27 de setembro de 2007

Línguas, desenhos e cães

A pequena reunião de ensaios intitulada Peso de glória (The weight of glory and other adresses) parece ser uma das obras menos conhecidas de C. S. Lewis. É, entretanto, e a despeito de seu reduzido tamanho, uma coleção valiosíssima. O sermão que dá nome ao livro traz excelentes reflexões sobre a natureza da glória celestial. Uma outra palestra me forneceu, dentre outras coisas, o melhor argumento que já vi contra o autoritarismo, e me indispôs definitivamente contra qualquer forma de concentração de poder. Mas nenhum ensaio me impressionou ou ensinou tanto quanto um chamado Transposição. Conversando outro dia com um amigo, eu disse tratar-se de uma crítica ao reducionismo. Mas logo percebi que essa caracterização é ela própria reducionista, pois não dá conta da profundidade do seu conteúdo. A fim de fazer justiça ao texto, portanto, decidi escrever hoje um resumo do mesmo, embora acrescido de uns poucos comentários meus e disposto, às vezes, numa seqüência diferente da utilizada pelo autor.

Trata-se da transcrição de um sermão pregado numa capela de Oxford num domingo de Pentecostes. Por não se julgar qualificado a discorrer sobre temas mais importantes, Lewis decidiu fazer uma reflexão a partir do dom de línguas, que o apóstolo Paulo, mesmo sem questionar a origem autenticamente espiritual do fenômeno, considerou pouco importante em comparação com outros dons espirituais (para mais detalhes, ver Atos 2.1-13 e todo o capítulo 14 da primeira epístola aos coríntios). Pelo menos no que diz respeito ao Pentecostes subseqüente à morte e ressurreição de Cristo, não se pode, levando a sério a narrativa bíblica, negar o caráter sobrenatural do evento, já que os discípulos falaram em línguas conhecidas pelos ouvintes, mas desconhecidas deles próprios. Nas situações aludidas por Paulo parece não ter ocorrido isso. É uma diferença importante, embora Lewis não faça caso dessa diferença. Mas o ponto relevante para ele é que o estado subjetivo das pessoas atingidas por essa manifestação divina em cada caso pode muito bem ter sido exatamente o mesmo.

A questão a ser encarada é o fato de que esse fenômeno parece ser em tudo semelhante a uma "descarga involuntária de agitação nervosa", explicação que, aliás, muitos cristãos, para não falar nos céticos, considerariam plenamente satisfatória para a maioria das manifestações modernas desse tipo. Lewis chama a atenção para o fato de que esse é um exemplo específico dentre muitos casos em que o que se supõe sobrenatural parece não sê-lo de modo algum, como no caso da linguagem erótica dos escritos místicos medievais, dentre outros: "Se de fato fomos favorecidos com uma revelação sobrenatural, não será muito estranho que o Apocalipse possa guarnecer o céu tão somente com elementos recolhidos da experiência terrena (coroas, tronos, música)? E também que a devoção religiosa não encontre outra linguagem senão a dos amantes e que o rito com que o cristão celebra a união mística não passe do velho e familiar ato de comer e beber?"

A fim de lidar com essa questão, Lewis começa notando que o mesmo problema pode ser notado comparando-se os diversos níveis da experiência cotidiana, não sendo, portanto, manifesto apenas em relação a questões sobrenaturais. Assim, considerando os fatos apenas do ponto de vista de seus resultados concretos, facilmente concluiremos que a sede de justiça nada mais é que desejo de vingança, ou que o amor e o desejo sexual são a mesma coisa. É necessário abrir os olhos para aquelas situações em que experiências de diversos níveis coexistem e são conhecidas por todas as pessoas. E tais situações existem, de fato. Se tentarmos captar introspectivamente a natureza exata da sensação de alegria intensa ou de angústia intensa, não encontraremos nada além de um evento puramente físico: um espasmo no diafragma, uma sensação de calor ou um formigamento no peito. Essas sensações físicas não esgotam aquilo que estamos de fato sentindo; são, antes, apenas a sua concretização. Isso decorre do fato de que a experiência emocional é consideravelmente mais rica que o conjunto de nossas sensações físicas. Conseqüentemente, embora haja uma óbvia correspondência entre elas, não é uma correspondência biunívoca, ou, como diriam os matemáticos, a função não é injetora.

Essa é a transposição a que se refere o título do ensaio: a transposição de um nível superior para um inferior. O caso mais óbvio é o desenho, que representa uma figura tridimensional num plano. E nele também ocorre essa multiplicidade de objetos representados de uma mesma maneira: "A forma que você desenha para dar a ilusão de uma estrada reta que se afasta do observador é a mesma que utiliza para desenhar a ponta de um cone." É relevante notar que a própria existência da transposição só pode ser percebida por quem tem experiência do nível superior, e tal idéia pareceria sem sentido e absurdamente fantasiosa para quem o ignorasse. Objetivamente, o cidadão do mundo bidimensional só veria triângulos essencialmente idênticos onde nós veríamos representações de estradas e cones. Ele poderia até concluir que o tal mundo tridimensional é, no fim das contas, apenas uma fantasia abstrata construída a partir da experiência no mundo conhecido por ele. Da mesma forma, "o indivíduo sensual nunca poderá distinguir, em sua análise, o amor da lascívia; [...] a fisiologia nada verá no pensamento senão contrações da massa cinzenta". A riqueza mesma do nível superior impede que ele possa ser compreendido por quem insiste em reduzi-lo ao inferior para analisá-lo a partir deste. Inversamente, quem consente em enxergar o plano inferior à luz do superior torna-se capaz de apreender corretamente o sentido de ambos. Como disse o apóstolo Paulo, as coisas espirituais se discernem espiritualmente, e o homem espiritual julga todas as coisas sem ser julgado por ninguém.

