24 de julho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 10

Na penúltima postagem da presente série fiz uma descrição da metodologia secularista de investigação da moral que David O. Brink propõe na seção Variedades de naturalismo de seu artigo A autonomia da ética. E na última, indo do geral para o específico, descrevi e critiquei separadamente as três abordagens seculares que o autor apresenta ali. É importante não ser injusto com o Dr. Brink. Depois de expor as três alternativas, ele deixa claro em [9.2] que "O nosso compromisso com a autonomia da ética exige apenas que algumas delas pareçam intelectualmente promissoras". Ele tem razão. Pode-se optar por apenas uma das três, ou mesmo por alguma outra versão não citada do naturalismo ético. Contudo, é razoável supor que, se Brink citou especificamente essas três, deve ser porque as considera mais promissoras que outras possíveis candidatas. E o que tentei fazer na postagem anterior foi justamente mostrar que nenhuma delas é de fato promissora. Lembremos que a pergunta fundamental da seção, enunciada em [6.2], é: "Mas em que consistem as exigências ou qualidades morais se não consistem na atitude ou vontade de Deus?" Guiado por essa questão, em [6.3] ele afirmou: "É relevante para a nossa investigação sobre se a moralidade exige uma fundação religiosa na medida em que a plausibilidade da autonomia da ética depende de haver algumas explicações promissoras do que são as exigências e distinções morais." Nesse caso, formalmente falando, todo o seu esforço é nada mais que um reductio ad absurdum, ou seja, seu fracasso leva necessariamente à conclusão oposta da que pretendia provar.

Dito isso, encerrarei meus comentários a essa seção voltando do específico para o geral, a começar por duas breves observações sobre os esforços de Brink e suas consequências. Ambas são aplicações diretas de ideias levantadas e discutidas por dois pensadores cristãos do século XX.

O primeiro é Francis Schaeffer. No livreto A igreja do final do século XX há um trecho curioso em que ele enuncia as "únicas três possibilidades" de uma moral social sem Deus. A pergunta que Schaeffer busca responder é basicamente a mesma que Brink enuncia nesta seção, mas com foco sociológico e político em vez de epistemológico. A primeira das três opções é o que ele chama de "hedonismo": a consciência individual é absoluta, e toda coerção social ou política é moralmente errada. A máxima "é proibido proibir" resume bem essa opção, inclusive em sua autocontradição flagrante. A segunda é a "ditadura dos 51 por cento", pela qual a verdade moral é a convenção apoiada pela maioria, à qual os restantes têm o dever de se sujeitar. A única imoralidade seria, então, fazer algo que a maioria não deseja que seja feito. E a terceira opção é o "totalitarismo", pelo qual decidirá o certo e o errado quem tiver poder político para impor sua vontade; ser imoral, nesse caso, é sinônimo de contrariar quem porventura estiver no poder. Essas são as únicas opções humanistas possíveis; são mutuamente incompatíveis, de modo que mesmo uma tentativa de combinar duas delas, ou as três, terá de hierarquizá-las e escolher uma delas como fundamental. Mas a moralidade, como já defendi na quinta parte, é necessariamente pessoal. Uma vez que Deus tenha sido retirado da conversa, o único legislador possível é o próprio homem, seja o indivíduo ou a coletividade, exercendo sua função diretamente ou por delegação. As opções epistemológicas aventadas por Brink (vantagem mútua, imparcialidade e responsabilidade) são todas abstratas o bastante para serem incapazes de escapar a esse "trilema" no plano prático - assim como no teórico, como já mostrei. É necessária uma teoria moral que torna imorais simultaneamente o egoísmo individual, a opressão das minorias e a dos que não têm poder político. Nenhuma das três abordagens de Brink oferece isso.

