28 de abril de 2008

O primeiro e o último

Nota: O texto abaixo é, na verdade, a primeira parte de um texto cuja segunda metade ainda não escrevi, mas que está na minha cabeça e será publicado tão logo eu tenha tempo de passá-lo ao computador.

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Escrevo sob o peso do que me parece ser a convergência espontânea de inúmeras experiências bem distribuídas entre os diversos aspectos e níveis da minha existência. Não creio que eu seria capaz de listar todas essas experiências se tentasse. Seja como for, não tentarei fazê-lo, pois uma descrição detalhada seria inútil do ponto de vista da própria idéia que pretendo expor. Felizmente, porém, uma parcela substancial das fontes das minhas reflexões encontra-se em algum texto que li ou filme que vi, ou pelo menos pode ser ilustrada com exemplos tirados daí. Talvez valha a pena mencionar, de passagem, a minha convicção de que, pelo menos no meu próprio caso, esse hábito de enxergar as coisas através dos livros (e, muito secundariamente, dos filmes) deve-se à mais pura incapacidade de apreender a verdade de maneira mais direta. Sei que há pessoas que mergulham nos livros para fugir da realidade, mas essa é uma tentação que nunca me atingiu. Tenho um interesse profundo e sincero pela realidade. Só não tenho os dotes intelectuais e morais necessários para extrair dela a verdade por meio da investigação direta. Eis aí a razão pela qual preciso recorrer constantemente ao que pessoas mais sábias, inteligentes e bem informadas disseram sobre essa mesma realidade que se me afigura invencível quando a enfrento apenas com meus próprios punhos.

Mas voltemos ao tema, que diz respeito a certos pensamentos que têm me ocorrido com freqüência considerável nos últimos tempos, e do que há em comum entre eles. Esses pensamentos podem ser definidos por três características fundamentais. A primeira é que todos se vinculam às minhas deficiências morais, ou ao sentimento de culpa decorrente de pecados já cometidos. A segunda é que esses pensamentos concretizam-se em imagens mentais cujas origens podem ser facilmente rastreadas até algum trecho de um texto que li ou filme que assisti. Isso decorre diretamente da minha aparentemente incontornável falta de criatividade. Mesmo no conto mais criativo que já escrevi, cada linha faz alusão a algo que li em algum lugar. E a terceira característica é que, em cada caso, esses pensamentos são representados por pessoas que, de modos muito diversos, estão ausentes das minhas relações pessoais, ao menos no sentido corriqueiro dessa expressão. Uma delas não existe mais, outra talvez jamais venha a existir, a terceira eu não sei se existe, e com a quarta eu jamais me encontrei fisicamente. Mas, de maneiras diversas, cada uma delas me lança olhares de reprovação que são freqüentemente intoleráveis. Meus quatro acusadores são, de qualquer forma, personagens muito interessantes, e é sobre eles que vou falar agora.

Antoine de Saint-Exupèry dedicou sua obra mais conhecida, O pequeno príncipe, ao seu melhor amigo, o escritor e crítico de arte Léon Werth, mas não sem se desculpar por estar dedicando um livro infantil a um adulto. Ele resolveu o problema dedicando o livro à criança que seu amigo havia sido um dia. Eu tenho, na verdade, sérias dúvidas quanto a esse ser realmente um livro para crianças. De qualquer forma, deriva daí, embora por caminhos algo tortuosos, o meu primeiro acusador: eu mesmo, quando era criança. Não, é claro, que eu mantenha ilusões românticas sobre a pureza moral da infância, ainda mais quando a infância em questão é a minha própria. Mas não vejo o menor sinal de impureza nas expectativas que eu tinha para a minha vida de adulto. E aqui eu me identifico plenamente nestas palavras que Olavo de Carvalho proferiu em uma de suas palestras sobre Aristóteles: "Lembro-me de uma sentença de Alfred de Vigny, grande poeta do Romantismo francês, segundo a qual 'uma grande vida é um sonho de infância realizado na idade madura'. [...] Um outro grande escritor, Georges Bernanos, quando lhe perguntaram para quem escrevia, respondeu: 'Para o menino que fui.' O menino é o juiz do homem, porque aquilo que vem depois é a realização, ou o fracasso, das expectativas e sonhos de antes."

Embora seja verdade que em alguns aspectos (inclusive alguns dos mais importantes) eu atingi minhas expectativas da infância, existem metas das quais me desviei bastante; e, da mesma forma, eu tinha sonhos para a meia idade e para a velhice de cuja concretização não pareço estar de modo algum me aproximando. Algo disso pode, sem dúvida, ser atribuído à ingenuidade daquelas minhas expectativas, mas não pelo seu aspecto moral, que é o que importa aqui. Um dos filmes que mais me tocaram até hoje foi The kid, produzido pela Disney e protagonizado por Bruce Willis. Seu personagem, um homem de quase quarenta anos, se vê subitamente obrigado a conviver com o menino de oito anos que havia sido ele mesmo, trazido do passado de maneira inexplicável. E, na medida em que observa os atos do homem, o menino vai ficando progressivamente decepcionado. "É isso que vou ser quando crescer?" Às vezes me pego pensando algo parecido. E se aquele garoto de seis anos que está no meu álbum do orkut saísse do monitor e passasse a me observar e a me fazer perguntas? Acho que eu não teria coragem de ser totalmente sincero com ele, muito embora ele seja eu. Mas e se alguém lhe contasse sobre aquele meu deslize? E se ele presenciasse aquele outro? Tenho certeza de que ele choraria. E eu também.