Eis a crítica do reducionismo a que me referi. Há mais, porém. A noção de simbolismo, entendida como representação de uma coisa por outra, não esgota o significado mais profundo da transposição (e isso independe de o simbolismo ser motivado por alguma semelhança entre as duas coisas ou baseado numa simples convenção). O desenho só pode representar algo do mundo tridimensional porque ele próprio também faz parte desse mundo, e "os sóis e as luzes parecem brilhar nos desenhos só porque os verdadeiros sóis ou as verdadeiras luzes brilham sobre eles, ou seja, parecem brilhar muito porque na realidade brilham um pouco ao refletir os seus arquétipos". O símbolo é, ao mesmo tempo, mais que um símbolo, pois o que o capacita a desempenhar esse papel é justamente o fato de conter em si algo da coisa simbolizada. Algo parecido ocorre na transposição da emoção à sensação: esta é transfigurada por aquela e passa a fazer parte dela, não sendo apenas uma projeção. Em contraste com a relação meramente simbólica, Lewis designa essa, não por acaso, como "sacramental". A transposição não deve, porém, ser confundida com o conceito de desenvolvimento, como se o inferior pudesse ser transformado no superior. Aquele obtém deste um novo e mais elevado significado, que o converte, num certo sentido, em algo distinto do que era, mas, embora contenha algo do que representa, continua sendo infinitamente transcendido por esse algo: "Afirmo, em suma, que são as paisagens reais que entram nos quadros, e não que um dia os quadros vão se converter em árvores e relvados."

O próprio Lewis oferece em seu sermão várias aplicações filosóficas dessa idéia toda. Uma das mais simples diz respeito à relação entre a consciência e o cérebro. Não só é verdade que aquela não pode ser reduzida a este (o que, aliás, é óbvio a partir da constatação de que, nesse caso, nenhum pensamento poderia ser considerado verdadeiro ou falso), como também é desnecessário supor que a cada estado possível da consciência deva corresponder um estado físico do cérebro. Outros exemplos são mais teológicos, como a própria Encarnação de Cristo. Como a sensação física que acompanha a alegria é, num certo sentido, a própria alegria encarnada, assim em Cristo a natureza humana, sem deixar de ser o que é, seria transfigurada ao refletir a presença de uma pessoa divina. Lewis considera ainda sob esse ângulo a doutrina cristã da ressurreição do corpo, conjeturando que, sendo a transposição sempre possível, talvez não haja experiência espiritual ou contato íntimo com Deus que não possua correspondência no plano material. Por conseguinte, não há também justificativa para o desprezo pelo papel do corpo nas questões espirituais.

À parte de todas essas possibilidades teóricas, no entanto, resta fazer duas considerações de grande valor prático. A primeira é um alerta contra o perigo de exagerarmos o papel da introspecção na obtenção de conhecimento espiritual. Lewis argumenta que, se nem nossas emoções se deixam apreender satisfatoriamente por um exame desse tipo, muito menos será possível compreender dessa maneira a ação do Espírito Santo ou mesmo a nossa própria condição espiritual. Na melhor das hipóteses, captaremos o resultado concretizado da transposição dessa ação ou dessa condição para o nosso intelecto, nossas emoções ou nossa imaginação. Mas embora possivelmente ninguém possua tais conhecimentos, existe ao menos um vislumbre da nossa imensa limitação, sempre acompanhado da certeza de que o que buscamos não está neste mundo: "Afirmamos apenas saber que nossa devoção visível, qualquer que tenha sido, não era puramente erótica, e que nosso visível desejo do céu, qualquer que tenha sido, não era mero desejo de longevidade, riqueza ou esplendor social. [...] Desejamos, pelo menos, um arrependimento que não é mera prudência e um amor que não é egoísmo." Já sobre o segundo ponto, relacionado ainda ao problema do reducionismo, eu não vou explicar aqui, limitando-me a transcrever, por sua importância e clareza, parte de um dos parágrafos finais, encerrando assim este resumo:

"Com certeza, você já notou que a maioria dos cães não compreende quando você aponta alguma coisa. Apontamos para um pouco de comida no chão; o cão, em vez de olhar para o chão, cheira o nosso dedo. Para ele um dedo é um dedo, nada mais. Em seu mundo tudo é fato; o significado não existe. Numa época em que predomina o realismo factual, encontramos muita gente que se induz deliberadamente esse tipo de mentalidade canina. Um homem que experimentou o amor dentro de si decidiria analisá-lo por fora e consideraria os resultados de sua análise mais verdadeiros que sua própria experiência. O cúmulo dessa cegueira voluntária é visto nas pessoas que, possuindo consciência, como o resto da humanidade, analisam e estudam o organismo humano como se ignorassem essa consciência. Enquanto perdurar essa deliberada recusa em entender as coisas de cima, mesmo quando esse entendimento é possível, é inútil falar de qualquer triunfo definitivo sobre o materialismo. A crítica feita a partir de um plano inferior contra qualquer experiência, a desconsideração voluntária do significado e a concentração no fato sempre apresentarão a mesma plausibilidade. Sempre haverá provas, provas frescas, todos os meses, de que a religião é apenas psicológica; a justiça, mera autoproteção; a política, simples economia; o amor, pura sensualidade; e o pensamento, nada mais que bioquímica do cérebro."