O segundo intelectual cristão é o já citado C. S. Lewis. Em Cristianismo puro e simples há um capítulo chamado As três partes da moralidade (esta discussão está cheia de tríades!) em que ele ilustra nossa relação com a moral mediante uma analogia com uma frota de embarcações. As três dimensões da moral seriam análogas, respectivamente, ao bom funcionamento interno de cada embarcação, à manutenção de sua trajetória em relação ao restante da frota e à execução do percurso correto rumo ao destino. Assim, a moral tem uma dimensão individual, uma social e uma teleológica (e, por implicação, teológica). Em outras palavras, ela depende de como lidamos com nós mesmos, com os outros seres humanos e com Deus. Pretendo aqui apenas chamar a atenção para o fato de que só a segunda dessas três categorias de relações é abarcada pelo conjunto das elucubrações éticas do Dr. Brink. Isso sem dúvida é psicologicamente compreensível, mas não se justifica filosoficamente. O silêncio sobre as outras duas partes da moralidade apenas pressupõe dogmaticamente que não temos nenhum dever moral que não seja em relação a outros seres humanos; em particular, que Deus não tem o direito ou o interesse de exigir nada de suas criaturas morais. Em matéria de direitos, portanto, o Deus do Dr. Brink não está sequer em pé de igualdade com suas criaturas; está abaixo delas. Repito que isso é psicologicamente compreensível, e espiritualmente mais ainda. Mas essa característica onipresente na argumentação de Brink refuta, uma vez mais, sua pretensão de estar estabelecendo uma ética mais compatível com o "teísmo". Não obstante, insisto que o Dr. Brink não estava sendo desonesto quando declarou, em [5.3], que sua autonomia da ética é compatível com o teísmo; ele "apenas" não sabia do que estava falando.

Os problemas, porém, ainda não acabaram. Terminei a oitava parte dizendo que, para Brink, "O 'ajuste dialético', ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da 'teoria moral secular'." Mas há vários problemas com esse critério final. O maior deles é o fato de não ser um critério final. Nada impede, por exemplo, que existam vários esquemas internamente coerentes e compatíveis com as intuições morais usadas como ponto de partida e que, no entanto, sejam incompatíveis entre si. Havendo tal coisa, o critério de Brink não ajudará a descobrir qual desses esquemas é o verdadeiro.

Da mesma forma, nada em sua argumentação garante que as próprias intuições das quais se parte são corretas, nem que são as únicas relevantes. Consequentemente, a proposta de Brink não diz (e não pode dizer) como se resolverão eventuais desacordos nesse campo. Brink está dizendo apenas que tudo será resolvido por meio da argumentação; mas isso está longe de ser uma metodologia. Ele não chega sequer a propor como ponto de partida o exame das convicções morais comuns a todas as culturas humanas, como fez Lewis. Nenhum método de tratamento de questões antropológicas relevantes, do tipo que ele exaltou em [4.4] ao falar em "propriedades naturais", aparece neste ponto. Na verdade, não há aqui sequer a consciência mais genérica de que a ética e a epistemologia não podem se sustentar à parte da ontologia.

Em resumo, o método consiste em algo assim: pensemos e argumentemos para ver aonde conseguimos chegar. Ora, isso não é um método, e sim a própria definição de falta de método. O autor não tem critérios concretos para determinar o ponto de partida, nem o caminho a ser percorrido. Só lhe resta fazer o papel do Deus que nega, estabelecendo dogmaticamente como premissas fundamentais os princípios preferidos por ele, por sua cultura ou por qualquer outro grupo com o qual ele porventura se identifique. No fim das contas, resta apenas uma grande confusão e arbitrariedade. Esse é o abismo inescapável em que caiu a intelectualidade moderna. E é desse abismo que brotou o relativismo moral que, abolindo toda autoridade moral objetiva, permitiu a politização de toda a realidade e a transformação de todos os desacordos em simples lutas pelo poder. Brink, naturalmente, não apóia isso, mas apenas porque é um homem à moda antiga (isto é, um iluminista tardio, um moderno inconformado com a pós-modernidade), incapaz de levar a sério a ideia de uma moralidade inventada pelo homem. Contudo, ele não tem um método que lhe permita evitar o abismo.

Esse fim lamentável ocorre a despeito do bom começo a que aludi na penúltima postagem, quando o Dr. Brink sensatamente criticou o racionalismo de caráter puramente dedutivo de algumas abordagens. Pretendo agora fazer algumas considerações sobre o que o Dr. Brink disse até aqui, relacionando-o com o cristianismo. Faço isso com dois objetivos: o primeiro, mais apologético, é explicar por que a visão cristã da objetividade moral não escoa pelo mesmo ralo que tragou o esforço do Dr. Brink; o outro é mostrar o que os cristãos devem aprender com o que esse mesmo esforço produziu de verdadeiro.

