30 de janeiro de 2014

Carne mortal

Quem me conhece sabe que sou um homem de muitos livros e poucos filmes. Mas hoje, creio que pela primeira vez nos sete anos de história deste blog, dedicarei um post a um filme; ou, melhor dizendo, a uma trilogia, O poderoso chefão, dirigida por Francis Ford Coppola. É um clássico, sem dúvida, mas não faz muito tempo que o assisti. Nesta postagem, apenas explicarei por que essa trilogia é um dos grandes filmes de minha vida. Tentarei fazer isso cortando os spoilers desnecessários, mas ainda assim não recomendo que o presente texto seja lido por quem não viu os filmes. Além do risco de estragar algumas surpresas, existe o de algumas coisas que digo não fazerem sentido para o leitor. Por outro lado, ficarei satisfeito se alguém, contrariando essa recomendação, se sentir incentivado pela leitura deste post a assistir os filmes.

Minha expectativa prévia era de uma história cheia de bandidos ricos e gananciosos inventando modos criativos e cruéis de matar uns aos outros e ganhar mais dinheiro. E não estava de todo enganado, é claro. Mas essa parte da história, que também pode ser encontrada em qualquer filme policial barato, não é senão o item mais desinteressante de uma trama muito mais densa, sutil e complexa. Assim como o Inferno de Dante é muito mais que uma simples lista de punições dolorosas para pecados escabrosos, a história da família Corleone é muito mais que um catálogo convencional de atrocidades da máfia. Afinal, mafiosos são seres humanos; têm um código de ética um tanto particular, é verdade, mas que não é nem poderia ser completamente diferente do que a humanidade já produziu nesse campo. Eles também têm amor à família, sentimentos religiosos e senso de justiça, fazem caridade e até possuem certa dose de lealdade nos negócios. O título do filme em português conta apenas metade da história. O título original, como no livro de Mario Puzo (que eu não li) é The Godfather [O padrinho], que remete a relações familiares, intimidade, afeição, respeito e confiabilidade.

Sim, um mafioso pode ser um padrinho. E a grande revelação do primeiro filme se dá justamente no meio de uma crise familiar. Michael é o único filho de Vito Corleone que nutre uma profunda e sincera aversão moral pelos negócios da família. No entanto, quando seu pai sofre um atentado e ninguém sabe o que fazer, é ele quem assume o comando e livra a família da enrascada. Mas não sem sujar as mãos pelo caminho. E, antes do fim do primeiro filme, ele já se tornou um mafioso muito mais perverso que o pai. O segundo filme é o menos interessante dos três, mas mostra o progresso da degeneração moral do protagonista. Como isso aconteceu? O que levou um sujeito instintivamente pacífico e correto como Michael a se tornar um mafioso dez vezes pior que seu pai? Pode parecer intrigante que o poderoso chefão seja também o padrinho. Mas me intriga muito mais o fato de que alguém que à primeira vista jamais passaria de um inofensivo padrinho tenha se tornado o poderoso chefão. Isso sem dúvida revela algo sobre as potencialidades humanas para o mal. Mas o quê?

Tais perguntas só são respondidas no terceiro filme. Não me atrevo a dizer que ele é melhor que o primeiro, mas foi o que mais me impressionou, porque é nele que as respostas aparecem, e de um modo extraordinariamente claro e pungente. Dizendo em linguagem teológica, Michael tinha um ídolo. Todo mundo tem, é claro. Um ídolo é qualquer coisa importante o suficiente para nos induzir a pecar contra Deus. O grande ídolo de Michael era a segurança da familia, e tudo o que ele queria ao entrar para o mundo do crime era protegê-la de uma grave ameaça. Com o pai correndo risco de morte e os demais filhos confusos e impotentes, Michael precisou assumir a liderança temporariamente e abrir mão de alguns de seus antigos princípios, começando por se tornar assassino e abandonar a mulher com quem pretendia se casar. Afinal, os ídolos pedem sacrifícios. E, uma vez alimentados, nunca param de pedir novos sacrifícios. Ao que parece, Michael não sabia disso e esperava no princípio que essa situação fosse provisória. Porém, as ameaças continuaram surgindo, e bem cedo ele já estava corrompido e endurecido o suficiente para não se importar mais. Ao longo do caminho, tornara-se frio, mentiroso, hipócrita e manipulador. O ponto mais baixo dessa longa queda ocorreu quando ele mandou matar um de seus próprios irmãos, coroando uma já considerável lista de óbitos encomendados.

Poderia ter sido diferente? Creio que sim, mas as motivações do protagonista são bastante compreensíveis, e não podemos deixar de nos identificar e solidarizar com ele em certa medida. O que pode ser mais justo, mais correto e até mais elevado moralmente - mais santo, caso se prefira - que o desejo de proteger a própria família, em especial quando ninguém mais está em condições de fazê-lo? Não poucos de nós fariam algo semelhante para garantir a segurança das pessoas que mais amamos neste mundo. Todos conhecemos bem o velho discurso da oposição entre egoísmo e altruísmo. A trajetória de Michael Corleone aponta para aquela área escura da vida onde esse contraste convencional deixa de fazer sentido, por ser simplista demais. Michael se sacrificou para proteger a família, e também sacrificou a família para satisfazer a si mesmo.

