25 de dezembro de 2010

Lições de uma noite

Ontem à noite, minha esposa e eu fizemos nosso culto doméstico habitual, mas com tema natalino. Em vez do estudo da Primeira Epístola aos Coríntios que vínhamos empreendendo, lemos o sermão A encarnação e o nascimento de Cristo, pregado por Charles Haddon Spurgeon na manhã do domingo anterior ao Natal de 1855, na New Park Street Chapel, em Londres. Spurgeon foi pastor batista, teólogo calvinista e grande expositor das Escrituras. Ele é chamado às vezes de "o último dos puritanos", e tinha apenas 21 anos quando proferiu a mensagem em questão. O texto bíblico escolhido por Spurgeon há 155 anos foi um único versículo extraído, não das narrativas dos evangelhos sobre o nascimento de Cristo, mas de uma profecia veterotestamentária, a de Miqueias 5.2: "E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade". Fomos muito abençoados por essa mensagem, de modo que decidi fazer este post para ressaltar quatro pontos que se me afiguraram particularmente interessantes.

1.
O primeiro ponto é sobre a própria legitimidade da observância do Natal, questão algo controversa entre os reformados, com alguns tomando a data como especial e sua celebração como inatacável, enquanto outros consideram-na apenas uma maldita superstição pagã alojada no seio da cristandade. O apóstolo Paulo nos deu um princípio importante a partir da questão do alimento: "Um crê que de tudo pode comer, mas o débil come legumes; quem come não despreze o que não come; e o que não come não julgue o que come, porque Deus o acolheu". E Paulo notou que a questão da observância dos dias está no mesmo patamar: "Um faz diferença entre dia e dia; outro julga iguais todos os dias. Cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente. Quem distingue entre dia e dia para o Senhor o faz; e quem come para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e quem não come para o Senhor não come e dá graças a Deus." É triste ver os que celebram o Natal desprezando os que não o celebram, e estes julgando aqueles. Deveríamos todos prestar mais atenção ao texto de Romanos 14 acerca das coisas que não são essenciais. Spurgeon nos ajuda a atribuir o valor correto ao evento, sem exagero em nenhum sentido:

"Não há nenhuma probabilidade de que nosso Salvador Jesus Cristo tenha nascido nesse dia, e a observância dele é puramente de origem papal - sem dúvida os que são católicos têm o direito de reivindicá-lo - mas não posso entender como os protestantes consistentes podem tê-lo de alguma maneira como sagrado. No entanto, eu desejaria que houvesse dez ou doze dias de Natal ao ano, porque há suficiente trabalho no mundo e um pouco mais de descanso não faria mal ao povo trabalhador. O dia de Natal é de fato uma benção para nós, particularmente porque nos congrega em redor da lareira [do aparelho de ar condicionado, para nós que moramos em Salvador] de nossas casas e nos reunimos uma vez mais com nossos amigos. No entanto, ainda que não sigamos os passos de outras pessoas, não vejo dano algum em pensarmos na encarnação e no nascimento do Senhor Jesus. [...] Os antigos puritanos faziam ostentação do trabalho no dia de Natal, só para mostrar que protestavam contra a observância desse dia. Mas nós cremos que protestavam tão radicalmente que desejamos, como descendentes seus, aproveitar o bem acidental conferido a esse dia e deixar que os supersticiosos prossigam com suas superstições."


2.
Spurgeon extrai uma importante mensagem do significado hebraico dos nomes da cidade: Belém e Efrata. Belém pode significar "casa do pão" ou "casa da guerra", ao passo que Efrata significa "fecundidade" ou "abundância". Diz o pregador: "Jesus é que nos faz fecundos. 'Quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto' (João 15.5) Gloriosa Belém Efrata! Bem nomeada! Fértil casa de pão - a casa de abundante provisão para o povo de Deus!" Contudo, me impressionou ainda mais a exposição dos significados de Belém, em especial a alusão à esterilididade da Lei (assunto caro ao apóstolo Paulo) e à nossa incapacidade de suportar a glória de Deus, simbolizadas pelos montes Sinai e Tabor.

"Cristo não devia nascer na 'casa do pão'? Ele é o pão de seu povo, é dEle que este recebe seu alimento. Como nossos pais comeram o maná no deserto, assim nós vivemos de Cristo aqui embaixo. Famintos frente ao mundo, não podemos alimentar-nos de suas sombras. Suas cascas podem agradar ao gosto suíno do mundo, pois eles são porcos, mas nós precisamos de algo mais substancial, e nesse pão do céu, feito do corpo ferido de nosso Senhor Jesus, e cozido no forno de Suas agonias, encontramos um bendito alimento. Não existe alimento como Jesus para a alma desesperada ou para o mais forte dos santos. O mais humilde da família de Deus vá a Belém por seu pão; e o homem mais forte, que come sólidos alimentos, vá a Belém por eles. Casa do Pão! De onde poderia vir nosso alimento senão de ti? Temos provado o Sinai, mas em seus picos afiados não crescem frutos, e suas alturas espinhosas não produzem trigo que possa alimentar-nos. Fomos ao próprio Tabor, onde Cristo foi transfigurado, e, no entanto, ali não fomos capazes de comer Sua carne e beber Seu sangue. Porém tu, Belém, casa de pão, foste corretamente nomeada; pois em ti se deu ao homem pela primeira vez o pão da vida. E também és chamada 'a casa da guerra', porque Cristo é para os homens 'casa do pão' ou, do contrário, 'casa da guerra'. Enquanto Ele é alimento para o justo, faz guerra ao ímpio, segundo Sua própria palavra:
'Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa.' ( Mateus10.34-36) Pecador, se não conheces Belém como 'a casa do pão', então ela será para ti uma 'casa de guerra'. Se nunca bebes o doce mel dos lábios de Jesus, se não és como a abelha que sorve do delicioso e doce licor da Rosa de Sarom, então dessa mesma boca sairá uma espada de dois gumes contra ti [alusão a Apocalipse 19.11-21] - e essa mesma boca da qual os justos retiram seu pão será para ti a boca da destruição e a causa de teu mal. Jesus de Belém, casa de pão e casa de guerra, nós confiamos que Te conhecemos como nosso pão."

3.
O pregador extraiu uma maravilhosa lição da alusão bíblica às saídas do Messias "desde os dias da eternidade". Trata-se da própria soberania do Deus Trino, manifesta em seu decreto eterno, que deve ser fonte de abundante consolação e segurança para os crentes: eleição e perseverança.

"Ele saiu por Seu povo, como seu representante diante do trono, ainda antes que esse povo fosse gerado no mundo. Foi desde a eternidade que Seus poderosos dedos tomaram a pena, e a caneta das eras, e escreveram Seu próprio nome, o nome do eterno Filho de Deus. Foi desde a eternidade que firmou com Seu Pai o pacto pelo qual pagaria sangue por sangue, ferida por ferida, sofrimento por sofrimento, agonia por agonia e morte por morte em favor de Seu povo. Foi desde a eternidade que Ele entregou a Si mesmo, sem murmurar uma palavra, que desde Sua cabeça até a planta dos Seus pés suaria sangue, que seria cuspido, traspassado, traído, partido em dois, sofreria a dor da morte e as agonias da cruz. Suas saídas como nossa garantia foram desde a eternidade. Faça uma pausa, alma, e assombre-se! Você teve saídas na pessoa de Jesus desde a eternidade. Não foi apenas quando nasceu nesse mundo que Cristo a amou; Seus deleites estavam com os filhos dos homens desde antes que houvesse filhos dos homens. Ele frequentemente pensava neles; de eternidade a eternidade Ele tinha posto neles Seu afeto. Como, então, ó crente, Ele esteve envolvido em sua salvação desde muito tempo atrás e não vai alcançá-la? Desde a eternidade Ele saiu para salvar-me e vai me perder agora? Como? Tem-me em Sua mão, como Sua joia preciosa, e deixará que resvale por entre Seus preciosos dedos? Elegeu-me antes que as montanhas fossem erigidas, antes que os canais das profundezas fossem esculpidos, e agora me perderá? Impossível! [...] Estou seguro de que não me amaria durante tanto tempo para logo depois deixar de fazê-lo. Se tivesse a intenção de se cansar de mim, já o teria feito há muito. Se não tivesse me amado com um amor tão profundo como o inferno e tão inexprimível como a tumba, se não tivesse dado todo o Seu coração, estou seguro de que já teria me abandonado há muito! Ele sabia o que eu seria e teve muito tempo para considerar isso; mas sou Seu eleito, e isso é definitivo. E, embora eu seja indigno, não me é dado resmungar, se Ele está contente comigo."


4.
Na conclusão da pregação, depois de ter citado exemplos das "saídas" de Cristo na história de Israel, quando esteve presente em forma visível a Abraão, Jacó, Josué e os amigos de Daniel, Spurgeon fala sobre a presença de Cristo nos corações dos crentes, em especial dos que, como nós, passam por momentos difíceis.

"Há certos lugares especiais nos quais devemos entrar para encontrar o Senhor. Devemos estar em grandes problemas, como Jacó; devemos estar em meio a grandes trabalhos, como Josué; devemos ter uma grande fé intercessória, como Abraão; devemos estar firmes no desempenho de um dever, como Sadraque, Mesaque e Abedenego. Do contrário, não conheceremos Aquele
'cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade'. Ou, se O conhecermos, não seremos capazes de 'compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade' (Efésios 3.18). Doce Senhor Jesus! Tu, cujas saídas foram desde o início, desde os dias da eternidade, Tu que, todavia, não abandonaste Tuas saídas, sai hoje para animar o desmaiado, para ajudar o cansado, para sarar nossas feridas, para consolar nossas aflições! Sai, suplicamos-Te, para conquistar os pecadores, para subjugar corações endurecidos, para romper as portas de ferro de seus pecados e fazê-las em pedaços! Ó Jesus, sai e, ao saíres, vem a mim! [...] Pobre pecador! Cristo não tem deixado de sair. E quando sai, lembra-te, Ele vai a Belém. [...] Ele virá à tua velha e pobre casa; virá ao teu pobre coração infeliz; virá, ainda que estejas na pobreza, e coberto de farrapos; ainda que estejas desamparado, atormentado e aflito. Ele virá, pois Suas saídas têm sido desde o princípio, desde os dias da eternidade. Confia Nele, confia Nele, confia Nele; e Ele sairá e habitará em teu coração por toda a eternidade."

Glória a Jesus Cristo, pois Ele já veio e está conosco!

Feliz Natal a todos!

30 de novembro de 2010

Sobre o recente protesto contra a Universidade Presbiteriana Mackenzie

Em protesto ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), publicado desde 2007 no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie contra o PL 122/2006 (conhecido como “lei anti-homofobia”), um grupo de ativistas organizou uma manifestação no dia 24 de novembro de 2010, por volta das 18h, em frente à universidade. Com previsão de mais de três mil participantes, o evento contou somente com cerca de 400, que se postaram diante dos portões da instituição, na Rua Itambé. Em seguida, o grupo deslocou-se do Mackenzie para a Avenida Paulista com um número já bastante reduzido, conforme anunciado por diversos veículos de comunicação como a Globo News, a Folha de São Paulo, a CET, o site da UOL e dezenas de outros sites informativos. Na universidade, as aulas transcorreram normalmente.

A oposição da IPB ao projeto de lei se baseia não só no senso comum e em análises jurídicas especializadas (que consideraram o projeto “inconstitucional”), mas sobretudo nos princípios cristãos que norteiam tanto a denominação quanto o Mackenzie. Não há novidade nisso: quando se matriculam na instituição, os alunos assinam o contrato de serviços educacionais, em que há uma cláusula explicando esse caráter confessional. Isso não significa perseguição a quem não subscreve essas bases cristãs, muito pelo contrário: não há registro na história da universidade de casos de discriminação de qualquer tipo, seja contra alunos homossexuais, seja contra alunos que professam outras religiões, ou nenhuma. Todos têm acesso aos mesmos benefícios, como bolsas de estudo.