Afirmei na oitava parte desta série que a abordagem não-racionalista, adotada em [7.3] e ausente em vários outros pontos do artigo, é compatível com a visão bíblica da ética. Eu disse isso porque a Bíblia não nos apresenta o aspecto moral da criação (ou do Criador) como um conjunto de afirmações, regras e princípios morais a serem descobertos primariamente pela via da razão analítica, deduzindo casos particulares a partir de um princípio abstrato último e auto-evidente. Isso talvez até possa ser feito, mas apenas a posteriori e, acredito, de modo incontornavelmente imperfeito. Deus não concedeu autonomia ou auto-evidência a princípio algum; o fundamento último da moral é Ele próprio, e ninguém menos. Por conseguinte, o esforço de descobrir a verdade moral se assemelha muito menos a uma investigação filosófica que ao processo de conhecer o caráter de uma outra pessoa. Dentro da perspectiva cristã, a abordagem de Brink faz todo o sentido: visto que a fonte da moralidade não é um princípio, e sim uma pessoa, nenhuma proposição moral, seja qual for seu lugar na hierarquia dos valores, tem primazia na "justificação das nossas crenças morais". Esse fato permite evitar absolutizações indevidas levadas a efeito por quaisquer indivíduos, culturas ou subculturas, ao mesmo tempo em que permite a salvaguarda da objetividade, na medida em que o caráter do qual ela depende é o da Personalidade Absoluta, como diria John Frame.

Naturalmente, o que acabo de afirmar indica o caminho para a solução do problema, mas ainda não o resolve. É certo que, se estamos falando de conhecer o caráter do Deus que serve como padrão para todo juízo moral, a revelação que Deus faz de seu caráter nas Escrituras - e na criação em geral, devidamente interpretada pelas lentes das Escrituras - deverá ser a autoridade final. Mas como faremos para identificar a correta interpretação das Escrituras? Afinal, todos sabemos que os cristãos discordam entre si quase tanto quanto quaisquer outros correligionários. Nesse ponto, a discussão quase sempre se volta para o estabelecimento dos princípios corretos de exegese bíblica e suas aplicações. Mas pretendo enfatizar aqui um aspecto mais fundamental, embora muitas vezes ignorado, seja por negligência, seja apenas por jamais vir à consciência.

É lugar-comum dizer que os pressupostos pré-exegéticos influenciam nossa compreensão do texto, seja este bíblico ou não. Mas o que isso significa? Creio que, antes de qualquer outra coisa, significa o seguinte: sejam quais forem as questões hermenêuticas, linguísticas, culturais e existenciais que possam influenciar a compreensão do sentido do texto bíblico, o fato é que, em última análise, todo desacordo entre dois cristãos sobre as implicações morais de um texto decorre de diferentes compreensões sobre o caráter de Deus. Afinal, dizer que uma pessoa aprova ou não determinada conduta é dizer algo sobre quem essa pessoa é. Se erramos em nossa compreensão do que Deus deseja, ou se sua vontade nos parece obscura em certos pontos, é porque, em última análise, não o conhecemos devidamente. E aqui me refiro ao conhecimento mais pessoal possível.

Também nesse sentido o cristão pode e deve concordar com Brink sobre a extensão de nossa falibilidade. A diferença é que não só temos um texto inspirado com autoridade divina, nem só isso e um método exegético, mas temos também a habitação do Espírito Santo em nossos corações, abrindo nossa mente para o entendimento das Escrituras. Não estou dizendo, é claro, que essa presença torna nossos juízos infalíveis. O que estou tentando mostrar é a qualidade distintiva da epistemologia cristã: a obra do Espírito Santo faz com que o método epistemológico moral do cristão seja algo mais que a combinação do raciocínio analítico abstrato com um conjunto de premissas exegeticamente extraídas de um texto inspirado. Representamos mal o cristianismo quando descrevemos a epistemologia cristã nesses termos. Além da revelação verbal nas Escrituras e da capacidade de pensar, dispomos também de uma relação pessoal direta pela qual aprendemos a conhecer a Pessoa que escreveu o Livro e nos ensinou a pensar. Conhecemos a moral objetiva conhecendo a vontade de Deus, e conhecemos a vontade de Deus conhecendo pessoalmente o Dono dessa vontade. Decorre daí a importância epistemológica da oração. "Se alguém necessita de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente". A única solução possível para os conflitos de interpretação moral dentro do cristianismo consiste, em última análise, em conhecer melhor o caráter de Deus. Sem dúvida isso não satisfaz os critérios da filosofia analítica, na medida em que nenhuma relação pessoal admite tal redução. Mas o cristianismo pode renunciar à filosofia analítica no nível último - ou, melhor dizendo, recusar-se a absolutizá-la - justamente porque oferece a vida de comunhão pessoal com Deus. Brink não tem isso a oferecer, e por isso seu fracasso na via analítica resulta em um fracasso total.

