Esta é uma série de sobre o artigo A autonomia da ética, em que o filósofo ateu americano David O. Brink busca livrar a objetividade da moral de um fundamento religioso. Desde a terceira parte, venho tratando especificamente de seu esforço de negar ao "teísmo" um papel metafísico na moralidade. Essa parte, que provavelmente é a mais importante, terminará hoje. Encerrei a postagem anterior apontando um problema em sua alegação de que as leis da lógica estão acima de Deus. Contudo, eu disse que eram dois problemas, e só expus o primeiro. Antes de abordar o segundo, devo fazer um esclarecimento. No parágrafo anterior, mostrei apenas que Brink não tem base racional para afirmar o que afirma. Não pretendo, porém, negar peremptoriamente que as leis da lógica e da aritmética sejam "verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis". Talvez de fato sejam. Algumas leis de Deus poderiam ser diferentes do que são; talvez todas pudessem, e talvez não. Qualquer que seja o caso, elas não são arbitrárias, mas revelam algo sobre a natureza de Deus, de modo analógico. Tentarei ilustrar o que quero dizer, sem muito rigor, começando por algo que C. S. Lewis disse no livro Cristianismo puro e simples:
"Tudo o que Deus fez tem alguma semelhança com ele. O espaço é como ele na imensidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é um tipo de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é como Deus por ter energia: embora, uma vez mais, é claro, a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é como ele porque é vivo, e ele é o 'Deus vivo'. Mas a vida, nesse sentido biológico, não é a mesma vida que há em Deus; é apenas um tipo, símbolo ou sombra dela. Quando passamos aos animais, encontramos outros tipos de semelhança além da vida biológica. A intensa atividade e fertilidade dos insetos, por exemplo, tem uma vaga semelhança com a atividade e a criatividade incessantes de Deus."
As comparações continuam, mas interromperei a citação aqui porque creio que a ideia já ficou clara. Seguindo pelo mesmo caminho, acredito que as regularidades do mundo físico e a harmonia da natureza revelam algo sobre o caráter ordeiro, confiável e imutável do Criador. A beleza das coisas criadas aponta para a criatividade e o bom gosto de Deus. Os inúmeros prazeres sadios à nossa disposição revelam algo sobre o amor e a generosidade de Deus. A abundância do sofrimento revela a ira justa de Deus contra a depravação e a rebeldia do homem. E as leis da lógica revelam algo sobre a coerência e a inteligência divinas. Nesse sentido, nada em toda a criação é arbitrário.
Não obstante, talvez Deus pudesse revelar exatamente os mesmos atributos e atitudes estabelecendo leis diferentes das que efetivamente escolheu. É claro que, na medida em que as verdades reveladas sobre Deus são as mesmas, existe um fundo comum a todas as leis possíveis. Mas a forma concreta dessas leis talvez pudesse ser diferente do que é. No caso em questão, talvez outros princípios lógicos pudessem revelar igualmente bem a coerência e a inteligência de Deus. Mas também pode ser que isso não seja verdade, e que ao menos algumas das leis que conhecemos sejam as melhores, ou mesmo as únicas compatíveis com o que Deus pretendia revelar através delas. Nesse caso, Brink está correto ao aludir a elas como "verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis". Mas - e aqui está o segundo problema - nem por isso estaria justificado em dizer que "então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus". Com isso ele quer dizer que essas leis estão acima de Deus, não sendo, portanto, leis criadas por ele para revelar seu caráter e seus atributos. Ainda que as leis da lógica sejam as únicas que Deus poderia usar para revelar sua inteligência, coerência e racionalidade, elas continuariam sendo criaturas, feitas por sua livre iniciativa para esse fim.
Uma vez mais, Brink não tem argumento algum para sustentar o que sustenta. Na verdade, ele trata do assunto com considerável superficialidade, e até, ouso dizer, com amadorismo. Ele visivelmente não está bem informado sobre os desenvolvimentos teológico-filosóficos do conceito de lei dentro do cristianismo. Não digo isso com o propósito de espezinhá-lo, e sim porque esse fato me parece um (ou mais um) indício relevante de seu pouco interesse real pela religião em geral, e pelo cristianismo em particular, e essa postura inevitavelmente compromete a qualidade de sua argumentação. Com isso pretendo não só apontar um erro argumentativo, mas também apontar que esse erro brota de uma disposição mental pouco saudável. Mas estou satisfeito porque o equívoco em questão me deu oportunidade de escrever sobre o assunto pela primeira vez.