Meu segundo acusador era originalmente apenas a personificação de uma idéia abstrata, ou de várias delas, mas seu olhar não era menos pungente por isso. Eu costumava designá-lo simplesmente como "a morte". Estive lendo recentemente um belo livreto de Charles Swindoll sobre Elias, o profeta, e ele me fez lembrar de um boato que talvez não seja verdadeiro, mas que certamente é muito antigo e tradicional: o de que as pessoas, quando estão perto da morte, assistem a uma espécie de retrospectiva de suas próprias vidas. A questão de saber se isso de fato ocorre ou não, ou se ocorre indistintamente com todos, é absolutamente irrelevante para os meus propósitos, como ficará claro adiante. Ainda assim, convém que eu me detenha um pouco nessa imagem mental. Estive pensando: será que, quando chega a hora da morte, nossa percepção temporal se altera e conseguimos rememorar absolutamente todos os momentos da vida? E, em caso negativo, quais serão os momentos escolhidos, e segundo qual critério? Talvez eles sejam escolhidos a esmo; ou talvez o sejam de modo a compor uma amostra representativa do que foi de fato a vida do indivíduo em questão. Se for assim, então os últimos momentos da vida de qualquer pessoa serão inundados por lembranças de todos os tipos: comparecerão diante dela alguns momentos alegres e outros tristes; alguns com forte carga emocional e outros absolutamente desprovidos de sentimento; alguns dos mais importantes e outros absolutamente triviais; alguns muito bem guardados na memória e outros já inteiramente esquecidos; alguns atos muito concretos e objetivos, e outros tão profundamente interiores e subjetivos que chegam a ser inexprimíveis; alguns atos de puro heroísmo e outros dentre os mais vergonhosos já realizados. A maneira pela qual essa perspectiva interage com a minha consciência moral é óbvia. O pensamento que me assalta de vez em quando é algo assim: "qual será a minha sensação se eu me lembrar subitamente deste ato quando estiver às portas da morte?" Ou, como observou William Law, um dos grandes escritores anglicanos do século XVIII, num contexto levemente diferente: "O melhor modo que uma pessoa tem de saber o quanto deve aspirar à santidade é considerar, não o quanto ela tornará fácil a sua vida presente, mas perguntar-se o quanto ela tornará fácil a hora da sua morte. Qualquer homem que se pretende sério, ao colocar essa questão para si mesmo, será forçado a responder que, na morte, todos desejarão ter sido tão perfeitos quanto a natureza humana é capaz de ser."

Mas este é o momento apropriado para corrigir a impressão de que toda a importância dessa pergunta depende da veracidade desse boato. A importância dessa pergunta não reside nisso, e sim naquilo que é representado de forma pictórica nesse boato: o caráter efêmero desta nossa vida, que torna infinitamente importante cada momento transcorrido, cada ação efetuada e cada caminho trilhado ao longo da mesma. Olhando por esse ângulo, a sensação que me assalta quando penso em meus inumeráveis erros é a sensação de perda de tempo, de um bem muito precioso que foi sistematicamente desperdiçado. E a face que me vem à mente não é a da morte em si mesma. Se o primeiro acusador é uma criança, o segundo pode ser mais adequadamente descrito como um velho: eu, quando chegar a ser velho. Nele se reúnem os dois elementos importantes desta imagem: a morte e o tempo. Deste segundo personagem não há fotos no meu orkut, e talvez ele jamais chegue a existir. Mas não posso deixar de pensar às vezes no que esse ancião tão familiar pensará daqui a algumas décadas: "Se eu tivesse agido corretamente naquela ocasião, quão diferente teria sido a minha vida, e a das demais pessoas envolvidas? Quantos passos a mais poderiam ter sido dados na estrada para a Vida? Mas a vida passou rápido, e muito ficou por fazer." Toda a questão, mais uma vez, foi bem expressa por Bernanos: "O perigo que nós corremos não é só o de morrer, mas de morrer como idiotas". Com efeito, é difícil não morrer como idiota alguém que desperdiçou a vida entre diversas idiotices, e é nisso que reside a advertência feita pelo meu eu futuro ao meu eu presente. Mas em parte alguma ouvi essa advertência com tanta clareza quanto numa única frase proferida por William Parrish, protagonista do filme Encontro marcado (Meet Joe Black, no original), interpretado por Anthony Hopkins. Parrish era um homem bondoso, rico e bem sucedido que sabia que morreria antes do fim da festa de comemoração pelo seu sexagésimo quinto aniversário. Depois de dizer não muitas palavras em seu discurso naquela noite alegre para todos os convidados, ele concluiu com uma simplicidade cortante: "Sessenta e cinco anos! Não passam voando?"