No entanto, desde o momento em que a publicação do texto da IPB no site do Mackenzie foi “descoberta” pelos ativistas neste ano, a igreja, a universidade e a pessoa de seu Chanceler têm sido duramente atacados e acusados de “homofobia”. Filmados em vídeo, os manifestantes pediam a demissão do Chanceler, cuja foto foi estampada em diversos sites homossexuais acompanhada de palavras de ódio. A virulência que caracterizou essas expressões de indignação, mesmo antes da aprovação do projeto, confirma o quanto é perigoso que a sociedade se veja refém de uma minoria militante, que procura impor seus pontos de vista por meio de pressão e difamação, não admitindo que pessoas, igrejas e organizações cristãs simplesmente afirmem ser a conduta homossexual um pecado.

Para detalhar melhor sua postura bíblica — que se fundamenta no amor, não no separatismo, e prega o respeito a todos —, cristãos que partilham da mesma visão sobre o homossexualismo se uniram para elaborar o manifesto “Universidade Mackenzie: Em Defesa da Liberdade de Expressão Religiosa”. O texto foi reproduzido em cerca de oito mil sites cristãos e conservadores, recebendo mais de 36mil citações na internet. Traduzido para idiomas como alemão, espanhol, francês, holandês e inglês, foi postado em sites de diversos países estrangeiros, como Estados Unidos, França, Alemanha e Portugal. Centenas de manifestações de solidariedade à postura do Mackenzie foram veiculadas em diversos meios, inclusive no conhecido blog de Reinaldo Azevedo (articulista da revista Veja), um dos comentaristas políticos mais lidos e respeitados do país. Respondendo às acusações de “homofobia” com argumentos sólidos e bíblicos, os cristãos creem que sua postura contribuiu para que a manifestação de repúdio ao documento da IPB tenha recebido tão pouca adesão do público.

Nós, cristãos, estamos alegres e gratos por todo o apoio recebido e pelas orações do povo de Deus em favor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e de seu Chanceler, o Rev. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Instamos o povo de Deus a que se una também em súplicas e intercessões para que o Deus todo-poderoso derrame seu Espírito Santo sobre a igreja evangélica neste país. Necessitamos com urgência de um avivamento, de forma que o Cristo crucificado seja exaltado, os crentes sejam santificados, a Escritura Sagrada seja pregada com liberdade, pecadores se convertam e nosso país seja transformado, para a glória do Deus trino da graça.

Este pronunciamento é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

19 de novembro de 2010

Universidade Mackenzie: em defesa da liberdade de expressão religiosa

A Universidade Presbiteriana Mackenzie vem recebendo ataques e críticas por um texto alegadamente “homofóbico” veiculado em seu site desde 2007. Nós, de várias denominações cristãs, vimos prestar solidariedade à instituição. Nós nos levantamos contra o uso indiscriminado do termo “homofobia”, que pretende aplicar-se tanto a assassinos, agressores e discriminadores de homossexuais quanto a líderes religiosos cristãos que, à luz da Escritura Sagrada, consideram a homossexualidade um pecado. Ora, nossa liberdade de consciência e de expressão não nos pode ser negada, nem confundida com violência. Consideramos que mencionar pecados para chamar os homens a um arrependimento voluntário é parte integrante do anúncio do Evangelho de Jesus Cristo. Nenhum discurso de ódio pode se calcar na pregação do amor e da graça de Deus.

Como cristãos, temos o mandato bíblico de oferecer o Evangelho da salvação a todas as pessoas. Jesus Cristo morreu para salvar e reconciliar o ser humano com Deus. Cremos, de acordo com as Escrituras, que “todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Romanos 3.23). Somos pecadores, todos nós. Não existe uma divisão entre “pecadores” e “não-pecadores”. A Bíblia apresenta longas listas de pecado e informa que sem o perdão de Deus o homem está perdido e condenado. Sabemos que são pecado: “prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, contendas, rivalidades, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias” (Gálatas 5.19). Em sua interpretação tradicional e histórica, as Escrituras judaico-cristãs tratam da conduta homossexual como um pecado, como demonstram os textos de Levítico 18.22, 1Coríntios 6.9-10, Romanos 1.18-32, entre outros. Se queremos o arrependimento e a conversão do perdido, precisamos nomear também esse pecado. Não desejamos mudança de comportamento por força de lei, mas sim, a conversão do coração. E a conversão do coração não passa por pressão externa, mas pela ação graciosa e persuasiva do Espírito Santo de Deus, que, como ensinou o Senhor Jesus Cristo, convence “do pecado, da justiça e do juízo” (João 16.8).

Queremos assim nos certificar de que a eventual aprovação de leis chamadas anti-homofobia não nos impedirá de estender esse convite livremente a todos, um convite que também pode ser recusado. Não somos a favor de nenhum tipo de lei que proíba a conduta homossexual; da mesma forma, somos contrários a qualquer lei que atente contra um princípio caro à sociedade brasileira: a liberdade de consciência. A Constituição Federal (artigo 5º) assegura que “todos são iguais perante a lei”, “estipula ser inviolável a liberdade de consciência e de crença” e “estipula que ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”. Também nos opomos a qualquer força exterior – intimidação, ameaças, agressões verbais e físicas – que vise à mudança de mentalidades. Não aceitamos que a criminalização da opinião seja um instrumento válido para transformações sociais, pois, além de inconstitucional, fomenta uma indesejável onda de autoritarismo, ferindo as bases da democracia. Assim como não buscamos reprimir a conduta homossexual por esses meios coercivos, não queremos que os mesmos meios sejam utilizados para que deixemos de pregar o que cremos. Queremos manter nossa liberdade de anunciar o arrependimento e o perdão de Deus publicamente. Queremos sustentar nosso direito de abrir instituições de ensino confessionais, que reflitam a cosmovisão cristã. Queremos garantir que a comunidade religiosa possa exprimir-se sobre todos os assuntos importantes para a sociedade.

Manifestamos, portanto, nosso total apoio ao pronunciamento da Igreja Presbiteriana do Brasil publicado no ano de 2007 e reproduzido parcialmente, também em 2007, no site da Universidade Presbiteriana Mackenzie, por seu chanceler, Reverendo Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes. Se ativistas homossexuais pretendem criminalizar a postura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, devem se preparar para confrontar igualmente a Igreja Presbiteriana do Brasil, as igrejas evangélicas de todo o país, a Igreja Católica Apostólica Romana, a Congregação Judaica do Brasil e, em última instância, censurar as próprias Escrituras judaico-cristãs. Indivíduos, grupos religiosos e instituições têm o direito garantido por lei de expressar sua confessionalidade e sua consciência sujeitas à Palavra de Deus. Postamo-nos firmemente para que essa liberdade não nos seja tirada.

Este manifesto é uma criação coletiva com vistas a representar o pensamento cristão brasileiro.
Para ampla divulgação.

15 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 4

Nos posts anteriores critiquei as teses de Crampton do ponto de vista lógico e histórico, apontando a superficialidade com que lê seus antagonistas e também demonstrando a inconsistência dos argumentos com que pretende construir sua própria alternativa. Terminei o último post apontando como plausível a hipótese de que o autor deve elementos importantes de seu pensamento a uma fonte essencialmente antibíblica. Contudo, não apontei nenhuma evidência positiva disso, e tampouco abordei a questão de um ponto de vista teológico. É o que pretendo fazer nesta última postagem.

Como vimos, boa parte do argumento de Crampton consiste em apontar semelhanças entre as declarações de seus antagonistas conservadores e as de teólogos neo-ortodoxos. Sendo assim, ele não poderá reclamar se eu adotar o mesmo procedimento e disser com o que se parecem seus louvores à razão. Parecem-se com os de todos os descendentes do cartesianismo e do iluminismo, incluindo-se aí os racionalistas do século XVII, os enciclopedistas do XVIII, os positivistas e teólogos liberais do XIX, os materialistas darwinistas, comunistas e outros cientificistas do século XX. Se Voltaire, Marx, T. H. Huxley, Kardec, Lênin, Russell, Bultmann, Sagan ou Dawkins lessem a Confissão de Fé de Westminster e o artigo de Crampton, sem dúvida veriam nesse contraste uma evidência do "progresso" do calvinismo ao longo dos séculos em direção às luzes da razão. Todos eles repeliam (ou repelem) horrorizados a mera ideia de que algo na realidade pudesse exceder os limites de nossa razão, pondo-se logo a tecer considerações alarmadas sobre os perigos do "irracionalismo".


Não é meu desejo, de forma alguma, tomar partido num debate entre racionalistas e irracionalistas. Inclusive tenho um
post, que recomendo aos interessados nessa pendenga, no qual acuso ambos de serem farinha do mesmo saco. Já li racionalistas cientificistas e também já li irracionalistas pós-modernos, e é em parte por isso que sei que ambos são igualmente perniciosos, e que não se pode evitar um pecado caindo em outro. Crampton, porém, não sabe disso, e acabou por cair no mesmo dualismo que acomete o mundo: elegeu um dos erros como o vilão e se encaminhou para o erro oposto como se fosse o herói. E seu herói, concorde ele ou não com o nome que lhe dou, é o racionalismo. Trata-se, devo dizer, de um velho conhecido meu. Encontrei-o ainda na adolescência, e o Departamento de Física que frequentei por cinco anos em nada me incentivou a abandoná-lo. O racionalismo foi a minha tentação intelectual até os vinte anos, e é por isso que conheço de perto, de dentro, o perigo espiritual que ele representa. E é também por isso que não pude ficar em silêncio ao me deparar com um racionalismo com roupagens de teologia calvinista conservadora.

Como argumento contra a associação feita por Crampton entre calvinistas e neo-ortodoxos, citar semelhanças entre as concepções do autor e as de eminentes pensadores racionalistas, dentro ou fora da igreja, é resposta suficiente. Mas é preciso ir além e demonstrar que minha associação não é falaciosa como a dele. Para isso, nada melhor que explorar os efeitos dessa mentalidade no próprio texto de Crampton. Na última página, antes de apresentar sua conclusão, o autor enumera os
"três obstáculos insuperáveis" propostos por Robert Reymond para quem sustenta a existência de paradoxos lógicos nas Escrituras. O primeiro é o da suposta subjetividade da afirmação dos paradoxos, obstáculo que já superei no primeiro post. Os outros dois estão intimamente ligados e são bastante reveladores.

Segundo o autor, o problema com a afirmação de que as contradições bíblicas são apenas aparentes é que
"se nenhuma quantidade de estudo ou reflexão pode remover a contradição, não há meios disponíveis para distinguir essa contradição 'aparente' de uma contradição real". Crampton pergunta: "Como, então, o homem sabe se está abraçando uma contradição real (a qual, se encontrada na Bíblia [...], reduziria a Escritura ao mesmo nível do contraditório Alcorão do islamismo) ou uma contradição aparente?" Esse foi o segundo obstáculo. O terceiro trata da afirmação de que a verdade pode estar em declarações mutuamente irreconciliáveis. Quem crê nisso "abandonou toda possibilidade de detectar uma falsidade real". Qualquer coisa que contradiga algum ensino das Escrituras poderia ser aceita como apenas mais uma contradição aparente. Nesse caso, Crampton conclui, "a exclusividade do cristianismo como a única religião verdadeira revelada morrerá a morte de milhares de qualificações".