Devo apenas acrescentar, antes de passar adiante, que não considero "minhas" as ideias que acabo de expor, no sentido de alguma pretensa originalidade. Ao mesmo tempo, porém, não tenho a quem atribuí-las sem correr certo risco. A inspiração de meu argumento, muito mais que em Lewis, se encontra no filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd. Acredito que é pelas razões que acabo de expor que ele não gostava de falar da lógica (ou de qualquer outro conjunto de leis) como "atributos" de Deus, como fazia Gordon Clark. (Transposto para o terreno da lei moral, a ideia deste último guardaria certo parentesco com a de Norman Kretzmann, que Brink menciona em [n9]. Isso, naturalmente, se Brink o tiver entendido direito, coisa de que ele mesmo não tem certeza, e que é honesto e humilde o suficiente para comunicar aos seus leitores.) Ao contrário, o holandês preferia descrevê-las como "absolutos criados". Passei a gostar dessa expressão no momento em que entendi o que significa - e isso, convém dizer, não foi muito fácil para alguém de índole racionalista como eu.
Porém, a verdade é que não conheço o pensamento de Dooyeweerd em profundidade. É nisso que reside o perigo a que me referi. De qualquer forma, creio que ele endossaria pelo menos em parte o que acabo de defender, já que uma de suas ênfases mais marcantes (e mais mal compreendidas) é a de que as leis estão abaixo de Deus e são parte de sua criação. Para mim, a expressão "absolutos criados" preserva magistralmente a soberania de Deus e o caráter criatural de todas as leis que regem o universo, ao mesmo tempo em que não deixa lugar a uma acusação séria de arbitrariedade, na medida em que as leis, assim como o restante da criação, destinam-se precisamente a revelar o caráter de Deus, que é uma coisa muito definida. Mas aqui posso já estar me afastando de Dooyeweerd rumo às ênfases de Cornelius Van Til.
Diante do exposto, não é difícil notar o quanto o Deus do cristianismo é diferente dos deuses pagãos em que Platão pensava ao escrever o Eutífron - e, por conseguinte, diferente do conceito que o Dr. Brink constrói sobre o Deus do "teísmo", que é, no fim das contas, um deus politeísta que conseguiu eliminar a concorrência, um sujeito que, exceto por seu tamanho, não tem nada que o distinga de todos os demais seres pessoais do universo. Mesmo de um ponto de vista estritamente metafísico, um deus do panteão grego (ou qualquer outro) dotado de poder e inteligência infinitos ainda está muito, muito longe de ser o Deus do cristianismo. Entretanto, esse conceito um tanto infantil de Deus é o único abordado no artigo, e se manifesta em inúmeras partes dele, a tal ponto que eu gastaria um espaço considerável no simples esforço de listar essas manifestações. Mas cito ao menos um exemplo, o da conclusão da seção, em [6.1]:
"O subjectivismo ético é uma maneira de negar a objectividade ética. Afirma que o que é bom ou mau e correcto ou incorrecto depende das crenças e atitudes morais de quem avalia as coisas. [...] Mas o voluntarismo implica que as atitudes de Deus desempenham um papel metafísico, e não apenas epistémico, na moralidade; as suas atitudes fazem as coisas boas ou correctas. Isto é uma forma de subjectivismo em ética. Mas então a suposição de que a moralidade exige uma fundação religiosa, como o voluntarismo insiste, ameaça a objectividade da moralidade, em vez de a vindicar."
É isso o que o autor entende por "autonomia da ética". Seu argumento só faz algum sentido se for presumido que Deus, se existir, é uma pessoa como outra qualquer. Há um problema nisso, que tentarei explicar. Todas as noites eu prendo meus dois gatos em um cômodo do nosso apartamento, contra a vontade deles. Até hoje, ninguém foi insensato o suficiente para me dizer que isso é imoral. Mas todos pensariam diferente se eu fizesse o mesmo com hóspedes humanos. A diferença está no que Brink, em [4.4], chama de "propriedades naturais": não posso aplicar as mesmas regras morais indistintamente em meu lidar com gatos e homens, porque são dois tipos diferentes de seres, com os quais devo me relacionar de modo correspondentemente diferente. Mesmo entre seres de mesmo status ontológico essas diferenças se verificam, em virtude de diferentes funções. Um juiz pode sentenciar um criminoso a dez anos de prisão, e um carcereiro pode mantê-lo preso durante esse período em um local designado para esse fim. Mas eu, que não sou juiz nem carcereiro, não posso condenar alguém e mantê-lo em cativeiro, por pior criminoso que esse alguém seja. E tudo isso apesar do fato de que o juiz, o carcereiro, o criminoso e eu somos igualmente seres humanos. Da mesma forma, um professor tem autoridade para repreender um aluno que esteja tumultuando a aula e, no limite, tem o poder (ou até o dever) de colocar esse aluno para fora da sala. Mas o aluno não pode expulsar o professor, por mais que este esteja atrapalhando seu aprendizado.
