16 de setembro de 2007

Malícia filosófica

Tempos atrás, quando a filosofia ainda não havia se tornado uma profissão, e não era necessário que alguém colecionasse diplomas e títulos para ser reconhecido como filósofo, havia uma clara percepção do nexo indissolúvel entre as diversas faculdades do ser humano. Em particular, o conhecimento da verdade não era visto pelos grandes filósofos como uma atividade puramente intelectual, sendo possível apenas através de um compromisso moral que atinge todos os aspectos da existência do aprendiz. E eles tinham razão. O requisito para continuar adquirindo novos conhecimentos, progressivamente mais abrangentes e elevados, é portar-se responsavelmente face aos conhecimentos já adquiridos, por mais imperfeitos que sejam. Isso decorre naturalmente da própria noção de que o conhecimento da verdade requer o amor pela mesma, e o amor inexiste sem a correspondente dedicação ao objeto amado. É claro que isso não elimina radicalmente o efeito positivo das capacidades mentais que muitas pessoas naturalmente têm, como se nota no fato de que certas grandes descobertas, especialmente no campo das ciências naturais, foram feitas por pessoas muito perversas. Não é que os maus sejam sempre burros, nem que os bons sejam sempre inteligentes; essa seria uma concepção demasiado simplista, ainda mais se for levado em conta que inteligência e burrice não são critérios definíveis unidimensionalmente. Em longo prazo, porém, a falta de compromisso com a verdade resulta numa crescente aversão pela mesma, ainda que inconsciente, e esta, por sua vez, pode ser levada ao ponto de uma completa (ou quase) incapacidade de discerni-la. O homem que acha mais conveniente não ver o que está vendo e prefere agir como se de fato não visse acaba caindo em seu próprio engodo e tornando-se realmente cego.

Se acontece de um sujeito como esse assumir o controle da mentalidade de um grupo ou sociedade, ele pode igualmente induzir muitos outros à cegueira. Vale lembrar que, dois milênios atrás, o Senhor Jesus Cristo em pessoa já explicou o que acontece quando um cego é guiado por outro cego. Na verdade, parte da decadência (em todos os sentidos) da modernidade pode ser explicada ilustrativamente dessa forma: um suicídio coletivo de cegos que decidiram seguir alegremente um líder qualquer em direção ao precipício mais próximo (qualquer semelhança com o que eu disse nos dois posts anteriores não é mera coincidência). Contudo, embora todas essas considerações sejam muito relevantes e perfeitamente verdadeiras, não nos ajudam muito a compreender exatamente como o mal opera, ou seja, como a corrupção da vontade resulta na esterilidade do intelecto. Não creio que esse processo seja simples o suficiente para ser adequadamente abarcado em suas sutilezas por um punhado de enunciados gerais sobre a personalidade humana; ele padece daquela complexidade multiforme e irredutível que caracteriza as coisas reais. Passo, porém, a apresentar um caminho possível que creio contribuir para a ruína pessoal de pelo menos alguns, de acordo com tendências que tenho observado em outras pessoas e também, é claro, em mim mesmo.

É relativamente comum alguém justificar um mau hábito ou um desejo imoral (ou pelo menos mal visto no ambiente cultural circundante) alegando que "todo mundo faz isso". Creio que todos os leitores já ouviram alguém dizendo algo desse tipo, se é que não o disseram também, como eu mesmo já fiz. É óbvio que essa é uma atitude eminentemente defensiva, uma desculpa proferida contra os olhares de reprovação dos outros, ou mesmo como precaução contra a mera possibilidade de enfrentá-los. Porém, isso geralmente é apenas o reflexo exterior de um conflito interior mais profundo, gerado por uma denúncia dos maus atos feita pela própria consciência da pessoa em questão. Antes de ser uma desculpa para os outros, essa é uma desculpa elaborada por nós para nós mesmos com o fim de driblar nosso senso moral e evitar ou reduzir a sensação desagradável que inevitavelmente decorre de encararmos nossas imperfeições. Tendo sido flagrado em delito pela sua própria consciência e não podendo se furtar totalmente a ela, o indivíduo refugia-se no consolo parcial proporcionado pela solidariedade coletiva, já que o ser humano tende perversamente a se sentir menos culpado quando comete seus pecados em grupo. Ao mesmo tempo, esse pensamento abre espaço à seguinte idéia: "Não sou um mau sujeito, mas seria demais esperar que eu fosse bem-sucedido num ponto onde tantos tropeçam", o que é apenas mais um meio de se refugiar no meio da multidão. A diferença é que esse subterfúgio aprofunda o problema ao desprezar o padrão de perfeição moral, reduzindo-o à conduta média dos membros da sociedade, como se Deus fosse demasiado rigoroso e exigente por pedir algo além disso.