16 de setembro de 2007

Malícia filosófica

Tempos atrás, quando a filosofia ainda não havia se tornado uma profissão, e não era necessário que alguém colecionasse diplomas e títulos para ser reconhecido como filósofo, havia uma clara percepção do nexo indissolúvel entre as diversas faculdades do ser humano. Em particular, o conhecimento da verdade não era visto pelos grandes filósofos como uma atividade puramente intelectual, sendo possível apenas através de um compromisso moral que atinge todos os aspectos da existência do aprendiz. E eles tinham razão. O requisito para continuar adquirindo novos conhecimentos, progressivamente mais abrangentes e elevados, é portar-se responsavelmente face aos conhecimentos já adquiridos, por mais imperfeitos que sejam. Isso decorre naturalmente da própria noção de que o conhecimento da verdade requer o amor pela mesma, e o amor inexiste sem a correspondente dedicação ao objeto amado. É claro que isso não elimina radicalmente o efeito positivo das capacidades mentais que muitas pessoas naturalmente têm, como se nota no fato de que certas grandes descobertas, especialmente no campo das ciências naturais, foram feitas por pessoas muito perversas. Não é que os maus sejam sempre burros, nem que os bons sejam sempre inteligentes; essa seria uma concepção demasiado simplista, ainda mais se for levado em conta que inteligência e burrice não são critérios definíveis unidimensionalmente. Em longo prazo, porém, a falta de compromisso com a verdade resulta numa crescente aversão pela mesma, ainda que inconsciente, e esta, por sua vez, pode ser levada ao ponto de uma completa (ou quase) incapacidade de discerni-la. O homem que acha mais conveniente não ver o que está vendo e prefere agir como se de fato não visse acaba caindo em seu próprio engodo e tornando-se realmente cego.

Se acontece de um sujeito como esse assumir o controle da mentalidade de um grupo ou sociedade, ele pode igualmente induzir muitos outros à cegueira. Vale lembrar que, dois milênios atrás, o Senhor Jesus Cristo em pessoa já explicou o que acontece quando um cego é guiado por outro cego. Na verdade, parte da decadência (em todos os sentidos) da modernidade pode ser explicada ilustrativamente dessa forma: um suicídio coletivo de cegos que decidiram seguir alegremente um líder qualquer em direção ao precipício mais próximo (qualquer semelhança com o que eu disse nos dois posts anteriores não é mera coincidência). Contudo, embora todas essas considerações sejam muito relevantes e perfeitamente verdadeiras, não nos ajudam muito a compreender exatamente como o mal opera, ou seja, como a corrupção da vontade resulta na esterilidade do intelecto. Não creio que esse processo seja simples o suficiente para ser adequadamente abarcado em suas sutilezas por um punhado de enunciados gerais sobre a personalidade humana; ele padece daquela complexidade multiforme e irredutível que caracteriza as coisas reais. Passo, porém, a apresentar um caminho possível que creio contribuir para a ruína pessoal de pelo menos alguns, de acordo com tendências que tenho observado em outras pessoas e também, é claro, em mim mesmo.

É relativamente comum alguém justificar um mau hábito ou um desejo imoral (ou pelo menos mal visto no ambiente cultural circundante) alegando que "todo mundo faz isso". Creio que todos os leitores já ouviram alguém dizendo algo desse tipo, se é que não o disseram também, como eu mesmo já fiz. É óbvio que essa é uma atitude eminentemente defensiva, uma desculpa proferida contra os olhares de reprovação dos outros, ou mesmo como precaução contra a mera possibilidade de enfrentá-los. Porém, isso geralmente é apenas o reflexo exterior de um conflito interior mais profundo, gerado por uma denúncia dos maus atos feita pela própria consciência da pessoa em questão. Antes de ser uma desculpa para os outros, essa é uma desculpa elaborada por nós para nós mesmos com o fim de driblar nosso senso moral e evitar ou reduzir a sensação desagradável que inevitavelmente decorre de encararmos nossas imperfeições. Tendo sido flagrado em delito pela sua própria consciência e não podendo se furtar totalmente a ela, o indivíduo refugia-se no consolo parcial proporcionado pela solidariedade coletiva, já que o ser humano tende perversamente a se sentir menos culpado quando comete seus pecados em grupo. Ao mesmo tempo, esse pensamento abre espaço à seguinte idéia: "Não sou um mau sujeito, mas seria demais esperar que eu fosse bem-sucedido num ponto onde tantos tropeçam", o que é apenas mais um meio de se refugiar no meio da multidão. A diferença é que esse subterfúgio aprofunda o problema ao desprezar o padrão de perfeição moral, reduzindo-o à conduta média dos membros da sociedade, como se Deus fosse demasiado rigoroso e exigente por pedir algo além disso.