Há muita cegueira (e, às vezes, hipocrisia) no discurso moderno contra a autoridade, mas não pretendo me delongar nesse ponto. Desejo apenas chamar a atenção para um fato deveras revelador: não falta ao autor uma percepção do que acabo de dizer. Ele defende expressamente em [4.4] que "as propriedades morais das acções, pessoas, instituições e situações dependem de um modo sistemático das suas propriedades naturais - por exemplo, de propriedades biológicas, psicológicas, legais e sociais". Não obstante, ele não se permite sequer levantar a conjectura de que o papel de Deus como Criador e Autor de tudo o que temos, a começar por nossa própria existência, possa ter alguma implicação moral relevante. É assim, por exemplo, que Brink sugere alguma imoralidade divina ao ordenar o sacrifício de Isaque em [n7]. O mínimo que posso dizer (e, por enquanto, ficarei nesse mínimo) é que não é óbvio que o Criador tenha as mesmas obrigações e prerrogativas morais que suas criaturas. No entanto, fico com a impressão de que, para o Dr. Brink, embora as diferenças entre um gato e seu dono, entre um cidadão comum e um juiz ou carcereiro e entre um professor e um aluno sejam importantíssimas, a diferença infinita entre o Criador e suas criaturas feitas ex nihilo não tem importância alguma, não é uma "propriedade natural" relevante, não merece discussão, nem sequer menção. Parece jamais ocorrer ao Dr. Brink que o homem possa ter algum dever de obediência, ou mesmo de simples gratidão, em relação a esse Deus - um dever que, por motivos óbvios, Deus não teria em relação ao homem.
É no mesmo espírito que Brink afirma, em [n8], que o vilão voluntarista identifica "a valência moral de algo com a sua disposição para provocar aprovação num avaliador apropriado", e assim "está comprometido com uma forma de particularismo moral", o que é visto como "uma razão complementar para rejeitar o voluntarismo". Assim, Deus é considerado como não mais que um candidato a "avaliador apropriado", em pé de igualdade com qualquer outro que porventura venha a se apresentar. Brink nunca entendeu seriamente o conceito bíblico de criação em geral, e de criação do homem à imagem e semelhança de Deus em particular. Se tivesse entendido a primeira parte, veria que é absurdo igualar o conhecimento do autor das leis ao daqueles para os quais ela foi criada. E, entendendo o segundo, veria que o caráter de Deus é normativo para o homem ("Sede santos, porque eu sou santo") em virtude dessa mesma imagem e semelhança, que nos é constitutiva. Desobedecer a Deus é, entre outras coisas, ir contra a norma de nossa natureza.
É nada menos que lamentável que toda essa cegueira apareça em um artigo que trata dos fundamentos da rejeição da ética "teísta". Mesmo de um ponto de vista estritamente intelectual, a argumentação de Brink deixa muito a desejar, a despeito de sua formação acadêmica e de sua inteligência e sensatez claramente perceptíveis em vários pontos. E não poderia ser diferente, pois Brink ignora praticamente tudo sobre o conteúdo, os fundamentos, as motivações e as implicações da ideia que combate.
E isso me leva à última coisa que devo dizer antes de passar à próxima seção: diante do exposto, só posso considerar presunçosa a atitude do autor ao dizer, como diz em [5.3], que "o naturalismo tanto parece a melhor aposta para os ateístas e agnósticos como para os teístas". Essa generalização só se justificaria na medida em que o autor entendesse de fato o que é o "teísmo" e quais são as motivações de seus adeptos. Demonstrei abundantemente até aqui que Brink não alcançou tal entendimento, e sequer chegou perto dele. É verdade que há teísmos para todos os gostos, e alguma vertente deve se enquadrar bem no retrato pintado por ele. Mas isso é tanto um atenuante quanto um agravante: se o que Brink diz só se aplica a determinados grupos teístas, ele não lidou de modo algum com "o" teísmo. Aliás, é por isso mesmo que venho colocando o termo "teísmo" entre aspas ao longo de toda esta série: ele diz muito pouco, a tal ponto que não tenho qualquer interesse em defendê-lo. Pensando lidar com características universais, comuns a todos os teísmos, o autor fez apenas uma caricatura barata da maioria deles. E, pelo menos no caso do "teísmo" que defendo, deixou de fora com muita satisfação quase tudo o que há de importante.