Tenho várias coisas a dizer sobre esse argumento bicéfalo. A primeira é que todas as razões levantadas contra a ideia da contradição aparente apenas desenvolvem suas supostas consequências, mas de modo algum tornam implausível sua realidade. Para ilustrar o que digo, retomarei o exemplo da conciliação entre a predestinação e a liberdade humana. Suponhamos que haja uma solução racionalmente impecável para o impasse, e que o homem mais inteligente e bem preparado que já houve ou haverá pudesse chegar a ela se a perseguisse com todas as forças durante mil anos. Nesse caso, é claro que todos os esforços dariam em nada. Isso mostra que Crampton tem razão ao dizer que, na prática, não é possível distinguir logicamente uma contradição real de uma aparente, e é por isso mesmo que não fiz nenhuma tentativa nesse sentido. Mas também mostra que não há nada de inverossímil na suposição de que algumas verdades podem ser, na prática, inapreensíveis pela razão humana, ainda que não o sejam em teoria. Por isso, para defender a existência de mistérios, não é necessário negar que a coerência lógica seja um atributo divino, nem afirmar que
"nenhuma quantidade de estudo ou reflexão pode remover a contradição". Talvez alguma quantidade seja suficiente, mas não praticável para nós. E Crampton não levantou uma única objeção válida a essa possibilidade.

Deve ser observado que, também nesse contexto, a predição do fim apocalíptico da teologia bíblica não se justifica. Ao aceitar a existência de mistérios nas Escrituras, Calvino, os teólogos de Westminster e os citados por Crampton não pretendiam promover - e não promoveram - uma debandada geral dos domínios da razão. Ao contrário, a asseveração de um mistério só é aceita depois de completado o árduo trabalho da exegese bíblica, no qual, sem dúvida, a razão toma parte, assistida pelo Espírito Santo. Para afirmar que a dupla natureza de Cristo é um mistério, foi necessário ler atentamente a Bíblia e constatar que tanto a divindade quanto a humanidade de Cristo são ali claramente ensinadas, e então constatar os impasses a que isso leva. Da mesma forma, a doutrina da Trindade foi inferida a partir da constatação exegética de que o Pai, o Filho e o Espírito são distintos entre si, que cada um deles é Deus e que só há um Deus. É depois de constatados os fatos, e não antes, que alguém pode tentar explicar o que vê nas Escrituras e, não conseguindo, declarar que o assunto é um mistério. É assim que, contrariando os medos de Crampton, a razão sempre teve seu papel assegurado, sem exageros, na tradição reformada.


Aliás, o medo do colapso da racionalidade face ao mistério é um dos vários pontos que Crampton e os racionalistas seculares têm em comum. Um dos principais motivos que levam os cientificistas a rejeitar
a priori o design inteligente, por exemplo, é claramente análogo: eles temem que, com a admissão da insuficiência das leis naturais, todos os cientistas do mundo interrompam suas pesquisas e experimentos e passem a atribuir todos os eventos a alguma inescrutável inteligência superior. Trata-se de um absurdo, evidentemente, mas o poder paralisante que o medo exerce sobre a razão não diminui em nada quando o apavorado em questão é um racionalista.

O medo, na verdade, nos levará diretamente ao coração do problema. O maior medo de Crampton é que a abdicação da razão destrua o próprio fundamento da superioridade da fé bíblica. Ao admitir que há na doutrina cristã fatos que nossa razão não pode abarcar, perderemos o direito de apontar para as contradições de outros sistemas religiosos como provas de sua falsidade. Sem esse que é o grande argumento de muitos apologetas - a Bíblia não se contradiz, mas todo o resto sim - resta apenas um relativismo e uma equivalência de todas as religiões, e perdemos a própria justificativa para sermos cristãos.


Minha experiência pessoal não corresponde a nada disso. Tornei-me cristão porque Deus me regenerou, tirou meu coração de pedra e me deu um coração de carne, aplicou a mim o valor expiatório da obra de Cristo, capacitou-me a desejar a reconciliação com Deus e a ter fé em Cristo como único mediador da nova aliança. E continuo a ser cristão porque Deus tem levado minha fé a perseverar, de modo a completar a obra iniciada, conforme sua promessa, e porque o Espírito Santo testifica com meu espírito que sou filho de Deus e abre meus olhos para a compreensão das verdades reveladas nas Escrituras. O caso de Crampton, ao que parece, é bem diferente do meu: ele se tornou cristão porque o Espírito deu satisfações impecáveis à sua razão, a qual então se dobrou diante da evidência. E só continuará a ser cristão até o dia em que sua razão, como árbitro soberano, detectar na Bíblia alguma contradição (real ou aparente, pois ambas são indistinguíveis) e o Espírito não for capaz de lhe dar uma explicação convincente para tamanho disparate.


No parágrafo anterior, descrevi minha experiência com Deus em termos calvinistas e bíblicos não apenas porque tais termos de fato descrevem com perfeição o cerne dessa experiência, mas também para evidenciar o contraste com as declarações de Crampton sobre os motivos pelos quais se deve ser cristão. O grande problema com o racionalismo, teológico ou não, está bem ilustrado aqui: o autor não mais descreve a razão de sua esperança com base na experiência concreta da graça de Deus, e sim a partir da robustez do esquema teórico e racional que foi capaz de erigir. É esse o resultado natural da crença no domínio absoluto da razão: o olhar desviado de Cristo e sua misericórdia para questões secundárias.


O terceiro perigo também decorre do medo, e também está exposto acima: a suposta vulnerabilidade da doutrina cristã frente a doutrinas concorrentes como resultado da admissão de paradoxos na Bíblia. Quanto a isso, observo, em primeiro lugar, que a redução do valor de uma doutrina à coerência racional de suas construções teóricas é em si um critério bastante deficiente que só poderia mesmo brotar da cabeça de um racionalista. O valor de uma doutrina se mede também pelo tipo de homem que ela produz. E esse fato, dentre muitas outras coisas, torna perfeitamente possível comparar duas religiões (ou dois sistemas quaisquer), ainda que haja contradições (reais ou aparentes) em ambas. Mesmo a comparação racional é possível, no entanto, pois o tipo, o lugar e o efeito das inconsistências lógicas varia muito entre as diversas doutrinas. Acima de tudo, porém, é necessário ter em mente a doutrina bíblica e reformada da depravação total, da qual um dos corolários é que ninguém jamais se tornou ou se tornará cristão pela persuasão racional, e sim apenas pela operação regeneradora do Espírito nos corações.


A propósito, é inconcebível para mim que um teólogo reformado se aventure a discorrer sobre o assunto da justificação racional da fé bíblica sem tocar no tema importantíssimo do papel do pecado enquanto obscurecedor da inteligência humana, especialmente em assuntos diretamente relacionados a Deus e à salvação, que é uma das ênfases primordiais da doutrina reformada sobre a cognoscibilidade de Deus. Crampton, no entanto, faz justamente isso. Se sua argumentação já é deficiente frente à constatação da finitude humana em contraste com a infinitude divina, torna-se ainda mais reprovável quando lembramos que essa finitude está corrompida pelo pecado e que, como nos lembra Calvino nas
Institutas, ninguém pode obter um conhecimento autêntico de Deus ou das Escrituras sem a iluminação do Espírito de Deus e sem a santificação correspondente. Esse é mais um exemplo das ênfases erradas a que o racionalismo leva.

Termino aqui esta série sobre o artigo de Crampton e sobre o racionalismo pseudocalvinista ali exposto. Se eu fosse um incrédulo racionalista insatisfeito e tivesse meu primeiro contato com o calvinismo através de Crampton, provavelmente teria me aborrecido e repelido de imediato a fé reformada, desanimado com a perspectiva de trocar um racionalismo secular por um religioso. Felizmente conheci a doutrina reformada por outros meios, e graças a isso posso avaliar a extensão do desserviço prestado pelo autor (e por quantos porventura pensem como ele) à doutrina bíblica. Esse procedimento incentiva os crentes a depositar sua confiança na própria razão, e não na obra consumada de Cristo; e a buscar segurança na coerência racional, e não nas promessas de Cristo. Talvez seja por isso mesmo que Deus não nos deu respostas exaustivas, quer nas Escrituras, quer na revelação geral: Ele não deseja que nos recusemos a reconhecer nossas limitações também nessa área, e muito menos que lhe imponhamos condições para permanecer firmes na adoração bíblica, ao invés de humildemente solicitar sua graça para permanecermos. De modo que devemos aceitar de Cristo o que quer que Ele deseje nos dar, sejam explicações racionais, sejam indícios a partir dos quais podemos chegar a respostas logicamente válidas, sejam mistérios nos quais só podemos crer.


De qualquer modo, estou feliz e grato a Deus porque ele me curou do racionalismo que outrora foi parte de mim. Meu desejo é que outros cristãos reformados também venham a perceber que há alguns mistérios entre os céus e a terra, apesar do que sonha a vã filosofia de W. Gary Crampton.


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Adendo: Não deixem de ler o texto da Norma, minha esposa, sobre um tema relacionado a este, envolvendo Calvino e Chesterton, nem o posicionamento do pastor Augustus Nicodemus Lopes, um dos maiores teólogos calvinistas do país. No mesmo post, aliás, há um extenso e muito esclarecedor comentário do pastor Hermisten Maia, grande estudioso de Calvino, acerca das posições do reformador sobre o assunto. Os trechos que citei de Calvino na terceira parte estão todos ali, embora não necessariamente na mesma tradução.

6 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 3

Demonstrei no primeiro post desta série que o pensamento de W. Gary Crampton no que diz respeito às potencialidades da mente humana para a compreensão dos assuntos divinos não encontra apoio entre os puritanos que redigiram a Confissão de Fé de Westminster, ao contrário do que pensa o próprio. E terminei a segunda postagem mostrando que esse fato bastaria para lançar por terra sua acusação de que declarações do mesmo teor feitas por eminentes teólogos calvinistas conservadores do século XX se devem à influência da neo-ortodoxia. Mas, antes de passar ao próximo ponto, não devo perder a oportunidade de fazer um trabalho um pouco melhor e mostrar o que tinha a dizer a respeito o próprio João Calvino, um sujeito cujas opiniões, por motivos óbvios, devem ser levadas em conta quando o assunto é o calvinismo. Seja notado que a primeira sentença do trecho a seguir, extraído do comentário sobre a Epístola aos Romanos composto pelo reformador, se parece muito com aquelas declarações de teólogos reformados do século XX que Crampton cita no início de seu artigo: "Toda verdade proclamada referente a Cristo é completamente paradoxal pelo prisma do juízo humano. Entretanto, o nosso dever é prosseguir em nossa rota. Cristo não deve ser suprimido só porque para muitos ele não passa de pedra de ofensa e rocha de escândalo. Ao mesmo tempo que Ele prova ser destruição para os ímpios, em contrapartida Ele será sempre ressurreição para os fiéis." O trecho seguinte, retirado das Institutas, esclarece qual deve ser, na opinião de Calvino, a correta atitude diante de mistérios como o da predestinação, explicando também que a razão disso reside na limitação da mente humana:

"A primeira coisa é que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da predestinação, penetram no santuário da sabedoria divina, no qual todo aquele que entra com ousadia não encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num labirinto do qual não pode sair. Porque não é justo que, daquilo em que o Senhor desejou que fosse oculto em si e acessível somente ao entendimento divino, o homem se meta a falar sem temor algum, nem que revolva e esquadrinhe desde a eternidade mesma a majestade e grandeza da sabedoria divina, que Ele quis que adorássemos, e não que a compreendêssemos, a fim de ser para nós dessa maneira admirável. [...] Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas coisas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, e a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura."

A essência do pensamento de Calvino em questões como o valor da lógica humana para os assuntos divinos e a ausência de paradoxos nas Escrituras foi muito bem resumida por Edward Dowey Jr. em The Knowledge of God in Calvin's Theology: "Calvino, pois, estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e compreensibilidade nos temas individuais da Bíblia, mas estava, também, tão submisso ante o mistério divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas inconsistências de lógica, ao invés de optar por um todo racionalmente coerente. [...] Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas interrelações - essa é a marca registrada da teologia de Calvino."