Pode haver, porém, um terceiro aspecto, pior que esse dois, o qual se manifesta mais evidentemente numa situação bastante parecida. Quando a desculpa "todo mundo faz isso" não pode ser usada, por ser uma afirmação simplesmente falsa, podemos ouvir uma versão levemente modificada, parecida com isso: "todos têm vontade de fazer isso, mas poucos são corajosos ou sinceros o suficiente para assumi-lo". Aqui se evidencia o terceiro e maior problema; entre a primeira desculpa e a segunda há um salto qualitativo importante. Enquanto aquela se resume ao que expliquei no parágrafo anterior, esta vai além e estabelece um juízo coletivo sobre as demais pessoas, quando não um juízo universal sobre a natureza humana. E isso é apenas a superfície do problema, que possui conseqüências bem mais profundas. Essa generalização algo inconsciente tem sua origem na parte mais baixa do orgulho humano, que consiste em não admitir a própria inferioridade em relação a quem quer que seja. No caso em questão, a coisa funciona de maneira bem simples: não podendo, pela própria natureza do caso, atribuir-se a perfeição, o indivíduo contenta-se em pelo menos negar que outras pessoas estejam mais próximas dela, de modo a continuar considerando-se a melhor pessoa do mundo. Dizendo dessa forma, chega a parecer que tamanho absurdo só poderia passar pela cabeça de uma pessoa excepcionalmente presunçosa, pois alguém que se considera o melhor homem do mundo sem sê-lo só pode ser um maluco ou alguém incrivelmente perverso, destituído de qualquer consciência moral. Isso tudo é verdade. É preciso ter atingido um grau de perversidade imensurável para pensar nesses termos conscientemente. Mas muitas pessoas não tão más assim podem manter idéias desse tipo no fundo da mente e acioná-las inconscientemente como autodefesa contra cada alfinetada proferida por seu próprio senso moral. Consolidadas pelo hábito, atitudes assim acabam arrastando de fato o indivíduo a um estado de decadência no qual essa presunção orgulhosa enfim passa livremente à consciência sem suscitar nenhum tipo de escândalo moral ou mesmo meramente intelectual, como teria certamente ocorrido algum tempo antes.

A prova de que essa é uma possibilidade concreta, para dizer o mínimo, reside no complemento da mesma frase: "mas poucos são corajosos ou sinceros o suficiente para assumi-lo". Em outras palavras, após imputar a toda a humanidade seus próprios defeitos, o sujeito começa imediatamente a sentir-se superior aos demais pelo simples fato de admiti-lo livremente, como se houvesse alguma virtude da parte de alguém por não ter vergonha de fazer o que não presta. O descaramento e a supressão da consciência, agora transmutados, recebem os rótulos de coragem e sinceridade, numa inversão que faz lembrar a "novilíngua" com que George Orwell parodiava a mentalidade comunista (o que, do ponto de vista do assunto em discussão aqui, também não é mera coincidência), se é que chega a ser uma paródia e não uma descrição tristemente literal da realidade. Esse acontecimento constitui o início, se não a concretização em pequena escala, dessa encenação de virtude a que me referi anteriormente, na qual o elenco e a platéia estão reunidos numa única pessoa. Mas isso não é tudo. Como se pode ver no próprio exemplo que utilizei, toda essa farsa destinada a manter sua dignidade postiça leva o indivíduo a projetar seus próprios defeitos nos outros; conseqüentemente, e talvez sem se dar conta do que está ocorrendo, vai se habituando a detectar intenções malévolas nas pessoas (injustamente, com certeza, pelo menos em parte dos casos), talvez na exata proporção em que considerar a si mesmo excepcionalmente bom. Eis como a malícia generalizada, convertida em revolta contra tudo e todos, resulta fatalmente numa concepção demasiado negativa, superficial e mesquinha sobre a natureza humana.

Muito do que se costuma chamar de filosofia atualmente é resultado de um fenômeno análogo ao que acabo de descrever. O protesto de Nietzsche contra os grilhões da razão em nome de uma "vontade de potência", a teoria marxista-gramsciana do caráter ideológico e classista de todo juízo sobre a realidade, o desconstrucionismo de Derrida que denuncia todo discurso como disfarce de uma mera luta pelo poder, todos esses e vários outros são herdeiros dos velhos céticos e sofistas gregos que, negando a capacidade humana de conhecer a verdade e, conseqüentemente, negando também o dever de comprometer-se com a mesma, a substituíam por qualquer coisa que lhes parecesse socialmente útil. Por trás de todos esses ataques aos homens que dedicaram suas vidas inteiras à busca pela verdade e à conformação com a mesma espreita apenas a vileza do homem que não deseja ter diante de si exemplos vivos que o forcem a notar, pelo contraste, a sua própria pobreza espiritual. A malícia sistematizada usando roupagens de filosofia permite-lhe prosseguir com sua ambição de poder com a consciência tranqüila proporcionada pelo pretexto de que não há, de fato, outra coisa a ser feita. A contradição fundamental entre isso tudo e o espírito da autêntica filosofia é óbvia e gritante, e não deixa de ser mais um sintoma da decadência intelectual e moral do nosso tempo o fato de que essas bobagens todas são levadas a sério e saudadas como grandes progressos do pensamento humano.