É também por isso que considero presunçosa a pretensão do autor de falar em nome do "teísmo", ditando os interesses deste a partir dos pressupostos de seu ateísmo. Brink é dogmático o suficiente para impor seus critérios universalmente, como regras universais da própria deusa Razão. Para mim, no entanto, seus critérios são apenas uma das partes do problema. São, para ser mais exato, uma das manifestações mais exteriores de sua profunda decisão nada racional de não se submeter a Deus, seja ele quem for. É também por essa motivação oculta (ou nem tão oculta) que Brink insiste em tratar o Deus verdadeiro como mais um deus pequeno.
"Tudo o que Deus fez tem alguma semelhança com ele. O espaço é como ele na imensidão; não que a grandeza do espaço seja do mesmo tipo que a grandeza de Deus, mas é um tipo de símbolo dela, ou uma tradução dela em termos não-espirituais. A matéria é como Deus por ter energia: embora, uma vez mais, é claro, a energia física seja diferente do poder de Deus. O mundo vegetal é como ele porque é vivo, e ele é o 'Deus vivo'. Mas a vida, nesse sentido biológico, não é a mesma vida que há em Deus; é apenas um tipo, símbolo ou sombra dela. Quando passamos aos animais, encontramos outros tipos de semelhança além da vida biológica. A intensa atividade e fertilidade dos insetos, por exemplo, tem uma vaga semelhança com a atividade e a criatividade incessantes de Deus."
As comparações continuam, mas interromperei a citação aqui porque creio que a ideia já ficou clara. Seguindo pelo mesmo caminho, acredito que as regularidades do mundo físico e a harmonia da natureza revelam algo sobre o caráter ordeiro, confiável e imutável do Criador. A beleza das coisas criadas aponta para a criatividade e o bom gosto de Deus. Os inúmeros prazeres sadios à nossa disposição revelam algo sobre o amor e a generosidade de Deus. A abundância do sofrimento revela a ira justa de Deus contra a depravação e a rebeldia do homem. E as leis da lógica revelam algo sobre a coerência e a inteligência divinas. Nesse sentido, nada em toda a criação é arbitrário.
Não obstante, talvez Deus pudesse revelar exatamente os mesmos atributos e atitudes estabelecendo leis diferentes das que efetivamente escolheu. É claro que, na medida em que as verdades reveladas sobre Deus são as mesmas, existe um fundo comum a todas as leis possíveis. Mas a forma concreta dessas leis talvez pudesse ser diferente do que é. No caso em questão, talvez outros princípios lógicos pudessem revelar igualmente bem a coerência e a inteligência de Deus. Mas também pode ser que isso não seja verdade, e que ao menos algumas das leis que conhecemos sejam as melhores, ou mesmo as únicas compatíveis com o que Deus pretendia revelar através delas. Nesse caso, Brink está correto ao aludir a elas como "verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis". Mas - e aqui está o segundo problema - nem por isso estaria justificado em dizer que "então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus". Com isso ele quer dizer que essas leis estão acima de Deus, não sendo, portanto, leis criadas por ele para revelar seu caráter e seus atributos. Ainda que as leis da lógica sejam as únicas que Deus poderia usar para revelar sua inteligência, coerência e racionalidade, elas continuariam sendo criaturas, feitas por sua livre iniciativa para esse fim.
Uma vez mais, Brink não tem argumento algum para sustentar o que sustenta. Na verdade, ele trata do assunto com considerável superficialidade, e até, ouso dizer, com amadorismo. Ele visivelmente não está bem informado sobre os desenvolvimentos teológico-filosóficos do conceito de lei dentro do cristianismo. Não digo isso com o propósito de espezinhá-lo, e sim porque esse fato me parece um (ou mais um) indício relevante de seu pouco interesse real pela religião em geral, e pelo cristianismo em particular, e essa postura inevitavelmente compromete a qualidade de sua argumentação. Com isso pretendo não só apontar um erro argumentativo, mas também apontar que esse erro brota de uma disposição mental pouco saudável. Mas estou satisfeito porque o equívoco em questão me deu oportunidade de escrever sobre o assunto pela primeira vez.