Encerro aqui meus comentários sobre a seção Variedades de naturalismo. Mas estas últimas considerações já começam a entrar no tema da próxima seção do artigo, em que Brink fala do papel epistemológico de Deus na moralidade. Entrarei esse assunto a partir do próximo post.

12 de julho de 2013

Deveres sem pessoas - parte 9

Dei início na última postagem à análise da seção Variedades de naturalismo do artigo A autonomia da ética, na qual o Dr. David Owen Brink busca um método de investigação secularista da moralidade. Terminei mostrando que "O 'ajuste dialético', ou seja, a coerência interna de juízos e intuições estabelecida pela razão, é o critério epistemológico final da 'teoria moral secular'", e prometi que faria uma crítica dessa perspectiva. Contudo, creio que será mais proveitoso abordar primeiro as três abordagens seculares e naturalistas da moral que Brink expõe em [8.2], [8.3] e [9.1]. Elas se baseiam, respectivamente, nos princípios da vantagem mútua, da imparcialidade e da responsabilidade. Passo agora a fazer uma breve exposição e crítica de cada uma. Na próxima postagem farei o movimento inverso, passando dos problemas específicos de cada abordagem às dificuldades onipresentes nesta seção.

A primeira abordagem diz que "podemos identificar as exigências da moralidade com as normas do comportamento social cuja observância geral é mutuamente benéfica", e isso "explica o nosso interesse em sermos morais e o interesse da comunidade em instilar um sentido ou consciência moral nos seus membros". Não discorrerei muito sobre essa vertente porque o próprio Brink parece não gostar muito dela, uma vez que levanta uma objeção em [8.3]: "esta abordagem parece limitar o cuidado moral relativamente àqueles com quem se interage regularmente. [...] O âmbito lato da moralidade pode ser visto como algo que reflecte uma perspectiva que procura transcender os interesses e lealdades pessoais do agente." Em outras palavras, essa abordagem não explica por que devemos agir de modo benéfico à sociedade naquelas situações em que sabemos que não haverá sanção social por agirmos de modo diferente.

Eu acrescento que essa abordagem também não conta com o risco de a própria sociedade julgar mal o que é bom para si e, dessa forma, punir pessoas que lhe fazem bem e recompensar as que lhe fazem mal. Os exemplos históricos disso são tantos que não vou citar nenhum. Basta dizer que muitos grupos humanos, de cristãos a ateus, de conservadores a comunistas, acreditam que isso acontece o tempo todo. Sendo assim, é justo perguntar: o indivíduo ou grupo mais lúcido seria imoral se fizesse o que vê como melhor para a sociedade, e não o que a própria sociedade considera bom? A fundamentação da moral no princípio da vantagem mútua é profundamente falha porque não leva em conta o fundamento ontológico (as "propriedades naturais das situações") à luz do qual as escolhas morais podem ser justificadas. Um código moral sem ontologia não presta para nada. A abordagem moral baseada na vantagem mútua é problemática porque é simplista, abstrata e reducionista. Ela não fornece uma resposta para os dilemas concretos e pungentes da vida.