Como conclusão e salvaguarda contra possíveis mal-entendidos, cabe observar ainda que todas essas considerações dirigem-se não contra alguma concepção pessimista da natureza humana enquanto tal, e sim contra sua utilização como pretexto para a conformidade do sujeito com suas próprias imperfeições morais, pra não falar na glorificação das mesmas. Aliás, o diagnóstico que a própria doutrina cristã faz acerca da condição humana não é lá muito animador. A diferença é que no cristianismo (e em todas as religiões decentes) isso não é motivo para conformismo, e sim para o empenho incansável em direção à santidade, sempre amparado, é claro, na ajuda que vem do alto. Nenhum cristão está autorizado a justificar seus próprios erros com base na universalidade do pecado, e muito menos a convertê-la artificiosamente em prova de sua própria bondade essencial. Assim, nesses dois milênios de cristianismo, dificilmente alguém combateu os pecados alheios com mais fervor que o apóstolo Paulo, que, no entanto, insistia em atribuir a si próprio o título de principal dos pecadores. Tudo isso eu aprendi ainda na infância. Porém, eu jamais poderia imaginar naquela época (e mesmo hoje não o percebo sem surpresa) que alguns dos homens mais inteligentes do mundo foram desviados da verdade por um erro tão simples que poderia ser evitado por qualquer criança que tenha freqüentado a Escola Dominical.

7 de setembro de 2007

A visão panorâmica do precipício

Nota introdutória: esta postagem é continuação da anterior, A estrada para o precipício. Para mais esclarecimentos, vide a note introdutória àquele texto.

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Pode-se notar que mesmo o interesse por um campo tão prático quanto o da política só foi despertado em mim por uma necessidade mais teórica ou mesmo contemplativa. O mundo tem se tornado cada vez mais politizado já há alguns séculos, o que é, penso eu, mais um sintoma da decadência de nossa civilização. Assim, mesmo a contragosto, vi-me obrigado a entender de política a fim de entender o mundo; e só assim passei a julgá-la um tema importante, embora continuasse (e continue até agora) não a considerando intrinsecamente interessante. Tendo chegado a essa conclusão, percebi que estava diante de um novo problema: por onde começar? Afinal, conforme expliquei antes, eu já perdera toda a confiança nos intelectuais. E eu sabia que era imprescindível, como ponto de partida, encontrar alguém digno de confiança, ainda que fosse para criticá-lo posteriormente, visto que não há outra maneira de iniciar o estudo de um novo assunto. Como se pode ver, eu tinha consciência, ao menos parcialmente, do tamanho da minha ignorância. Mas quem poderia ser o meu professor? Eu não via nenhum candidato qualificado para desempenhar tal função. Mas, enquanto aguardava pacientemente que algum se apresentasse, dois eventos importantes ocorreram.

O primeiro foi o surgimento de um novo amigo, o André Luiz, que já mencionei algumas vezes neste blog. Começamos a trocar e-mails sobre assuntos filosóficos, teológicos, literários e outros, e demorou até que começássemos a conversar sobre política. Mas ele tem um excelente hábito, que é o de enviar aos amigos tudo o que encontra de interessante na internet, como vídeos, poemas, notícias e artigos sobre os mais variados assuntos (conservo na minha caixa de e-mails uma pasta que conta atualmente com 1470 dessas mensagens, acumuladas ao longo de um ano e cinco meses). Eu já havia aprendido a confiar na sensatez desse meu amigo quanto a outros assuntos; e, quando comecei a ler os textos que ele ocasionalmente recomendava sobre política (assunto em que os conhecimentos dele são incomparavelmente superiores aos meus), levei um susto: aquilo era diferente de tudo o que eu estava acostumado a ver nos debates veiculados pela imprensa brasileira. Percebi de repente que, mesmo que eu chegasse a compreender plenamente a disputa política nacional, estaria perdendo muita coisa se não passasse daí. O Brasil, de repente, pareceu-me pequeno. E, o que é pior, comecei a ter uma impressão crescentemente irresistível de que a parcela mais sensata do espectro político havia sido exilada bem longe das nossas fronteiras.

O segundo acontecimento confirmou essa impressão. Foi um livro do poeta anglo-americano T. S. Eliot denominado Notas para a definição de cultura, o mesmo de onde retirei a citação com que inaugurei este blog há mais de oito meses. Não é um livro sobre política, e sim sobre antropologia e sociologia, e nele Eliot discute os traços essenciais da cultura e as condições necessárias ou propícias ao seu florescimento. Suas idéias sobre esses assuntos eram infinitamente mais sensatas que qualquer coisa de que eu já tivesse ouvido falar, e depois de tê-las lido eu não poderia considerar as reflexões culturais de Trotsky, por exemplo, como algo mais que um lixo. Assim, as teses de Eliot, embora claramente expressas sem qualquer propósito de militância política, tinham conseqüências políticas bastante óbvias e, para mim, inteiramente novas. O mais surpreendente, porém, é que o autor discorria sobre elas com naturalidade, como se não fosse nada muito diferente do que todo mundo já sabia. Foi isso o que me fez ver, definitivamente, que o problema estava aqui, e não lá. A causa do meu espanto estava menos na genialidade do autor do que na ignorância do leitor. Percebi, enfim, que havia algo tremendamente errado no debate cultural brasileiro, ao qual eu sempre estivera quase inteiramente restrito. O problema, como vim a saber depois, é que eu passara a vida toda ouvindo apenas o discurso cultural da esquerda, o único disponível no mercado nacional de idéias.