Espero que esteja claro que não transcrevo essas citações por julgar inadmissível que um calvinista discorde de Calvino. Eu mesmo discordo de vez em quando. Tudo o que pretendo mostrar aqui é que as declarações a respeito dos paradoxos lógicos nas Escrituras, que tanto escandalizam Crampton e os que pensam como ele, não devem nada à neo-ortodoxia, nem a nenhuma outra corrente moderna, e sim estão de acordo com o mais puro espírito do calvinismo, conforme manifestado desde seus primórdios. Quem quiser discordar de Calvino tem todo o direito de fazê-lo, desde que não atribua à própria posição um acordo com a tradição reformada que não existe.

Uma vez constatado que esse acordo não existe, resta comentar sob outros pontos de vista o desacordo que existe. Até aqui demonstrei a falsidade histórica das reivindicações de Crampton, mas há outros aspectos sob os quais seu posicionamento pode ser criticado. Um deles se encontra na última sentença do artigo, onde é dito que "qualquer tropeço nessa área conduzirá (no mínimo) a uma queda no absurdo neo-ortodoxo". Ele se refere, naturalmente, à admissão da existência de paradoxos lógicos na Bíblia. Mas, já que estamos falando de paradoxos lógicos, convém observar que essa declaração é negada por outra feita pelo próprio Crampton em outra parte do artigo. Depois de afirmar que essa admissão equivale a "sustentar, pelo menos implicitamente, uma visão muito baixa da infalível Palavra de Deus", ele se apressa em acrescentar: "Esse declaração não deve de forma alguma ser entendida como uma difamação contra o Dr. Palmer, o Dr. Packer e o Dr. Van Til, todos os quais sustentam uma visão elevada da inspiração bíblica". Se isso é verdade, só pode ser porque esses senhores não caíram no "absurdo neo-ortodoxo", que, como afirma o autor adiante, é o mínimo que pode acontecer a alguém disposto a admitir o que eles admitem. Essa contradição pode parecer de pouca importância, mas é na verdade um indício de um fenômeno muito relevante: entre os que atribuem uma importância excessiva à razão, não é nada raro constatar que a qualidade de seu raciocínio e a precisão de suas declarações não são exatamente o que seria de se esperar.

Na verdade, há uma falha lógica muito mais séria em toda a estrutura do artigo, a qual já foi indicada acima, mas convém explicitá-la e desenvolvê-la agora. Ela se encontra, uma vez mais, na própria associação entre a teologia neo-ortodoxa e a teologia conservadora dos antagonistas de Crampton acima citados. Como vimos, nenhum esforço foi feito no sentido de estabelecer uma relação de parentesco histórico entre as duas correntes. O autor espera nos convencer da influência daquela sobre esta apenas pela enumeração de semelhanças de conteúdo. Trata-se, sem dúvida, de um procedimento insuficiente. Mas Crampton vai além: visto que se dirige a calvinistas conservadores (que, como tais, são naturalmente antipáticos à neo-ortodoxia), está certo de que qualquer semelhança apontada será entendida como sintoma de que algo não vai bem em certos segmentos do mundo teológico reformado. Nisso reside o valor retórico de tudo quanto é dito no artigo acerca da neo-ortodoxia. Contudo, há razões pelas quais esse valor retórico não possui um valor lógico equivalente.

Antes que essas razões sejam expostas, é necessário compreender que estamos falando apenas do lado ofensivo do artigo, ou seja, o lado que ataca a posição do oponente, e não do que defende a legitimidade de sua própria posição. É importante, contudo, que prestemos alguma atenção ao que é dito num sentido mais positivo e propositivo. A essência da tese de Crampton, que é agostiniana e que ele parece ter assimilado via Clark, é que "a lógica é um atributo do próprio Deus", uma ideia que ele abstrai de versículos bíblicos que associam Deus e Cristo à verdade, à sabedoria e ao conhecimento, além de recorrer pela terceira vez à malfadada tentativa de provar seu argumento por meio de 1 Coríntios 14.22 (o versículo sobre o "Deus de confusão", que ele cita três vezes ao todo, sempre no mesmo sentido equivocado). Contudo, nenhum desses textos fala explicitamente da razão, e muito menos da lógica. É natural esperar que o componente racional e lógico esteja incluído na verdade, sabedoria e conhecimento divinos, mas esses versículos não são de nenhuma ajuda quando a questão é saber se a lógica humana pode apreender integralmente os pensamentos divinos e as verdades espirituais mais profundas, ou mesmo se o aspecto lógico e racional está em primeiro plano na sabedoria divina e no conhecimento que podemos obter de Deus. Parece-me que a resposta é forçosamente negativa, pois considero essa ideia uma influência deletéria da filosofia grega sobre o pensamento cristão. E, aos que gostam de salientar que Cristo é o Logos, respondo que não nego que haja alguma semelhança com o conceito grego, mas considero convincente a tese exposta por F. F. Bruce em seu comentário ao Evangelho segundo João, de acordo com a qual o uso do termo grego naquela obra pode ser explicado inteiramente dentro do ambiente judaico, não sendo necessário supor que João reconhecesse (ou mesmo conhecesse) o conceito dos filósofos gregos ou fosse por eles influenciado. Seja como for, o fundamento proposto por Crampton para sua tese é absolutamente insuficiente.

Devo esclarecer que, embora eu não me oponha à ideia de que a coerência lógica seja um atributo divino, nem por isso concordo com Crampton quanto às consequências que ele extrai, quer da asseveração, quer da negação dessa tese. O que se vê aqui é o mesmo que já apontei no post anterior, a saber, a incapacidade de sequer conceber posições intermediárias. É o caso do comentário do autor sobre a discussão gerada por Isaías 55.3-9: que significa a declaração bíblica de que os pensamentos de Deus são mais altos que os nossos? Crampton critica a tese de que a passagem afirma uma total diferença entre a mente divina e a humana, e pensa com isso firmar como inevitável sua posição de que "a diferença entre os pensamentos de Deus e os pensamentos do homem é de grau, não de tipo". Mas por que seriam essas as únicas alternativas disponíveis? Por que os pensamentos de Deus não poderiam ter algo em comum com os nossos - o suficiente para tornar válidos muitos destes últimos - e ao mesmo tempo transcendê-los infinitamente em qualidade, e não apenas em grau?

Em suma, Crampton busca estabelecer sua posição como óbvia a partir da crítica de uma mera caricatura da posição alternativa. Some-se a isso a imensa superficialidade de sua exegese, e o resultado é uma absoluta insuficiência argumentativa na justificação de suas teses. Uma vez constatado esse fato, abre-se a possibilidade de que os elementos centrais de seu pensamento padeçam do mesmo defeito que ele supõe enxergar em seus antagonistas: a influência de alguma corrente de ideias que pouco ou nada tem de autenticamente cristã e bíblica. Explorarei melhor esse ponto no próximo post, que deverá também ser o último desta série.

3 de novembro de 2010

O direito ao mistério - parte 2

Há duas coisas que eu poderia ter dito no post anterior e acabei me esquecendo, mas que ainda dá tempo de dizer, embora sejam meros detalhes. A primeira é a respeito do versículo citado por Crampton, que diz que Deus não é Deus de confusão - e portanto, segundo ele, não há paradoxos lógicos na Bíblia. Já demonstrei que se trata de uma péssima exegese. Faltou dizer que a primeira vez que vi essa passagem bíblica sendo usada fora de seu contexto foi numa brochura da Sociedade Torre de Vigia, a organização das testemunhas de Jeová, que o usava para atacar a doutrina da Trindade, sob a mesmíssima acusação de ser racionalmente incompreensível. Por aí se vê não só em que nível se situa a qualidade da exegese de Crampton, mas também que esse versículo parece ter um histórico de usos racionalistas indevidos. A segunda coisa é que o autor afirmou que a expressão "alto mistério", encontrada na Confissão de Fé de Westminster, significa apenas que é um assunto acerca do qual é difícil adquirir plena compreensão, mas não impossível. Contudo, ele não forneceu nenhum argumento para justificar essa conclusão, e isso basta para me convencer de que sua declaração se baseia tão somente em seus preconceitos teológicos. Dito isso, vamos em frente, analisando o restante do artigo.

Crampton prossegue defendendo a posição de Clark, segundo a qual
"depender de [...] paradoxos [...] destrói tanto a revelação como a teologia e nos deixa na completa ignorância". Ele cita declarações de teólogos da assim chamada neo-ortodoxia, como Karl Barth e Emil Brunner, para os quais as Escrituras necessariamente contêm inúmeras contradições porque Deus não pode se revelar de modo proposicional, e portanto a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus, e tampouco pode ser infalível. Segundo Crampton, a neo-ortodoxia proclama ainda que "a contradição é a marca registrada da verdade religiosa" e que o agnosticismo teológico é o resultado de tudo isso. A consequência, de acordo com o autor, é o divórcio entre a fé e a razão, o abandono da ideia agostiniana de que a lógica, por ser divinamente ordenada, deveria ser confiantemente usada pelo homem. Sem essa concepção, "o homem nunca poderia conhecer verdadeiramente coisa alguma", pois nenhuma proposição tem significado se não invalidar as proposições que a contradizem. Sem a lógica, diz ele, "No princípio criou Deus os céus e a terra" e "No princípio não criou Deus os céus e a terra" significam rigorosamente a mesma coisa.

Entre os criticados estão o filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd e toda a escola de Amsterdã, para os quais há
"um limite entre Deus, como Legislador, e o homem, como recipiente. As leis da lógica existem somente do lado humano do limite." E Crampton descreve as consequências dessa posição: "Se esse limite dooyeweerdiano realmente existe, Deus não pode revelar nada às suas criaturas e o homem não pode conhecer nada sobre Deus, incluindo a noção do limite". Um pouco adiante, o autor transcreve com satisfação as posições de Carl Henry, para quem "a insistência sobre um abismo lógico [...] não pode escapar de uma redução ao ceticismo" e "as questões que se levantam nos círculos ortodoxos sobre se a Bíblia contém paradoxo lógico, sobre o grande divórcio entre a lógica de Deus e a mera lógica humana, e assim por diante, são o resultado da epistemologia dialética da neo-ortodoxia".

Convém fazer uma pausa e tecer algumas observações antes de prosseguir com a exposição do arrazoado de Crampton. O mais importante a dizer é que tudo o que foi dito constitui uma mudança de assunto. É fácil notar que o argumento sobre a importância da validade da lógica, em especial do princípio da não-contradição, é apenas o velho argumento de Aristóteles contra os sofistas adaptado ao contexto e à linguagem da exegese bíblica reformada. E o argumento de Aristóteles foi bem empregado, pois ele estava lidando com céticos absolutos que não viam valor algum na lógica. Porém, o caso dos teólogos criticados por Crampton é evidentemente diverso. O ponto em discussão não é se podemos ou não ler na Bíblia que
"o Senhor é bom" e entender que Deus é mau. Quaisquer que sejam as razões que levam um teólogo reformado a defender a possibilidade da existência de paradoxos lógicos nas Escrituras (e pretendo mostrar algumas dessas razões adiante), elas não exigem que a lógica não valha nada, nem que toda afirmação bíblica possa ser substituída por seu contrário, e muito menos que fazer isso seja o objetivo de alguém. Nada disso vem ao caso, de modo que não se justificam as predições apocalípticas sobre o fim do conhecimento humano que abundam nesse artigo.