A segunda abordagem, baseada no princípio da imparcialidade, admite duas concepções diferentes sobre o que seu princípio significa. A primeira, que Brink chama de "agregativa", "exige que um agente tome igualmente em consideração os interesses das partes afectadas, equilibrando os benefícios de alguns com os prejuízos de outros, consoante for necessário, de modo a determinar o resultado melhor para todos", e assim "identifica o nosso dever com a promoção da felicidade humana ou com outras consequências boas". Brink também parece não gostar muito dessa opção, que "permite que os interesses de muitos tenham mais peso do que os de poucos", o que evidentemente poderia justificar uma ampla variedade de injustiças manifestas contra minorias e pessoas que se encontram em situações excepcionais; esse é, aliás, um risco inerente a qualquer coletivismo. A outra interpretação possível do princípio da imparcialidade, que Brink chama de "contratualista", "rejeita este tipo de equilíbrio interpessoal e insiste que ajamos apenas com base em princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar".

A objeção mais óbvia (e clássica) a essa abordagem é que o valor moral da imparcialidade é apenas pressuposto como auto-evidente. A vertente agregativa esbarra no problema que C. S. Lewis percebeu em Cristianismo puro e simples: "Se pergunto: 'Por que não devo ser egoísta?' e você responde: 'Porque isso é bom para a sociedade', posso então perguntar: 'Por que devo me preocupar com o que é bom para a sociedade a não ser quando isso for benéfico para mim?', e então você terá de responder: 'Porque você não deve ter egoísta', o que simplesmente nos traz de volta ao ponto de partida". E a vertente contratualista se choca contra o problema que John Frame levantou em Apologética para a glória de Deus: por que nossa razão deveria nos impor algum dever moral de coerência com o que ela percebe como verdadeiro? Em outras palavras, onde está o fundamento da normatividade ética da verdade cognitiva? Já defendi na quinta parte que "não há deveres à parte de relações pessoais"; segue-se daí que a verdade só tem implicações morais porque diz respeito ao nosso compromisso ético fundamental com alguém. Quando Brink fala em "princípios que ninguém possa razoavelmente rejeitar", o "razoavelmente" é cognitivo, mas o "possa" é também moral. Nada em sua filosofia materialista justifica esse salto. No cristianismo, por outro lado, não há salto algum: temos um dever moral para com a verdade porque a apreensão das leis de Deus é um dos propósitos para os quais ele nos deu inteligência; porque Cristo é a verdade (João 14.6); porque Deus é a Personalidade Absoluta, e tudo o que somos e fazemos é expressão de nossa reação ao Pacto.

Há mais, porém. De modos diferentes, essas duas vertentes encarnam o mesmo problema fundamental: no primeiro caso, é necessária uma decisão dogmática sobre quais são as "consequências boas" que cada ser humano deve promover; no segundo, sobre quais são os princípios que, de tão razoáveis, ninguém tem o direito de rejeitar. "Felicidade humana" e "razoabilidade" certamente são expressões às quais bem poucos se oporão, mas sobre cujo conteúdo é impossível atingir um consenso, dada a ampla diversidade possível de posições culturais, religiosas, políticas, filosóficas e outras que influenciam o que cada pessoa entende por essas lindas palavras. Como tenho dito várias vezes ao longo desta série, juízos morais têm sempre uma base metafísica e epistemológica que a abordagem "imparcialista" faz questão de abstrair. Assim, em algum momento da discussão, o Dr. Brink, ou quem quer que o represente politicamente, teria de dizer, com base apenas em seus próprios dogmas: "Vejo com clareza que tais princípios trariam a felicidade humana ou outras consequências boas, e portanto todos devem obedecê-los, ainda que não concordem comigo"; ou então: "Tais princípios me parecem tão razoáveis que não concedo a ninguém o direito de questioná-los".

Em outras palavras, Brink não é capaz de estabelecer uma moral ateísta (ou compatível com o ateísmo) sem que ele mesmo ou alguma outra pessoa ocupe o papel de Deus - tanto do ponto de vista metafísico quanto do epistemológico, pois as duas coisas são indissociáveis. (E não adianta dizer que esse alguém é a humanidade em geral, pois o problema é justamente o fato de que alguém que não é a humanidade em geral terá de falar em nome dela.) A diferença é que Deus é infalível por definição; mas Brink quer conceder ao homem (melhor dizendo, a algum homem ou grupo seleto) direitos divinos ao mesmo tempo em que manifesta ter consciência da profunda falibilidade (cognitiva e moral) humana. A abordagem naturalista baseada na imparcialidade se fundamenta em uma simples abstração. Ela serve apenas para dar ao seu adepto a ilusão de que pode desprezar o "teísmo" de um modo simultaneamente inteligente e virtuoso por ser capaz de racionalizar dessa forma sua percepção da objetividade moral. E, na medida em que uma filosofia ética se torna abstrata, é também reducionista e impessoal. O efeito disso, no plano político, só pode ser o totalitarismo. Os filósofos pragmatistas que concluíram que o moralmente correto é o que o Estado determina como tal estavam apenas sendo coerentes com suas premissas.