Mas, antes que eu percebesse isso, entrou em cena uma nova figura (em mais de um sentido da palavra): o filósofo Olavo de Carvalho. Ele também me foi apresentado pelo meu amigo André, que me enviara vários artigos dele tratando sobre temas filosóficos diversos. Embora eu não concordasse com todas as suas posições, não pude deixar de sentir que o sujeito era digno de atenção e respeito, muito mais que a classe inteira dos intelectuais comuns. Depois de ter lido quatro ou cinco desses artigos, decidi visitar o site do filósofo em questão, onde descobri, com grata surpresa, que ele escrevia muito sobre política. Meu problema estava resolvido: eu já vira intelectuais comprovadamente confiáveis e já vira gente que escrevia muito sobre política, mas era a primeira vez que encontrava as duas características reunidas numa única pessoa. Isso foi há um ano. De lá pra cá estudei seus artigos lado a lado com os de outros, inclusive seus opositores (que, aliás, são bastante numerosos). A quantidade de coisas importantes que aprendi dessa forma é incontável, e não apenas (nem principalmente) sobre política.

Finalmente, procurei saber quais eram as principais doutrinas políticas existentes no mundo. O simples enunciado das respostas bastou para que eu percebesse onde me encaixava. Olhando retroativamente, não havia mesmo outra coisa que eu pudesse ser. Meu desprezo pela ideologia do progresso, meu apego aos valores tradicionais (religiosos inclusive), minha proximidade muito maior aos pontos de vista dos homens comuns do que aos da maior parte das classes cultas, minha forte desconfiança diante da concentração do poder nas mãos de uns poucos (por mais que eles mesmos estejam convencidos de que fazem tudo pelo bem de todos), a minha convicção da existência de uma ordem moral transcendente e da inviolável dignidade individual frente a qualquer tipo de identidade grupal; todas essas idéias, embora não tendo necessariamente muito a ver com política, acabaram por abrir o caminho para o meu futuro posicionamento político. Eu era um conservador. Sempre havia sido, na verdade, embora não totalmente; pois não posso dizer que escapei ileso da revolução cultural gramsciana, manifesta na atmosfera esquerdista do colégio, da universidade e da cultura acadêmica nacional. Assim, por exemplo, durante vários anos não só abriguei uma certa dose do mais vulgar antiamericanismo como cheguei até a acreditar em Michael Moore e na propaganda chavista e castrista. Mais cedo ou mais tarde, porém, eu teria de superar todas essas bobagens, pois o cerne da minha visão de mundo estava incorrigivelmente vinculado ao conservadorismo. E quando comecei a examinar a questão sob esse novo ângulo descobri que praticamente todos aqueles pensadores que eu espontaneamente havia sido levado a admirar profundamente, sem qualquer preocupação com suas convicções políticas, eram essencialmente conservadores: C. S. Lewis, G. K. Chesterton, Francis Schaeffer, T. S. Eliot, Olavo de Carvalho e uma porção de outros.

Não devo concluir este post sem esclarecer uma coisa: não tenho a mínima vergonha de dizer que a política é o último assunto amplo sobre o qual vim a assumir uma posição na vida, e não o fiz antes por pura ignorância a respeito. Se alguma vergonha me restasse, ela sumiria diante da constatação de que muitas pessoas, não menos ignorantes do que eu era, não deixaram que isso as impedisse de abraçar um credo político qualquer (geralmente o primeiro que lhes foi apresentado por algum professor quando elas tinham cerca de quinze anos), e a partir daí recusaram-se a ouvir a opinião de outros, rejeitados de antemão como "inimigos". Mas nessa atitude não há nada peculiar à política, sendo antes uma amostra da cultura brasileira (espero que ninguém pense que estou me referindo à incultura brasileira, que às vezes é até mais sensata).

De qualquer forma, a minha situação é bem diferente dessa, e é por isso mesmo que não lamento decepcionar meio mundo e declarar-me conservador e reacionário, embora esses termos soem como autênticos palavrões na atmosfera ideológica que me rodeia. Isso tem gerado até algumas situações engraçadas. No meu último aniversário, por exemplo, uma amiga que não vejo há um bom tempo enviou-me um recado pelo orkut nos seguintes termos: "Parabéns Sumido. Apesar do que 'political view: right-conservative' possa parecer." Não sei se me sinto envergonhado por sustentar uma visão política tão abjeta ou se me sinto comovido pela bondade superior de pessoas que, a despeito dela, não me negam um recado de aniversário. Mas voltemos a falar sério. Apesar de essas linhas talvez se assemelharem a um manifesto, a essência do que estou dizendo hoje acerca da minha posição não chega a ser uma grande novidade. Além da explícita declaração de posicionamento no meu perfil do orkut, há indícios mais que suficientes espalhados ao longo dos textos publicados anteriormente neste blog para que qualquer leitor interessado e com suficiente conhecimento sobre o espectro político (o que, infelizmente, parece ser muito incomum) pudesse notar sem sombra de dúvida o caráter altamente conservador das minhas idéias. E já que dei início a este texto (no post anterior) com uma citação tão reacionária, vou encerrá-lo com outra, retirada do livro The well and the shallows, de Chesterton, que ilustra bem a minha impressão sobre o presente estado de coisas:

"Os turistas podem estar avançando velozmente, mas os desbravadores estão retrocedendo. Em outras palavras, são exatamente os espíritos audazes e investigativos, dos quais sempre se disse que estão à frente de seu tempo, que estão agora mais duvidosos sobre se é desejável avançar. São exatamente aqueles que se contentam em seguir a tradição, ou a convenção, ou as modas familiares, que ainda estão seguindo (ou assim supõem, pelo menos) a tradição do progresso, a convenção do movimento e as centenas de modas, familiares ao século dezenove, que apelam à esperança de mudança. Os homens são progressistas porque estão um pouco atrás dos tempos, e são reacionários porque estão um pouco à frente deles. Isso soa como um paradoxo, mas é realmente um estado de coisas muito prático e mesmo inevitável, dadas certas condições. Aqueles que estão atrás ainda gritam 'Avante!', e apenas aqueles que estão na linha de frente gritam 'Para trás!', quando a vanguarda do exército chega subitamente à beira de um precipício."