Pode haver, porém, um terceiro aspecto, pior que esse dois, o qual se manifesta mais evidentemente numa situação bastante parecida. Quando a desculpa "todo mundo faz isso" não pode ser usada, por ser uma afirmação simplesmente falsa, podemos ouvir uma versão levemente modificada, parecida com isso: "todos têm vontade de fazer isso, mas poucos são corajosos ou sinceros o suficiente para assumi-lo". Aqui se evidencia o terceiro e maior problema; entre a primeira desculpa e a segunda há um salto qualitativo importante. Enquanto aquela se resume ao que expliquei no parágrafo anterior, esta vai além e estabelece um juízo coletivo sobre as demais pessoas, quando não um juízo universal sobre a natureza humana. E isso é apenas a superfície do problema, que possui conseqüências bem mais profundas. Essa generalização algo inconsciente tem sua origem na parte mais baixa do orgulho humano, que consiste em não admitir a própria inferioridade em relação a quem quer que seja. No caso em questão, a coisa funciona de maneira bem simples: não podendo, pela própria natureza do caso, atribuir-se a perfeição, o indivíduo contenta-se em pelo menos negar que outras pessoas estejam mais próximas dela, de modo a continuar considerando-se a melhor pessoa do mundo. Dizendo dessa forma, chega a parecer que tamanho absurdo só poderia passar pela cabeça de uma pessoa excepcionalmente presunçosa, pois alguém que se considera o melhor homem do mundo sem sê-lo só pode ser um maluco ou alguém incrivelmente perverso, destituído de qualquer consciência moral. Isso tudo é verdade. É preciso ter atingido um grau de perversidade imensurável para pensar nesses termos conscientemente. Mas muitas pessoas não tão más assim podem manter idéias desse tipo no fundo da mente e acioná-las inconscientemente como autodefesa contra cada alfinetada proferida por seu próprio senso moral. Consolidadas pelo hábito, atitudes assim acabam arrastando de fato o indivíduo a um estado de decadência no qual essa presunção orgulhosa enfim passa livremente à consciência sem suscitar nenhum tipo de escândalo moral ou mesmo meramente intelectual, como teria certamente ocorrido algum tempo antes.

A prova de que essa é uma possibilidade concreta, para dizer o mínimo, reside no complemento da mesma frase: "mas poucos são corajosos ou sinceros o suficiente para assumi-lo". Em outras palavras, após imputar a toda a humanidade seus próprios defeitos, o sujeito começa imediatamente a sentir-se superior aos demais pelo simples fato de admiti-lo livremente, como se houvesse alguma virtude da parte de alguém por não ter vergonha de fazer o que não presta. O descaramento e a supressão da consciência, agora transmutados, recebem os rótulos de coragem e sinceridade, numa inversão que faz lembrar a "novilíngua" com que George Orwell parodiava a mentalidade comunista (o que, do ponto de vista do assunto em discussão aqui, também não é mera coincidência), se é que chega a ser uma paródia e não uma descrição tristemente literal da realidade. Esse acontecimento constitui o início, se não a concretização em pequena escala, dessa encenação de virtude a que me referi anteriormente, na qual o elenco e a platéia estão reunidos numa única pessoa. Mas isso não é tudo. Como se pode ver no próprio exemplo que utilizei, toda essa farsa destinada a manter sua dignidade postiça leva o indivíduo a projetar seus próprios defeitos nos outros; conseqüentemente, e talvez sem se dar conta do que está ocorrendo, vai se habituando a detectar intenções malévolas nas pessoas (injustamente, com certeza, pelo menos em parte dos casos), talvez na exata proporção em que considerar a si mesmo excepcionalmente bom. Eis como a malícia generalizada, convertida em revolta contra tudo e todos, resulta fatalmente numa concepção demasiado negativa, superficial e mesquinha sobre a natureza humana.

Muito do que se costuma chamar de filosofia atualmente é resultado de um fenômeno análogo ao que acabo de descrever. O protesto de Nietzsche contra os grilhões da razão em nome de uma "vontade de potência", a teoria marxista-gramsciana do caráter ideológico e classista de todo juízo sobre a realidade, o desconstrucionismo de Derrida que denuncia todo discurso como disfarce de uma mera luta pelo poder, todos esses e vários outros são herdeiros dos velhos céticos e sofistas gregos que, negando a capacidade humana de conhecer a verdade e, conseqüentemente, negando também o dever de comprometer-se com a mesma, a substituíam por qualquer coisa que lhes parecesse socialmente útil. Por trás de todos esses ataques aos homens que dedicaram suas vidas inteiras à busca pela verdade e à conformação com a mesma espreita apenas a vileza do homem que não deseja ter diante de si exemplos vivos que o forcem a notar, pelo contraste, a sua própria pobreza espiritual. A malícia sistematizada usando roupagens de filosofia permite-lhe prosseguir com sua ambição de poder com a consciência tranqüila proporcionada pelo pretexto de que não há, de fato, outra coisa a ser feita. A contradição fundamental entre isso tudo e o espírito da autêntica filosofia é óbvia e gritante, e não deixa de ser mais um sintoma da decadência intelectual e moral do nosso tempo o fato de que essas bobagens todas são levadas a sério e saudadas como grandes progressos do pensamento humano.

Como conclusão e salvaguarda contra possíveis mal-entendidos, cabe observar ainda que todas essas considerações dirigem-se não contra alguma concepção pessimista da natureza humana enquanto tal, e sim contra sua utilização como pretexto para a conformidade do sujeito com suas próprias imperfeições morais, pra não falar na glorificação das mesmas. Aliás, o diagnóstico que a própria doutrina cristã faz acerca da condição humana não é lá muito animador. A diferença é que no cristianismo (e em todas as religiões decentes) isso não é motivo para conformismo, e sim para o empenho incansável em direção à santidade, sempre amparado, é claro, na ajuda que vem do alto. Nenhum cristão está autorizado a justificar seus próprios erros com base na universalidade do pecado, e muito menos a convertê-la artificiosamente em prova de sua própria bondade essencial. Assim, nesses dois milênios de cristianismo, dificilmente alguém combateu os pecados alheios com mais fervor que o apóstolo Paulo, que, no entanto, insistia em atribuir a si próprio o título de principal dos pecadores. Tudo isso eu aprendi ainda na infância. Porém, eu jamais poderia imaginar naquela época (e mesmo hoje não o percebo sem surpresa) que alguns dos homens mais inteligentes do mundo foram desviados da verdade por um erro tão simples que poderia ser evitado por qualquer criança que tenha freqüentado a Escola Dominical.

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