O uso do argumento aristotélico é equivocado, mas essa aplicação diz algo sobre o modo de raciocinar de Crampton, de modo que não devo perder a oportunidade de analisar um pouco melhor esse ponto. Se ele não percebe o que expliquei no parágrafo anterior e se apropria do argumento de Aristóteles sem pensar duas vezes, é porque considera sua situação diante de calvinistas como Palmer, Packer, Van Til e Dooyeweerd exatamente análoga à do estagirita diante dos céticos gregos. E pensa assim porque considera que só há duas posições possíveis diante da lógica: ou seu reino se estende incólume sobre todos os assuntos, inclusive os divinos, ou não vale absolutamente nada em domínio algum da realidade. Em outras palavras, Crampton padece daquela doença intelectual demasiado comum entre os modernos, a qual os torna incapazes de compreender qualquer coisa que não seja um "tudo" ou um "nada". Para eles não há exceções, restrições, ressalvas ou casos particulares, nem qualquer posicionamento intermediário entre a adesão entusiástica e a condenação irrestrita a algo. Essa insensibilidade às nuances é sempre algo triste de se ver.


(Já que toquei no assunto da filosofia, convém observar, de passagem, que o tratamento dado a Dooyeweerd foi bastante injusto. Eu mesmo não tenho muita simpatia pela ideia dooyeweerdiana do limite, mas a descrição que o autor faz dela é absolutamente caricatural. O argumento é bom contra Kant, mas não contra o holandês, assim como o argumento de Aristóteles era bom contra os sofistas de Atenas, mas não contra os teólogos calvinistas. Crampton visivelmente não tem grande talento filosófico e vive de fazer associações pueris e sem sentido.)


Isso nos leva a outro aspecto importante da argumentação de Crampton: essa insensibilidade tem como consequência direta a incapacidade de dissociar os teólogos reformados conservadores (ou ortodoxos, como os chama) dos neo-ortodoxos, que são a contraparte pós-moderna do liberalismo teológico racionalista clássico. Crampton sabe que os conservadores atribuem à Bíblia o status de infalível Palavra de Deus, que aceitam o caráter proposicional da revelação bíblica, de modo que não podem aceitar nenhuma forma de agnosticismo, e tampouco idolatram a contradição e o paradoxo como se fossem valiosos em si mesmos. Ainda assim, como vimos, ele atribui a aceitação do paradoxo nas Escrituras por parte desses teólogos a uma influência da
"epistemologia dialética da neo-ortodoxia". Convém que busquemos entender as raízes da plausibilidade de tal associação aos olhos do autor. Mas para isso precisamos fazer um breve retrospecto e analisar novamente, sob um novo ângulo, as declarações de Crampton a respeito da Confissão de Fé de Westminster feitas no início do artigo.

Agora que já foi denunciado o modo de raciocínio "tudo ou nada" de Crampton, podemos entender melhor a razão que o levou a olhar para a Confissão e ver seu próprio rosto ali refletido, a despeito do que esta realmente dizia. Ele inferiu que a doutrina bíblica da predestinação deveria ser totalmente abarcável pela mente humana a partir da recomendação de que ela
"deve ser tratada com especial prudência e cuidado" por homens que buscam "a vontade de Deus [como] revelada em sua Palavra". Para Crampton, em outras palavras, se a doutrina em questão foi revelada por Deus, e se podemos tratá-la com prudência e cuidado, deve ser porque ela é totalmente compreensível à mente humana. Agora estamos em condições de entender melhor esse non sequitur: segundo Crampton, se algo não é compreensível em sua totalidade, só pode ser porque toda afirmação é equivalente ao seu contrário e as leis da lógica não valem nada. Uma vez que sequer lhe passou pela cabeça a hipótese de que uma doutrina pode ser compreendida em parte, ou até certo ponto, mas não de todo, sua obtusidade o levou a inferir, segundo as leis de sua lógica particular, algo que não estava no texto da Confissão. Tampouco lhe ocorreu que a impossibilidade de se abarcar plenamente essa doutrina é justamente a razão que levou os autores da Confissão a recomendar "especial prudência e cuidado" com relação ao assunto.

A importância desse equívoco não pode ser menosprezada nesta altura da discussão, e é por isso que eu trouxe de volta o conteúdo da Confissão neste ponto. Pois a acusação de Crampton de que os teólogos conservadores devem sua aceitação do paradoxo à neo-ortodoxia requer, dentre outras coisas, um fundamento histórico. Crampton precisa sustentar que não havia indícios de tal coisa no meio reformado conservador antes do advento da teologia neo-ortodoxa. Assim, ele pode ocupar confortavelmente sua posição de defensor da autêntica tradição reformada contra as inovações heréticas do século XX. Porém, se for provado que era diverso do seu o espírito dos teólogos puritanos do século XVII, anteriores não só à neo-ortodoxia, mas até ao iluminismo e ao liberalismo teológico, suas afirmações perderão de imediato toda credibilidade, e ele aparecerá como o verdadeiro inovador. Nesse caso, teremos boa razão para sair em busca das fontes espúrias onde ele foi buscar sua própria inovação. Visto que indiquei no primeiro post, com base na Confissão, evidências de que a situação é exatamente essa, encarregar-me-ei dessa tarefa no próximo post, em meio a outras considerações.

31 de outubro de 2010

O direito ao mistério - parte 1

Hoje é dia de eleições presidenciais e a Reforma completa 493 anos de existência. Mas não vou falar sobre nenhum dos dois assuntos, muito embora o de hoje tenha alguma relação com o segundo tema. Ontem à noite minha esposa me mostrou um artigo que recebeu por e-mail, e nós o lemos juntos. Fiquei suficientemente impressionado para dedicar a ele esta breve análise. O texto é de W. Gary Crampton, está disponível neste endereço e seu título é uma interrogação: A Bíblia contém paradoxo?. É um pdf de apenas cinco páginas. Recomendo aos interessados que o leiam, de preferência antes de prosseguir com a leitura deste meu post, para que possam aprovar ou condenar minha análise com propriedade. Contudo, não acho justo exigir de meus leitores que leiam dois textos, uma vez que vieram aqui esperando ler no máximo um. Por isso, na medida do possível, esforçar-me-ei para transmitir de modo fidedigno e completo os pontos essenciais do artigo em questão.

Crampton dá início ao artigo citando e endossando a distinção feita por Kenneth Kantzer entre paradoxos retóricos e paradoxos lógicos. A existência da primeira classe de paradoxos na Bíblia é ponto pacífico, mas Crampton dedica o restante do artigo a refutar a ideia da existência de paradoxos do segundo tipo no texto sagrado. Ele se queixa, a respeito de declarações em contrário, de que "mui frequentemente tais comentários são ouvidos dentro do campo da ortodoxia", citando como exemplos teólogos reformados de renome como Edwin Palmer, J. I. Packer e Cornelius Van Til. E lança então seu primeiro argumento: "Deus nos fala em tal linguagem? Ele é o autor do paradoxo lógico? Não, diz o apóstolo Paulo, 'Deus não é o autor de confusão' (1 Coríntios 14.33)."

Aqui Crampton cometeu seu primeiro deslize, e de não pouca importância. O texto de onde foi retirada a citação do apóstolo não fala de confusão lógica, e sim de confusão litúrgica. Paulo está dando instruções para combater a desordem no culto, evitando a balbúrdia decorrente do uso desenfreado do dom de línguas, profecias e interpretações que se instalara na igreja de Corinto. Paulo ensina que devem falar um de cada vez, e que "Os espíritos dos profetas estão sujeitos aos próprios profetas; porque Deus não é de confusão e sim de paz". Extrair daí uma lição sobre a existência ou não de elementos obscuros nas obras de Deus em geral (e de paradoxos lógicos nas Escrituras em particular) é desprezar uma das regras fundamentais da hermenêutica, que é a atenção ao contexto. Crampton começou, pois, dando ensejo a dúvidas sobre sua capacidade como exegeta.

O argumento seguinte do autor consiste em dizer, endossando uma afirmação de Gordon Clark, que é puramente subjetiva a opinião de que determinada questão é um paradoxo. Ele afirma, por exemplo, que a tensão entre a soberania de Deus e a responsabilidade do homem, que parece paradoxal a vários teólogos reformados, não parece assim a John Gerstner, que escreveu: "Nós não vemos por que é impossível para Deus predestinar que um ato aconteça por meio da escolha deliberada de indivíduos específicos". Devemos recordar que nenhum dos teólogos até agora criticados por Crampton, que são todos calvinistas, nega que tal coisa seja possível a Deus. Apenas negam compreender como Deus faz isso, o que não é a mesma coisa. Se Gerstner ou outro qualquer acredita ter a solução para o enigma (sei que Clark, por exemplo, acreditava), não vejo problema algum. Mas vou descrever uma situação pela qual certamente muitos leitores já passaram: alguém propõe uma questão difícil - pode ser uma charada numa roda de amigos ou uma questão numa lista de exercícios na escola - que deixa todos os presentes quebrando a cabeça, até que chega alguém e anuncia que a solução, na verdade, é muito fácil e não oferece dificuldade alguma. Em alguns casos esse é de fato o caso, e os outros, depois de ouvir a solução, ficam tentando descobrir como não pensaram nela antes. Mas em muitos outros casos a solução proposta apenas evidencia aos demais presentes que seu autor não chegou a compreender bem a natureza do problema.

Quem garante que não é esse o caso de Gerstner ou Clark? A única maneira de solucionar a dúvida seria expor as soluções disponíveis e colocá-las em debate. Mas Crampton não faz isso, pois não é esse seu objetivo. Ele não está interessado em provar que as soluções racionais existem (o que seria a única maneira válida de mostrar que não há paradoxos lógicos na Bíblia), e sim em condenar de antemão os que, por uma razão qualquer, não se satisfazem com as soluções existentes. Parece-me um procedimento flagrantemente injusto. De qualquer forma, se Crampton julga subjetiva a afirmação de que algo é um paradoxo, respondo trazendo à luz o corolário dessa afirmação: a negação de que algo é um paradoxo também é subjetiva, ao menos até que a candidata a solução seja trazida ao debate. Não há objetividade alguma enquanto a conversa ficar no "é, sim" contra o "não é, não". E se o assunto é debatível - como parece que é, já que estamos falando da validade de soluções racionais para um possível paradoxo - é porque não é tão subjetivo assim.

Logo depois de citar Gerstner, nosso autor prossegue dizendo que o assunto da soberania divina e da responsabilidade humana também não era um paradoxo para os teólogos de Westminster, e passa a citar o trecho da Confissão que diz que "Deus, desde toda a eternidade, pelo muito sábio e santo conselho de sua própria vontade, ordenou livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas". Não é difícil perceber, no entanto, que essa passagem se limita a afirmar essa verdade, nada declarando sobre se os meios de sua concretização são ou não compreensíveis à mente humana. Para demonstrar o que diz, Crampton faz referência a outra parte da Confissão: "A doutrina pode ser um 'alto mistério' (isto é, difícil de plena compreensão), mas não é de forma alguma paradoxal (isto é, impossível de ser reconciliada), diz Westminster (III, 8)". Porém, Crampton só cita pequenos trechos da seção 8 do capítulo III, que não bastam para informar o leitor sobre o conteúdo desse trecho, de modo que o transcrevo aqui integralmente:

"A doutrina deste alto mistério de predestinação deve ser tratada com especial prudência e cuidado, a fim de que os homens, atendendo à vontade de Deus, revelada em sua Palavra, e prestando obediência a ela, possam, pela evidência de sua vocação eficaz, certificar-se de sua eterna eleição. Assim, a todos os que sinceramente obedecem ao Evangelho, esta doutrina fornece motivo de louvor, reverência e admiração para com Deus, bem como de humildade, diligência e abundante consolação."