4 de setembro de 2007

A estrada para o precipício

Nota introdutória: O texto que eu pretendia publicar hoje, sobre uma questão que só em tempos relativamente recentes passou a chamar minha atenção, acabou ficando grande demais para um único post. Decidi, portanto, dividi-lo em dois. Hoje contarei como a minha mente foi preparada para lidar com essa questão ao longo dos anos sem que eu me desse conta disso. No próximo post (que sairá dentro de alguns dias, tão logo eu tenha tempo de revisá-lo) falarei sobre o que aconteceu quando me dirigi a ela conscientemente e qual foi, afinal, o posicionamento a que cheguei.

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"Torniamo all'antico; sarà un progresso."

Embora eu não vá falar hoje sobre música, essas palavras do compositor Giuseppe Verdi, em carta dirigida a Francesco Florimo em 1871, resumem bem as minhas impressões sobre um assunto muito diverso. Nos primeiros trinta e quatro textos que postei neste blog jamais falei sobre política, a não ser em menções passageiras. E não pretendo começar a fazer isso a partir de agora, por várias razões. A principal delas é que há uma infinidade de assuntos que considero não apenas mais interessantes como também mais importantes e dignos, no sentido mais absoluto. Até posso entender que, por motivo de consciência, forçado pela conjuntura opressiva de um determinado momento histórico, um formador de opinião (no sentido mais abrangente possível dessa expressão) dedique boa parte de suas palavras a esse assunto. Na verdade, desconfio que essa é a única justificativa possível para tal empreendimento. Mas não posso sentir outra coisa além de desprezo por essa atitude tipicamente moderna de conferir à política o status de coisa mais importante e digna de atenção e envolvimento que existe, atitude essa claramente implícita, por exemplo, na afirmação de Karl Marx (em suas Teses sobre Feuerbach) de que compreender o mundo é menos importante do que transformá-lo. Se há algo que não desejo de jeito nenhum é fazer deste blog um espaço voltado à militância política contra ou a favor de quem quer que seja.

É com relutância, portanto, que passo a escrever hoje sobre o tema, ainda que não muito diretamente. Meu objetivo aqui é menos uma exposição de argumentos em favor da concepção política que vim a adotar do que uma tentativa de explicar como é possível que um sujeito tão apolítico quanto eu tenha vindo, pra início de conversa, a tomar uma posição diante dessa questão. Mas isso não pode ser feito adequadamente, penso eu, sem uma explicação retroativa sobre as razões pelas quais a política sempre me interessou tão pouco, razões essas que agora julgo compreender melhor do que antes. Também será necessário discorrer brevemente sobre a relação entre a política e algumas outras atividades que, como eu disse acima, considero mais dignas; e não vejo maneira de fazer isso sucintamente a não ser contando minha própria história. Colocar esses elementos todos juntos talvez seja um pouco complicado, e acredito que isso tornará o texto inevitavelmente fragmentário. Talvez o que vou dizer tenha mesmo, afinal de contas, mais interesse biográfico do que propriamente político. Ao mesmo tempo, porém, esta breve narrativa parece-me imprescindível para que possa ser entendida em sua perspectiva correta qualquer coisa que eu venha a dizer futuramente sobre o tema (o que, naturalmente, eu espero que seja tão pouco quanto possível).

A razão pela qual nunca achei que a política fosse um assunto interessante não é difícil de entender. Na minha cabeça as coisas eram simples assim: na pior das hipóteses, política era um meio de que certas pessoas se utilizavam para obter privilégios e poder para si próprias, legal ou ilegalmente, ao mesmo tempo em que, como é óbvio, tentavam diminuir o poder de seus concorrentes. E, na melhor das hipóteses, a política era uma disputa entre pessoas honestas que, valorizando sinceramente o bem da sociedade, tinham, contudo, opiniões divergentes sobre qual é a melhor maneira de proporcioná-lo. No primeiro caso, tratava-se de uma mesquinharia sem fim; no segundo, era uma questão altamente técnica sobre administração pública. Nenhum dos dois, de qualquer forma, parecia digno do meu interesse. Nunca tive a intenção de ser rico e poderoso, e nunca gostei de administrar nada; sempre me pareceu óbvio que essa última atividade era um enfado que deveria ser reduzido ao mínimo necessário para garantir a perpetuação de certas coisas boas, e não uma ocupação valiosa por si mesma. Por todas essas razões, a totalidade das discussões políticas que eu presenciara pareciam-me sumamente desinteressantes. Essa foi a minha atitude até a metade da minha adolescência, pelo menos, embora, é claro, eu não fosse capaz, na época, de formulá-la nesses termos.

