dele, de modo que para ele não existem eventos futuros; Deus conhece o futuro, assim como o passado, por presenciá-lo diretamente, e não por ter resolvido a Equação de Schrödinger do universo momentos antes de criá-lo.

Mas, como eu disse antes, não foi por causa dessa questão que me animei a escrever tudo isso. Desejo agora chamar a atenção para um fato importantíssimo: o que o caráter estatístico da teoria quântica revela é que seu formalismo matemático não tem a pretensão de abarcar todos os fatores que determinam os rumos tomados pelos sistemas estudados. Ou seja, a teoria não fornece a explicação para o fato de o resultado de uma observação específica ser um e não outro, mas apenas admite sua ignorância a respeito das causas e prossegue na descrição dos fatos. Mas não custa perguntar pela natureza dessas causas. Seriam elas materiais e, portanto, também determinísticas, como queria Einstein com sua hipótese das "variáveis ocultas"? Seriam violações da própria causalidade, como acreditam certos físicos atualmente? Seria essa causa imaterial, denunciando a existência de fatores externos ao universo físico que, sem violar suas leis fundamentais, poderiam ainda assim ditar-lhe os rumos, talvez até de maneira intencional (implicando, portanto, em personalidade)? Parece-me que a segunda pergunta pode ser respondida negativamente pelo simples fato de negar um dos princípios básicos da razão. De qualquer forma, não existe uma resposta científica para essas questões. A resposta precisa ser buscada em outros lugares, pois a evidência física é inconclusiva. Eu, particularmente, rejeito a tese determinista por excelentes razões, tanto filosóficas quanto teológicas, sendo que nenhuma das quais vem ao caso no momento. E o determinista de hoje, ao contrário de seu antepassado filosófico de duzentos anos atrás, já não tem nenhum argumento científico válido em favor de sua tese.

2 comentários:

Anônimo disse...

Interessante que você falou sobre Newton, e quando a gente tem contato com alguns segredos de homens "que fizeram a história", facamos surpresos!

29 Dez

ISAAC NEWTON: ASTRÓLOGO, CABALISTA, MAGO, ESOTÉRICO, ALQUIMISTA E HEREGE

http://advhaereses.blogspot.com/2009/12/isaac-newton-astrologo-cabalista-mago.html

Renato

André disse...

Caro Renato, seu comentário não tem relação alguma com o assunto principal do texto e, de qualquer forma, não me traz novidade alguma. Mas obrigado mesmo assim. Algum leitor pode fazer bom proveito do conteúdo do link.

Abraços!