C. S. Lewis viu algo parecido em O grande abismo, sua divina comédia particular: viu no além uma mulher incuravelmente perdida por idolatrar o próprio filho, e a si mesma através dele. George MacDonald, que lhe servia de Virgílio, explicou: "Existe algo na afeição natural que irá levá-la até o amor eterno mais facilmente do que o apetite natural poderia ser levado. Mas há também algo nela que toma mais simples parar no nível natural e considerá-lo como sendo o celestial. O bronze é mais facilmente confundido com o ouro do que a argila. E, se finalmente recusar a conversão, a sua corrupção será maior do que a daquelas que você chamaria de paixões inferiores. Trata-se de um anjo mais forte e, portanto, quando cai, de um diabo mais selvagem." Ouvindo tal juízo sobre o amor materno, Lewis reagiu com horror: "Acho que não ousaria repetir isso na terra, senhor [...]. Afirmariam que era desumano: diriam que [eu] acreditava na depravação total; ou que estava atacando as coisas melhores e mais santas."

Eureca! Lewis, que nunca foi calvinista ao teorizar sobre teologia, o foi algumas vezes em suas agudas percepções da natureza humana (falei sobre isso aqui). Suas observações sobre o amor materno falam de depravação total. A trilogia de Coppola também, embora a atmosfera do filme seja eminentemente católica. Quando Michael conversa com o cardeal Lamberto, à beira de uma fonte, este retira uma pedra de dentro da água e lhe diz: "Olhe esta pedra. Ela está dentro d'água há muito tempo, mas a água não penetrou nela Veja. Perfeitamente seca. A mesma coisa tem acontecido aos homens na Europa. Por séculos eles têm vivido cercados pelo cristianismo, mas Cristo não penetrou. Cristo não vive dentro deles." Então é possível que uma cultura seja cristã sem que os homens o sejam. É possível santificá-la sem reconciliar os homens com Deus através de Cristo. Há uma depravação interior de natureza tal que é capaz de se acomodar até às mais piedosas circunstâncias externas, e isso em larga escala, a ponto de essa ser a tendência dominante em uma sociedade aparentemente cristã. O cardeal do filme tem toda a razão, e não conheço explicação tão boa quanto a depravação total para esse fato. "Mas todos nós somos como o imundo, e todas as nossas justiças, como trapos de imundícia; todos nós murchamos como a folha, e as nossas iniquidades, como um vento, nos arrebatam" (Isaías 64.6).

Como trapos de imundícia, e murchamos. O ídolo pede sacrifícios, e estes acabam se revelando inúteis. O poderoso chefão também fala disso ao evidenciar o insucesso de todos os esforços de Michael. A trilogia traz não só as evidências da depravação total, mas também seus efeitos. Distraído na árdua tarefa de proteger os interesses da família, Michael destruiu o casamento da irmã e o seu próprio, matou o irmão, perdeu a confiança do filho, impediu a felicidade da filha e envolveu o sobrinho em negócios escusos demais até para ele mesmo. A grande ironia da história é que o homem que atropelou meio mundo para proteger sua família experimentou um fracasso retumbante e terminou sem família alguma. Perdeu a primeira mulher em um atentado, a segunda abortou um filho seu e o abandonou, e a própria filha acabou sendo morta. A cena final da trilogia, em que Michael está bem velho e recorda três cenas pregressas, nas quais ele dança com as três mulheres que perdera, é a que melhor simboliza a triste realidade de seu inferno pessoal.

No entanto, embora este post não seja uma pregação, não desejo reproduzir o equívoco de tantos sermões que já ouvi: o de falar do pecado sem falar da graça. Na verdade, conservo a esperança de que tenha havido para Michael uma espécie de redenção. Em um momento anterior do terceiro filme, Michael disse à ex-mulher que estava ficando cada vez mais sábio, e que ao morrer ficaria "realmente esperto". Quero crer que a cena das danças recordadas, imediatamente anterior à morte de Michael, também aponta para isso. Talvez naquele momento ele tenha percebido com clareza a futilidade de seus esforços, a perversidade de seus meios, o equívoco de suas escolhas e a perfídia de seu coração. A grande mensagem do filme foi resumida por Deus em Jeremias 17.5-6: "Maldito o homem que confia no homem, faz da carne mortal o seu braço e aparta o seu coração do Senhor! Porque será como o arbusto solitário no deserto e não verá quando vier o bem; antes, morará nos lugares secos do deserto, na terra salgada e inabitável." Michael confiou em si mesmo, e sua vida foi uma sucessão de abismos. Mas talvez para ele, como para o célebre ladrão da cruz, a graça e o perdão de fato tenham chegado no último instante.