Depois comecei a perceber que essa concepção era provinciana demais, pois pressupunha um ambiente democrático que nem sempre havia existido e que efetivamente inexiste em uma porção de lugares. Porém, embora eu nunca tenha sido favorável a nenhuma ditadura, fosse aberta ou velada, de direita ou de esquerda, esses exemplos pareciam-me exceções remotas demais, incapazes de merecer que, a fim de pensar nelas mais demoradamente, eu desviasse minha atenção de temas infinitamente mais interessantes. O fato é que nessa época minha vida intelectual estava começando, e minhas idéias posteriores sobre política foram profundamente influenciadas pelo rumo que tomaram meus pensamentos sobre assuntos que, à primeira vista, nada têm a ver com elas. E isso me obriga a fazer uma digressão sobre esses assuntos, que ocuparam e moldaram a minha mente muito antes que eu passasse a ocupar com a política uma pequena parte dela.

Dentre esses fatores, nenhum se manifestou tão cedo quanto a educação cristã protestante que recebi dos meus pais. Hoje acredito, na verdade, que esse foi o elemento mais importante de todos os que me impediram de tornar-me mais tarde um esquerdista ou mesmo um extremista de direita. Digo isso porque a memória das brutais perseguições ao cristianismo sob as ditaduras comunistas e fascistas jamais esteve ausente do meio religioso em que fui criado, embora hoje eu veja que não recebe tanta ênfase quanto deveria. Embora eu não tivesse qualquer noção sobre a natureza das correntes políticas existentes, o caráter ostensivamente anticristão (ou mesmo francamente ateísta) desses movimentos já era motivo suficiente para que eu não simpatizasse com eles. E as histórias sobre os abusos de poder nos regimes ditatoriais foram o germe da minha futura oposição ao excessivo controle estatal do que quer que fosse e por quem quer que fosse. Mas isso também não quer dizer que eu visse o anarquismo com alguma simpatia. Analisando os prós e os contras, seus adeptos nunca me pareceram mais sensatos que os demais revolucionários.

Mas houve um outro aspecto importante da minha formação cristã, que me tornou avesso até mesmo ao liberalismo político reacionário de hoje em dia: a noção de progresso, que ele tem em comum com todos os movimentos revolucionários. Para mim, exceção feita ao aspecto puramente científico e tecnológico da coisa, rejeitar a ideologia progressista sempre foi uma questão de coerência não apenas com os fatos da história humana dos últimos séculos, até onde me era dado conhecê-los, mas também com os princípios elementares da doutrina cristã, que estava em pleno acordo com os referidos fatos. Enquanto o claro ensino de Jesus no capítulo 24 do Evangelho segundo Mateus e no Livro do Apocalipse praticamente inteiro era sobre um futuro tenebroso para a Igreja e para a humanidade em geral, a ponto de que o triunfo completo do mal só seria evitado pela intervenção direta do Cristo glorificado em pessoa, eu não podia levar a sério as linhas escatológicas progressistas dentro do protestantismo, e muito menos aqueles intelectuais seculares que anunciavam confiantemente um mundo melhor a ser fatalmente construído apenas pelo esforço humano. Nessa época sequer me passava pela cabeça que o posicionamento a respeito do progresso pudesse ser decisivo na elaboração de doutrinas políticas. Eu jamais pensei na conexão entre esses dois assuntos até bem recentemente; portanto, minha atitude diante do progresso é que acabou por influenciar minha visão política, e não o contrário. Jamais me pareceu que isso fosse uma questão política, sendo antes uma questão filosófica, teológica e histórica.

Assim, sem jamais pensar em política, eu fui estudando filosofia, história e ciências humanas em geral seguindo o rumo ditado pelas minhas prioridades e possibilidades de cada momento. Esses estudos me levaram cada vez mais para longe dos intelectuais da moda, e fui descobrindo alguns que, embora ignorados por praticamente todo mundo neste país, pareceram-me mais dignos de atenção do que os tidos por mais ilustres no nosso meio acadêmico. Isso sempre foi assim; sempre nadei contra a corrente da opinião majoritária entre os nossos intelectuais, não porque eu fizesse questão disso, e sim apenas porque, sempre que me punha a estudar um assunto qualquer, acabava concluindo que as minorias estavam certas. Acabei me acostumando a não dar atenção ao consenso dos cientistas e intelectuais e a não considerá-los uma classe digna da devoção que tantos conhecidos meus lhes prestam como a uma casta sacerdotal detentora do poder de revelar a verdade aos pobres pecadores. Acredito também que meus amigos se habituaram, enfim, às minhas excentricidades, embora provavelmente ainda achem tudo isso muito esquisito; desconfio que, de vez em quando, eles devem discutir entre si sobre como é possível que eu seja capaz de estudar tanto e ainda assim discordar de quase todas as conclusões das outras pessoas que também estudam. Isso tudo não é irrelevante para a história que estou contando. Depois de alguns anos nessa situação, comecei a desconfiar instintivamente de qualquer idéia que fosse aceita pela maioria dos nossos intelectuais (e, portanto, dos estudantes), e acabei perdendo toda a confiança nos acadêmicos arquetípicos. Foi apenas depois disso que começou a acontecer, finalmente, aquilo que já mencionei brevemente no meu post Ignorância resumida, e que marcou o início de uma nova fase da minha vida intelectual:

"[...] descobri a óbvia conexão da filosofia e da teologia com a política, isto é, entre o que o indivíduo pensa acerca de si mesmo, do homem, do mundo e de Deus e o que ele julga que deve fazer no mundo em decorrência disso. Mais do que isso, porém, a política me interessa por ser um elemento cada vez mais determinante na realidade humana, de modo que, gostando eu ou não, vejo-me obrigado a conhecer o assunto, sob pena de jamais compreender direito a realidade."