A terceira abordagem que Brink apresenta é a kantiana, baseada na ideia de que "Ser um agente moral é ser responsável" e que os "requisitos morais" dependem "do que os agentes valorizam na medida em que são agentes racionais", isto é, "de características dos agentes morais enquanto tais". Dessa ênfase na racionalidade decorre o famoso imperativo categórico, pelo qual "devemos tratar todos os agentes racionais como fins em si e nunca meramente como meios". A filosofia moral de Kant é bem mais complexa, mas felizmente já escrevi um post inteiro sobre ela há alguns anos. Embora seja puramente descritiva, essa postagem antiga talvez ajude a compreender melhor minha insatisfação com essa filosofia, que tentarei explicar abaixo.

Kant era um racionalista - não no sentido estrito, mas no sentido amplo - e, de acordo com sua inclinação natural, quis construir uma filosofia moral baseada apenas no senso de dever (e, a se crer em Brink, na responsabilidade em um sentido causal). O resultado foi um "imperativo categórico" que nega relevância a tudo o que constitui uma pessoalidade autêntica: felicidade, amor e gratidão, por exemplo. Sua moral só leva em conta o dever e a razão. Ou, melhor dizendo, só leva em conta a razão, pois ela torna possível o dever, que é, no fundo, um dever para com a deusa Razão onde quer que ela se encarne - isto é, em outros seres racionais. Mesmo o brevíssimo resumo do Dr. Brink deixa isso claro.

Esse fato gera dois problemas básicos ao uso que Brink faz da moral kantiana. O primeiro é inerente à próprio kantismo, e decorre do fato de que da pura causação não se pode jamais deduzir uma responsabilidade no sentido moral; a filosofia de Kant não nos diz por que, afinal, devemos ser considerados responsáveis por nossas ações. Kant, como Brink, buscou fazer justiça à sua intuição da objetividade moral, mas não disse nada que convencesse alguém que não tivesse assentido de antemão aos pontos centrais de seu sistema filosófico particular. É claro que há nisso um elemento positivo: Kant sabia de algo que Brink quase sempre esquece, como já observei na segunda parte desta série: que não há objetividade moral possível sem um fundamento metafísico bem definido. Prova-o o próprio título da obra de Kant sobre o tema: "Fundamentação da metafísica dos costumes".

O segundo problema é que Kant jamais concordaria que a moralidade objetiva é compatível com o materialismo, e em parte suas razões para isso são boas; ele sabia que um fundamento transcendente era necessário, pois cria que o dever não é um conceito empírico, isto é, não se fundamenta no mundo fenomênico. A filosofia de Kant é humanista e secularista, sem dúvida, mas não é materialista. Porém, transcendência não basta, e Kant não entendia quão profundamente pessoal é a moralidade; ele não chegou nem perto de perceber que, como argumentei na quinta parte, uma moral objetiva só pode decorrer de uma Personalidade Absoluta. Decorre daí a aridez formalista de seu sistema, que contraditoriamente desconsidera inclusive as "propriedades naturais" das situações, como as que citei na sétima parte, e reduz os agentes morais a simples fagulhas da Razão.

Dessa forma, ao recorrer a Kant, Brink se coloca em uma dupla dificuldade: seu terceiro candidato, além de ser problemático por si mesmo, não é um aliado consistente do materialismo. Talvez seja por isso que Brink, ao descrever o pensamento de Kant, concentra-se nos pontos que não se chocam frontalmente com o materialismo. No entanto, a filosofia moral de Kant não pode ser coerentemente dissociada do restante de seu pensamento, que está pressuposto em sua elaboração da ética; tal mutilação seria fatal, inclusive, à sua utilidade como defesa da autonomia da ética.