Em qual parte da seção acima Crampton encontrou a prova de que os teólogos de Westminster não viam paradoxo nessa questão reconhecidamente complicada? Parece que em parte alguma, pois ele se viu obrigado a complementar o conteúdo da Confissão com uma sentença de sua própria lavra, nos seguintes termos: "Isso certamente não seria possível com qualquer doutrina que não possa ser reconciliada pela mente do homem". A Confissão nao diz isso em lugar nenhum, evidentemente. É Crampton quem crê na impossibilidade de tratar "com especial prudência e cuidado" alguma coisa que extrapola os limites de sua razão. Os teólogos de Westminster não só não dizem nada sobre esse assunto, mas também dão mostras de pensar de maneira diversa, já que, entre as referências bíblicas apontadas por eles em apoio ao conteúdo da seção 8 do capítulo III, existem duas que falam claramente acerca dos limites da mente humana: "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus? Porventura, pode o objeto perguntar àquele que o fez: por que me fizeste assim?" (Romanos 9.20) e "As coisas encobertas pertencem ao Senhor nosso Deus; porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" (Deuteronômio 29.29).

É desnecessário dizer que não é citada nenhuma passagem bíblica sobre a importância de uma compreensão racional exaustiva das doutrinas reveladas nas Escrituras. Os teólogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relação ao assunto da predestinação, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua própria eleição e ver nessa doutrina motivo de louvor, reverência, admiração, humildade, diligência e consolo. O resto é invenção da cabeça de Crampton, que, além de mau exegeta, acaba de demonstrar que também não é bom leitor, já que não é capaz de distinguir entre seu próprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histórico que tem diante dos olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinação antes de dar louvores a Deus, se essa compreensão se lhe afigura um requisito para tributar a Deus aquilo que a Confissão prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os teólogos de Westminster deram sinais de não precisar disso para ter uma atitude correta diante de Deus.

Até aqui analisei apenas os seis parágrafos iniciais do texto de Crampton. O restante fica para um post futuro, que deverá ser publicado tão logo eu tenha tempo de escrevê-lo. Apenas adianto que ainda não cheguei ao fundo do problema.

30 de setembro de 2010

O futuro do pretérito

Não sou leitor assíduo de ficção científica, mas ocasionalmente faço minhas incursões por esse campo. Uma das obras de que mais gostei nesse gênero foi Contato, escrita pelo famoso astrônomo Carl Sagan e publicada em 1985. A narrativa envolve um contato com alienígenas distantes mediado por ondas eletromagnéticas, através das quais os ETs enviam instruções para a construção de uma máquina de tecnologia avançadíssima. O custo total fica em trilhões de dólares, e o mundo todo se mobiliza em parcerias para levar a cabo o projeto extraterrestre. É nesse contexto que se insere o trecho a seguir, em que o narrador explica a razão pela qual a União Soviética não foi capaz de cumprir a contento algumas de suas atribuições:

"Na verdade, os soviéticos vinham enfrentando mais dificuldades na construção da Máquina do que se imaginava no Ocidente. Utilizando a Mensagem decodificada, o Ministério da Indústria Meio-Pesada fez consideráveis progressos na extração de minério, metalurgia, máquinas-ferramentas, etc.. Os novos campos da microeletrônica e da cibernética apresentaram maiores dificuldades, e a maioria desses componentes era produzida para os soviéticos, por empreitada, na Europa e no Japão. Mais difícil ainda para a indústria nacional soviética foi a parte de química orgânica, que dependia fortemente de técnicas desenvolvidas na área da biologia molecular. A genética soviética sofrera um golpe quase fatal quando, na década de 30, Stálin decidira que a moderna genética mendeliana era inadequada do ponto de vista ideológico, promulgando, por decreto, a ortodoxia científica da teoria amalucada de um agricultor politizado, Trofim Lysenko. Duas gerações de brilhantes estudantes soviéticos nada haviam aprendido de importante sobre os fundamentos da hereditariedade. Agora, sessenta anos depois, a biologia molecular e a engenharia genética estavam relativamente atrasadas na URSS; os cientistas soviéticos tinham contribuído com poucas descobertas importantes nessa área. Coisa semelhante quase aconteceu nos Estados Unidos, onde, por motivos teológicos, tentara-se fazer com que os alunos das escolas públicas não estudassem o evolucionismo, o princípio básico da biologia moderna. O litígio era claro, pois uma interpretação fundamentalista da Bíblia era tida como contrária ao processo evolutivo. Felizmente para a biologia molecular americana, os fundamentalistas não tinham, nos Estados Unidos, tanta força quanto tivera Stálin na União Soviética."


Há um enorme equívoco em descrever os movimentos criacionistas americanos como opostos ao ensino da evolução, uma vez que eles lutaram apenas pelo direito de expor ao lado dela sua teoria sobre a criação. É um equívoco igualmente grande supor que os criacionistas, assim como os "fundamentalistas" em geral, tenham "quase" conseguido alguma coisa, ao invés de ser acuados de todos os lados, como têm sido desde sempre. E não creio que Sagan fosse mal informado o suficiente para ignorar tudo isso. Não obstante, o fundo histórico aludido no trecho acima é verídico: Lysenko persuadiu o governo soviético de que a genética mendeliana era contrária ao materialismo dialético. Em decorrência disso, não apenas o desenvolvimento científico nessa área foi prejudicado, mas também o foi a agricultura do país, que estava sob responsabilidade do próprio Lysenko. O caso tornou-se proverbial no meio acadêmico científico como ilustração do fato de que os pressupostos ideológicos são nocivos ao progresso da ciência.


A União Soviética acabou bem mais depressa do que Sagan poderia ter previsto em 1985, de modo que ele deve ser perdoado por mantê-la de pé em seu romance levemente futurista. Em sua opinião, contudo, permaneceu intocada a validade da aplicação que ele fez da lição implicada nesse caso: o questionamento à teoria da evolução pelos "fundamentalistas" é tão pernicioso quanto o desprezo devotado por Lysenko às leis mendelianas da hereditariedade. A mesma comparação, quase com as mesmas palavras, apareceu num livro posterior e bem mais dissertativo de Sagan, O mundo assombrado pelos demônios, obra que pode ser, conforme o ponto de vista, tanto um manual de ceticismo quanto de credulidade.


É fácil entender os motivos de Sagan para ver tamanha semelhança entre os dois casos. Em sua opinião, o evolucionismo é "o princípio básico da biologia moderna". Além disso, existe uma crença, muito difundida nos meios cultos e pseudocultos, que vê na genética e na biologia molecular as principais provas do processo evolutivo. Sagan evidentemente endossa esse ponto de vista. Estabelecidas as premissas nesses termos, a conclusão é inevitável: sem aderir ao princípio básico, ninguém pode conhecer nada sobre a disciplina em questão. Alguns cientistas evolucionistas costumam comparar a teoria de Darwin à mecânica de Newton quanto ao papel de princípio unificador, sem o qual restam apenas fatos isolados que não podem ser devidamente compreendidos. A associação que muitos fazem entre o "criacionismo científico" e o "socialismo científico", ambos os quais alegam dispor de fundamentos científicos sem que, no entanto, a maior parte da comunidade científica lhes atribua esse mérito, basta para completar o quadro, convencendo muitos leitores de Sagan de que meia dúzia de caipiras crentes reunidos para estudar a Bíblia numa aldeia do interior são tão perigosos para o mundo quanto uma Internacional Socialista.


Mas será verdade que a bioquímica e a biologia molecular dependem tanto assim da teoria evolucionária? Essa pergunta foi respondida em 1996, apenas um ano depois que Sagan republicou seu argumento pretensamente fulminante contra o criacionismo, pelo bioquímico Michael Behe em seu livro A caixa preta de Darwin, cujo objetivo principal é justamente demonstrar a ineficiência da explicação evolucionária nesses campos. Diz Behe:


"A fim de compreender os sucessos do darwinismo como ortodoxia e seu fracasso como ciência no nível molecular, temos de examinar os livros didáticos utilizados pelos aspirantes a cientistas. Um dos mais populares textos de bioquímica das últimas décadas foi escrito em 1970 por Albert Lehninger, professor de biofísica da Johns Hopkins University, tendo sido atualizado ao longo dos anos. Na primeira página do primeiro capítulo de seu primeiro livro, Lehninger menciona a evolução. Pergunta por que as biomoléculas, que existem em quase todas as células, parecem extraordinariamente bem adaptadas às suas tarefas. [...] Lehninger, um excelente professor, estava passando a seus estudantes a visão de mundo dos bioquímicos - que a evolução é importante para compreender bioquímica, que é um de dois 'pontos de vista' apenas, a partir dos quais devemos estudar as moléculas da vida. Embora um estudante imaturo possa aceitar a palavra de Lehninger, um observador imparcial procuraria evidências da importância da evolução para o estudo da bioquímica. Um lugar excelente para começar é o índice do livro. Lehninger fornece um índice muito detalhado, a fim de ajudar os estudantes a localizar informações prontamente. Muitos dos tópicos do índice possuem entradas múltiplas, uma vez que devem ser estudados em vários contextos. Os ribossomos, por exemplo, contam com vinte e uma entradas no índice da primeira edição de Lehninger; a fotossíntese, com vinte e seis; a bactéria E. coli, com quarenta e duas; e sob 'proteínas' há setenta referências. No total, há quase seis mil entradas no índice, mas apenas duas sob o título 'evolução'. [...] Com apenas duas entradas em seis mil, o conselho professoral de Lehninger a seus alunos sobre a importância da evolução para seus estudos é desmentido pelo índice. Nele, Lehninger incluiu quase tudo o que era relevante para a bioquímica. Ao que parece, porém, a evolução raramente é tópico relevante."


Behe prossegue apresentando uma tabela que mostra o número de entradas sobre evolução em trinta edições de dezesseis livros, publicados entre 1970 e 1995. A evolução está inteiramente ausente de treze delas, e outras sete possuem de uma a três entradas com essa palavra. O número máximo de ocorrências aparece numa edição posterior do próprio Lehninger: vinte e duas em oito mil. É muito pouco para um princípio unificador importantíssimo sem o qual não se pode entender nada. É por esse tipo de coisa que considero Carl Sagan um ótimo exemplo de um sujeito extremamente crédulo, e suas tentativas de parecer (ou ser) cético só o tornam mais divertido. E seus juízos sobre temas científicos que envolvem religião só valem alguma coisa no mundo ficcional criado por ele mesmo, o qual ele nem sempre era capaz de distinguir da realidade.

26 de agosto de 2010

Aventuras no berço do Ocidente - parte 9

O maior aperto que passei em terras francesas ocorreu unicamente por minha falta de competência para lidar com alguns dos elementos práticos mais básicos da vida. Passei a primeira semana numa pequena casa vizinha à do professor Yves, que gentilmente me dava carona até a universidade e de lá para casa. Depois disso, "mudei-me" para um quarto vago no apartamento da Caroline, amiga do professor Stéphane. Cheguei num domingo à noite, se não me engano, ao seu apartamento, situado no terceiro andar do edifício Le Toucan. Fui muito bem recebido, mas as caronas acabaram e passei a ir para o campus de ônibus. Mui solicitamente, Caroline me levou até o ponto na manhã seguinte, me disse qual linha eu deveria tomar e me deu o número de seu celular, para o caso de eu precisar de algo.

Trabalhei o dia todo, e naquele dia fiquei até mais tarde, tendo saído do laboratório por volta das 20h. Chegando ao ponto, descobri que o último ônibus da linha que eu deveria tomar passara 15min antes. Meu primeiro deslize: não olhei a tabela dos horários de ônibus pela manhã, tendo pressuposto que todas as linhas funcionariam até umas 23h, como em minha cidade do interior paulista. O segundo deslize eu só descobri dois dias depois: do lado oposto do campus existia um ponto pelo qual ainda passaria outro ônibus que me deixaria perto de meu lar temporário. Mas não me informei sobre isso também.

Eu não sabia se existiam táxis funcionando nas redondezas, nem como chamar um por telefone. A solução era ir a pé. Porém, a casa ficava em outra cidade. Eu já viera de Toulon a La Garde a pé, tendo gasto três horas, como já contei. Porém, não me animei com a ideia de fazer o mesmo caminho. Ele era bem complicado; talvez eu não fosse capaz de reconhecer à noite os locais por onde passara durante o dia; e eu estava ainda na outra casa quando o percorri, e não saberia, de qualquer modo, ir da antiga moradia à nova. Decidi, portanto, fazer um caminho que sabia ser mais curto e menos cheio de curvas: o caminho do ônibus que me levara à universidade pela manhã.

Mais tarde, lamentei essa decisão. O problema começou porque o ônibus fazia boa parte do trajeto em uma rodovia. Evidentemente, não era um lugar muito seguro para se caminhar. Porém, eu esperava poder acompanhar a rodovia andando pelas ruas vizinhas, e assim fui. Com o tempo, percebi que isso era impossível, dada a quase inexistência de ruas retilíneas naquela parte do mundo, como já tive oportunidade de ressaltar. Cada rua que eu tomava na esperança de poder acompanhar a rodovia vizinha logo se desviava de um modo que tornava difícil ou impossível cumprir meu intento. Várias vezes tive de voltar e tentar outro caminho, ou fui em frente e me perdi para só reencontrar a rodovia meia hora mais tarde e descobrir que avançara muito pouco. Toulon não era muito distante de La Garde, mas acabei, em vista de tudo isso, gastando três horas para chegar ao centro, coisa que eu esperara fazer em apenas uma hora.

Então surgiu outro problema. O lugar me parecia familiar. Eu sabia que passara de ônibus por ali e que não estava muito longe de "casa". Mas eu não tinha o endereço, e tampouco me preocupara em memorizar o caminho ou pontos de referência: precauções desprezadas por minha inépcia, mais uma vez. Só lembrava que o Le Toucan ficava próximo ao prédio da Securité Sociale. Eu tinha o número da Caroline, mas não tinha um cartão telefônico e não sabia onde comprá-lo. Na verdade, parecia-me impossível obter um, já que o comércio estava todo fechado. As ruas estavam quase desertas, mas encontrei numa esquina dois sujeitos que conversavam animadamente. Eram pobres pelos padrões do país e, como muitos franceses daquela região provençal, tinham um jeito que os fazia parecer italianos. Trataram-me com muita paciência e amabilidade, e com muito esforço consegui levá-los a entender que desejava comprar um cartão telefônico (eles não sabiam onde ficava o edifício, ou não entenderam minha pergunta). Explicaram-me como chegar a uma loja ainda aberta. Eu agradeci e fui andando na direção indicada. Não era difícil: bastava virar a terceira rua à esquerda. Mas os dois ficaram com medo de eu não ter entendido, de modo que, um minuto depois de haver me ausentado de sua companhia, fui alcançado por um deles, que decidiu me acompanhar até o local. Era mais uma prova da bondade do povo francês do sul. Meu guia se despediu de mim na entrada da loja, onde comprei o cartão. Mas, chegando à cabine telefônica mais próxima, descobri que o celular da Caroline estava desligado. E eu não tinha o telefone de mais ninguém naquele país; outro fruto de minha incompetência.

Sabendo que Le Toucan não estava longe, comecei a andar à sua procura. Acabei encontrando outros locais por onde já passara em meus passeios, em especial nos arredores da praça central. Ali encontrei uma placa indicando que o local continha um ponto de táxi. E, exatamente sob a placa, um banco de taxistas; e, sobre o banco, um sujeito sentado. Abordei-o, e descobri que falava inglês. Ele teve alguma dificuldade para entender aonde eu desejava ir, mas enfim disse que me levaria até lá por quarenta euros. Eu fora informado de que os táxis são caros na França, e eram mais de 23h, mas o sujeito visivelmente queria se aproveitar de minha péssima situação, já que o edifício procurado não poderia estar a mais de 2km dali. "É natural", pensei, e estava, em princípio, disposto a aceitar a exploração. Mas eu estava desconfiado, por vários motivos. O primeiro era que, pelas reações do homem, eu não estava muito convencido de que ele de fato sabia onde ficava o Le Toucan. O segundo era que a placa acima de nós dizia que o serviço de táxi só funcionava até as 20h. Será que o homem era taxista mesmo? O terceiro motivo reforçava minha desconfiança: não havia táxi algum nas redondezas. Eu disse que lhe daria os quarenta euros se ele me levasse até o Le Toucan. Ele queria pagamento adiantado. Minha suspeita aumentou. Perguntei-lhe onde estava seu carro. Ele disse que estava logo ali. Convidei-o a me levar até o carro. Ele respondeu que eu poderia esperar ali mesmo, pois ele buscaria o carro. Eu concordei e lhe disse que fosse buscar o carro. Mas ele queria que eu desse o dinheiro antes. Isso foi demais para mim. Agradeci-lhe a gentileza e disse que encontraria o lugar sozinho. Eu sou bobo, mas tudo tem limite.

Depois dessa que foi a coisa mais parecida com uma tentativa de assalto que experimentei naquele país, perambulei pelas redondezas por quase uma hora, mas sem sucesso. Estava exausto, faminto, sujo, irritado, abatido, com os pés doendo e xingando a mim mesmo constantemente por ser tão distraído e desprevenido. Dois pensamentos me ocorriam regularmente. O primeiro era o de dormir na praça. Seria minha primeira noite ao relento na vida, mas não estava frio, não havia perigo de violência e talvez não fosse tão desconfortável assim. O segundo era o de pedir a Deus que interviesse para me ajudar a resolver a situação. Mas eu sempre recuava diante da ideia, pois me parecia um atrevimento. Eu estava naquela situação por minha própria culpa, e não me sentia no direito de incomodar Deus. Ainda mais em se tratando de coisa tão pequena: que importância haveria em evitar uma noite ao relento numa praça limpa, numa noite fresca e sem perigo algum de qualquer espécie? Um teto e uma cama pareciam-me, naquele momento, uma espécie de luxo, e eu nunca gostara de pedir ou esperar luxo algum. Portanto, eu achava que a melhor coisa a fazer era aceitar meu castigo e aprender a lição com resignação.

Foi assim que completei minha quarta hora na rua. Decidi fazer uma última tentativa entrando por uma das ruas. Mas avancei cerca de três quarteirões e logo me convenci de que jamais estivera naquele lado da cidade. Profundamente desanimado, elevei a Deus uma curta oração, num tom de quem espera levar uma bronca por interromper algo importante para tratar de algo insignificante: "Bem, Pai, se o Senhor pretende fazer algo para me tirar dessa stiuação, a hora é esta". Nada aconteceu, e não fiquei nada surpreso com isso. Fiz meia-volta e comecei a me dirigir à praça, que ficava a uns 500m dali, já conformado com o que me aguardava.

Fiz o que me pareceu ser o caminho de volta, mas não saí exatamente no ponto onde achei que sairia. Era só o que faltava: temi que nem a praça eu conseguiria encontrar mais. Eu provavelmente viera por outra rua. Mas não importava: indo numa dada direção, pensei, certamente sairia na avenida que leva à praça, ainda que mais longe dela do que supusera. E de fato cheguei à avenida, mas vindo de um ângulo inteiramente inédito. Do outro lado dela vi a cruz da torre de uma igreja, que passara de todo despercebida até então. De súbito, lembrei-me vagamente de ter passado por uma igreja na manhã anterior, quando me encaminhava para o ponto de ônibus. Esperançoso, entrei naquela rua. No quarteirão seguinte, vi o prédio dos correios pelo qual também havia passado. E, pouco à frente, o enorme estacionamento do prédio da Securité Sociale, cercado de vários condomínios. Um deles era o Le Toucan, que logo localizei. Dez minutos depois de ter feito aquela patética oração, e sem ter me desviado do caminho uma única vez, eu estava entrando no meu quarto. Em meio à minha exausta alegria, palavras em francês brotaram espontaneamente de meus lábios: "Merci beaucoup, Senhor!"

Ao contar essa história, não tenho expectativa nenhuma de convencer algum cético da realidade do cuidado de Deus por mim. A importância do episódio só pode ser apreendida à luz de todo o restante de minha vida; e, por isso mesmo, não vejo como alguém poderia apreendê-lo tão bem quanto eu, uma vez que a mensagem foi dirigida justamente a mim, e sua importância vai muito além de qualquer coisa que uma cama e um teto possam representar por si mesmos. O ocorrido é um símbolo de toda a minha vida; mas não só porque foi a cruz de Cristo que me colocou no caminho certo, que minha incapacidade inata me impedira de encontrar por meu próprio esforço. E não só porque o encontro com a cruz representou o fim de toda consideração de meus méritos. Mas também porque ela me apresentou um Deus gracioso não só no essencial, mas também no secundário. Um Deus que não liga para meu ascetismo barato e pessimista. Ou, dizendo mais precisamente, que liga, já que decidiu me livrar dele.

Constatei naquela noite que havia algo profundamente errado em minha concepção de Deus. Minha visão da vida neste mundo - refiro-me à vida do cristão regenerado - dava pouco espaço à ideia da antecipação da glória futura e muito aos resquícios do inferno precedente. Ou, dizendo de outra maneira, dava muito espaço ao poder santificador do sofrimento e pouco ao da autêntica alegria. O efeito disso foi um pessimismo profundamente enraizado quanto aos assuntos deste mundo, uma constante expectativa de que tudo passaria a dar errado a qualquer momento, expectativa que se tornava quase uma convicção de que é assim que as coisas funcionam - a ponto de eu muito me espantar cada vez que algo importante dava certo em minha vida. Aconteceu isso quando passei no vestibular, quando consegui a bolsa de iniciação científica, quando consegui estágio, quando entrei no mestrado, quando foi aprovada a própria viagem à França. O curioso é que sempre fui muito abençoado por Deus em tudo o que fiz. Mas os fatos não bastaram para me convencer de que eu estava errado. Naquela noite, a misericórdia de Deus me ensinou uma lição que sua severidade não poderia ter ensinado. Deus me convenceu de que havia pecado em mim: uma parte de meu ser ainda não fora tocada pela alegria de ser filho de Deus, e continuava cedendo constantemente à tentação da religião fria, sisuda e ingrata.

Em boa hora Deus me deu esse puxão de orelha, pois ele estava me preparando para aceitar com a devida gratidão e confiança a maior bênção de todas - exceção feita, é claro, à própria salvação. Uma semana depois de voltar ao Brasil, comecei a namorar a Norma. Também em boa hora conto tudo isso no blog, nesta que é minha centésima postagem. A mudança vai muito além do acréscimo de um algarismo. Casamo-nos no último dia 31, e portanto este é o primeiro post que faço já casado. Nosso relacionamento foi, desde o começo, o mais poderoso instrumento já usado por Deus, não só para minha santificação, mas também para minha alegria. Hoje vejo que não há coincidência alguma nessa associação entre as duas coisas. Em nossa cerimônia, o pregador (o pastor Orebe) leu o texto bíblico que diz que "O que acha uma esposa acha o bem e alcançou a benvolência do Senhor" (Provérbios 18.22). Sem aquelas quatro horas perdido num recanto da Europa, talvez eu tivesse dificuldade para apreender plenamente o tamanho dessa benevolência da qual fui alvo recentemente. Durante certa fase de minha vida, considerei que uma esposa também fosse um luxo. Hoje me arrependo de ter subestimado os planos de Deus. O propósito desta postagem não é romântico, mas não posso deixar de dizer que a vida e a companhia da Norma me enchem da mais vibrante alegria e da mais humilde gratidão a Deus, de quem aprendi a receber graciosamente bênçãos que superam todas as minhas expectativas.

19 de julho de 2010

O pacificador de torcidas

Li no início deste ano o livro O grande jogo: política, cultura e ideias em tempo de barbárie, uma coleção de artigos do geógrafo Demétrio Magnoli sobre os mais variados temas relacionados à política contemporânea, nacional e internacional. Um dos temas recorrentes é a relação entre o islamismo e o Ocidente. Não sou um grande entendido do assunto, mas as posições de Magnoli são suficientemente reveladoras para merecer um comentário.

A essência da questão pode ser captada num artigo chamado Declaração de guerra, na qual Magnoli tece críticas à administração Bush por sua luta contra o terrorismo. Segundo ele, o então presidente americano estaria caindo na armadilha de Osama bin Laden, cujo objetivo foi mesmo o de acirrar as animosidades entre os muçulmanos e os ocidentais. Para Magnoli, não existe inimizade intrínseca entre os dois grupos, exceto na cabeça de uns poucos extremistas, como o já mencionado terrorista, e de intelectuais simplistas como Samuel Huntington, cujo célebre livro O choque de civilizações popularizou a crença nessa mesma inimizade. Ao reagir da forma como reagiu aos ataques do 11 de setembro, Bush teria dado munição à minoritária vertente antiocidental do Islam, ajudando a transformar em realidade o equívoco do choque de civilizações.

De minha perspectiva, a crítica à ideia da "guerra ao terrorismo" parece de todo correta: sendo o terror um meio de ação, e não um inimigo bem definido, a tentativa de extirpá-lo da face da Terra está condenada de antemão ao fracasso. Mas se a administração Bush resolveu falar em "guerra ao terror" em vez de "guerra ao islamismo", deve ter sido justamente porque desejava evitar, ao menos para fins publicitários, a ideia do choque de civilizações ou da hostilidade a uma religião enquanto tal - coisa que o próprio Magnoli admite em outra parte. Creio que Olavo de Carvalho estava certo ao dizer que a correta identificação do inimigo a ser combatido teria tornado Bush vulnerável à crítica (infundada, por sinal) de crer em teorias conspiratórias. O que, no entanto, de modo algum justifica a atitude do ex-presidente do EUA, segundo meu ponto de vista.

Seja como for, há pessoas mais qualificadas para as tarefas de justificar ou condenar a América, Bush, o Islam ou Bin Laden. Não desejo esconder minha posição: tenho simpatias moderadas pela primeira, reduzidas pelo segundo, ainda menores pelo terceiro e nulas pelo último. Mas meu intento neste post é chamar a atenção para um dos pontos mais tenazmente defendidos por Magnoli em vários artigos, e sob aspectos diversos: para ele, à parte de uns poucos malucos como George W. Bush, Samuel Huntington e Osama bin Laden, não há motivo algum para imaginarmos a existência de um conflito essencial entre o Islam e o Ocidente.

No artigo Por um diálogo entre o Ocidente e o Islam, escrito em coautoria com Elaine Barbosa, Magnoli apresenta o argumento em defesa de seu ponto de vista. Consiste em listar uma porção de eminentes intelectuais e políticos muçulmanos que, desde o século XIX, tentaram abrir espaço no mundo islâmico para a ciência ocidental, o direito ocidental (em substituição à shari'a), o liberalismo político, a democracia, o laicismo e os princípios que Magnoli atribui à Reforma Protestante e ao iluminismo. Tudo isso, diz o geógrafo, deve servir como incentivo ao diálogo mencionado no título. Segundo ele, "entre árabes e muçulmanos há incontáveis interessados nesse diálogo e há uma tradição modernista que resiste ao fundamentalismo. Os obstáculos são o ruído ensurdecedor das bombas e a humilhação da ocupação."

É claro que não endosso todos os valores ocidentais mencionados por Magnoli, e não é meu objetivo decidir se é bom ou não que haja muçulmanos interessados em difundir esses valores em suas respectivas sociedades. Aliás, concordo com o autor quando ele critica a ingenuidade dos neoconservadores americanos, que pensaram ser possível, por meio da força bruta, enfiar a democracia numa cultura que não possui tradição democrática. Porém, o ponto para o qual desejo chamar a atenção é o salto lógico proposto por Magnoli: para ele, o simples fato de haver no mundo islâmico um número razoável de pessoas simpáticas ao Ocidente (seja lá o que for que isso signifique) é prova de que, em si mesmas, a religião islâmica e as culturas moldadas por ela não possuem nenhum elemento que permita considerá-las intrinsecamente antiocidentais. E se assim não parece a alguns, diz ele, só pode ser porque "o Ocidente enxerga o Islam pelas lentes do preconceito". O salto lógico a que me refiro é simples. Certamente é verdade que existem não poucos muçulmanos pró-ocidentais. Mas isso em nada ajuda quando se trata de saber o que é o islamismo em si. Talvez ele seja de fato amplo o suficiente em seus princípios fundamentais de modo a poder abrigar com igual conforto os amigos e os inimigos do Ocidente, bem como os indiferentes. Mas também pode ser que o Islam seja, por natureza, contrário aos tais "valores ocidentais"; nesse caso, os muçulmanos ocidentalistas seriam, muito simplesmente, maus muçulmanos, indivíduos mais ou menos distanciados da pureza de sua religião. Magnoli não apresenta argumento algum contra essa possibilidade.

Uma falácia semelhante está por trás da tentativa, por parte do autor, de dissociar do islamismo a militância antiocidental de grupos terroristas como a Al Qaeda. Segundo ele, "o terror de Osama bin Laden e al-Zawahiri, um fenômeno pós-moderno associado à globalização e à diáspora muçulmana, deve ser interpretado como ruptura radical com o Islam histórico". Para justificar essa afirmação, é mencionada, e de modo bem superficial, uma única divergência teológica entre o terrorista saudita e o islamismo tradicional. Além disso, Magnoli enfatiza repetidamente a forte presença de ideias e métodos ocidentais nos movimentos terroristas, como neste trecho: "As atuais organizações jihadistas configuram redes horizontais amorfas, recrutam militantes por meio da internet, utilizam as tecnologias da informação e participam, clandestinamente, da ciranda financeira globalizada". Considero um tanto fraca essa última classe de razões para negar o caráter tradicional dos movimentos terroristas islâmicos (por que é que usar a internet, por exemplo, faria de alguém um mau muçulmano?). Apesar disso, de fato existem motivos melhores para justificar essa negação e afirmar que movimentos como a Al Qaeda são, no contexto islâmico, uma espécie de heresia que, embora seja antiocidental, recebeu considerável influência de ideias ocidentais - o que não é contraditório, pois todos sabemos que o Ocidente muitas vezes se opõe a si mesmo. Mas do fato de que a heresia islâmica é antiocidental não se segue automaticamente que a ortodoxia islâmica seja pró-ocidental. No entanto, o geógrafo parece desejar que tomemos esse argumento como prova suficiente de sua tese pacifista.

Por que Magnoli procede dessa forma? Creio que ele próprio fornece indícios que permitem responder a essa pergunta. Ele cita um dos maiores estudiosos ocidentais do islamismo, o inglês Bernard Lewis, o qual disse que "a doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico". Sobre isso, o geógrafo faz o seguinte comentário: "A fórmula de Bernard Lewis, cuja carga de estupidez se expressa no mito de que há um 'pensamento islâmico', parece de pouca utilidade para entender a revolta palestina contra a ocupação israelense. [...] O corolário é que cabe ao Ocidente introduzir a doutrina da liberdade entre os primitivos muçulmanos, bombardeando suas cidades para salvar suas mentes." Vários elementos importantes devem ser notados nesse trecho. Um deles é que não sei se Lewis de fato apresentou essa constatação como argumento em favor da ocupação americana do Afeganistão e do Iraque; mas, se o fez, não há nada no trecho citado que permita inferir isso. Aliás, também não é possível saber se Lewis pretendia que sua afirmação se aplicasse ao caso particularíssimo dos palestinos. Mas mesmo que decidamos dar crédito à capacidade hermenêutica de Magnoli, não vejo motivo para fazer desse caso uma refutação à afirmação do "príncipe dos orientalistas contemporâneos" (nas palavras de Magnoli), já que a liderança do movimento palestino foi amplamente influenciada por forças políticas de inspiração ocidental, como o comunismo - coisa que ninguém descobrirá lendo os artigos de Demétrio Magnoli. Mais que tudo isso, porém, chama a atenção o fato de que esse ponto é um dos raríssimos nos quais o sempre tão sereno Magnoli parece irritado, partindo para algo próximo da grosseria. O que é que Lewis disse de tão ruim, para merecer tal reação? A resposta é dada aí mesmo pelo próprio Magnoli, para quem a "estupidez" do grande islamólogo reside em sua opinião de que existe um "pensamento islâmico". Mas por que não existiria? Tudo indica que Magnoli se revolta contra a simples hipótese de existir um Islam mais puro e outro menos puro, pois nesse caso se manteria de pé a possibilidade de que os muçulmanos pró-ocidentais se enquadrem mesmo na segunda categoria. Magnoli chega a dedicar um parágrafo inteiro a essa questão, nos seguintes termos:

"A visão predominante no Ocidente continua presa aos dogmas dos orientalistas, que interpretam o Islam como uma síntese cultural e o abordam como um universo à parte da economia, da sociologia e da política dos povos muçulmanos. Essa imagem de um 'Islam essencial' sustenta uma narrativa que, mesmo recheada de 'fatos históricos', descreve o desenvolvimento das sociedades muçulmanas como um desdobramento infinito de suas origens religiosas. O impacto da era industrial, da expansão imperial das potências europeias, das circunstâncias da Guerra Fria - nada disso interessa efetivamente aos orientalistas."

Diante de tudo o que foi exposto até aqui, parece-me que Magnoli supõe enxergar esse defeito nos tais "orientalistas" apenas porque ele próprio padece do defeito oposto: no fundo, ele não está interessado no Islam enquanto religião, e não dá muita atenção ao poder da religião enquanto sustentáculo de uma civilização, enquanto formadora da mentalidade de uma imensa parcela de seres humanos. Ele só se interessa pelos acidentes históricos ou, mais precisamente, por aquilo que o Islam, puro ou impuro, pode oferecer como apoio aos ideais políticos (ocidentais, é claro) que ele considera válidos. No caso, sua intenção é a de incentivar a aliança entre a esquerda democrática e a parcela não-terrorista do Islam (que é majoritária, obviamente) contra os verdadeiros fanáticos religiosos do mundo: a direita americana. Por trás dessa crítica mordaz à suposta superficialidade dos orientalistas reside apenas a superficialidade verdadeira, um profundo desinteresse pelo que há de mais fundamental na cultura islâmica; desinteresse que se traduz em irritação contra os que se empenham em entender justamente isso, não dando bola às pragmatices momentâneas que o homem cujo espírito é de natureza política tende a considerar a coisa mais importante do mundo.

Embora se empenhe em defendê-lo contra os "preconceitos ocidentais", Magnoli não tem nenhum respeito genuíno pelo Islam. Não é à toa que, em outra parte do livro, ele defende entusiasticamente aquelas absurdas leis europeias que proíbem as mulheres muçulmanas de vestir seus hijabs em lugares públicos. Eu, que não simpatizo com essa religião, respeito-a muito mais que ele. Um homem que busca com todas as forças entender um adversário dedica-lhe, na verdade, mais respeito que um outro que, sem ter se empenhado em conhecê-lo, apressa-se em declarar em alta voz, e pelos motivos errados, que se trata de uma ótima pessoa. Magnoli é como um sujeito que entrasse num estádio de futebol numa final de Copa do Mundo e tentasse, mui seriamente, convencer ambas as torcidas de que nenhuma delas tem, na verdade, interesses contrários aos da outra. E que os poucos que insistem em negar isso são fanáticos isolados que não devem ser levados a sério. O único resultado concreto obtido por tal pacificador seria o de ser surrado com empenho por ambas as multidões. Nisso, sem dúvida, haveria um interesse comum entre elas.