Devo apenas acrescentar, antes de passar adiante, que não considero "minhas" as ideias que acabo de expor, no sentido de alguma pretensa originalidade. Ao mesmo tempo, porém, não tenho a quem atribuí-las sem correr certo risco. A inspiração de meu argumento, muito mais que em Lewis, se encontra no filósofo neocalvinista holandês Herman Dooyeweerd. Acredito que é pelas razões que acabo de expor que ele não gostava de falar da lógica (ou de qualquer outro conjunto de leis) como "atributos" de Deus, como fazia Gordon Clark. (Transposto para o terreno da lei moral, a ideia deste último guardaria certo parentesco com a de Norman Kretzmann, que Brink menciona em [n9]. Isso, naturalmente, se Brink o tiver entendido direito, coisa de que ele mesmo não tem certeza, e que é honesto e humilde o suficiente para comunicar aos seus leitores.) Ao contrário, o holandês preferia descrevê-las como "absolutos criados". Passei a gostar dessa expressão no momento em que entendi o que significa - e isso, convém dizer, não foi muito fácil para alguém de índole racionalista como eu.
Porém, a verdade é que não conheço o pensamento de Dooyeweerd em profundidade. É nisso que reside o perigo a que me referi. De qualquer forma, creio que ele endossaria pelo menos em parte o que acabo de defender, já que uma de suas ênfases mais marcantes (e mais mal compreendidas) é a de que as leis estão abaixo de Deus e são parte de sua criação. Para mim, a expressão "absolutos criados" preserva magistralmente a soberania de Deus e o caráter criatural de todas as leis que regem o universo, ao mesmo tempo em que não deixa lugar a uma acusação séria de arbitrariedade, na medida em que as leis, assim como o restante da criação, destinam-se precisamente a revelar o caráter de Deus, que é uma coisa muito definida. Mas aqui posso já estar me afastando de Dooyeweerd rumo às ênfases de Cornelius Van Til.
Diante do exposto, não é difícil notar o quanto o Deus do cristianismo é diferente dos deuses pagãos em que Platão pensava ao escrever o Eutífron - e, por conseguinte, diferente do conceito que o Dr. Brink constrói sobre o Deus do "teísmo", que é, no fim das contas, um deus politeísta que conseguiu eliminar a concorrência, um sujeito que, exceto por seu tamanho, não tem nada que o distinga de todos os demais seres pessoais do universo. Mesmo de um ponto de vista estritamente metafísico, um deus do panteão grego (ou qualquer outro) dotado de poder e inteligência infinitos ainda está muito, muito longe de ser o Deus do cristianismo. Entretanto, esse conceito um tanto infantil de Deus é o único abordado no artigo, e se manifesta em inúmeras partes dele, a tal ponto que eu gastaria um espaço considerável no simples esforço de listar essas manifestações. Mas cito ao menos um exemplo, o da conclusão da seção, em [6.1]:
"O subjectivismo ético é uma maneira de negar a objectividade ética. Afirma que o que é bom ou mau e correcto ou incorrecto depende das crenças e atitudes morais de quem avalia as coisas. [...] Mas o voluntarismo implica que as atitudes de Deus desempenham um papel metafísico, e não apenas epistémico, na moralidade; as suas atitudes fazem as coisas boas ou correctas. Isto é uma forma de subjectivismo em ética. Mas então a suposição de que a moralidade exige uma fundação religiosa, como o voluntarismo insiste, ameaça a objectividade da moralidade, em vez de a vindicar."
É isso o que o autor entende por "autonomia da ética". Seu argumento só faz algum sentido se for presumido que Deus, se existir, é uma pessoa como outra qualquer. Há um problema nisso, que tentarei explicar. Todas as noites eu prendo meus dois gatos em um cômodo do nosso apartamento, contra a vontade deles. Até hoje, ninguém foi insensato o suficiente para me dizer que isso é imoral. Mas todos pensariam diferente se eu fizesse o mesmo com hóspedes humanos. A diferença está no que Brink, em [4.4], chama de "propriedades naturais": não posso aplicar as mesmas regras morais indistintamente em meu lidar com gatos e homens, porque são dois tipos diferentes de seres, com os quais devo me relacionar de modo correspondentemente diferente. Mesmo entre seres de mesmo status ontológico essas diferenças se verificam, em virtude de diferentes funções. Um juiz pode sentenciar um criminoso a dez anos de prisão, e um carcereiro pode mantê-lo preso durante esse período em um local designado para esse fim. Mas eu, que não sou juiz nem carcereiro, não posso condenar alguém e mantê-lo em cativeiro, por pior criminoso que esse alguém seja. E tudo isso apesar do fato de que o juiz, o carcereiro, o criminoso e eu somos igualmente seres humanos. Da mesma forma, um professor tem autoridade para repreender um aluno que esteja tumultuando a aula e, no limite, tem o poder (ou até o dever) de colocar esse aluno para fora da sala. Mas o aluno não pode expulsar o professor, por mais que este esteja atrapalhando seu aprendizado.
Há muita cegueira (e, às vezes, hipocrisia) no discurso moderno contra a autoridade, mas não pretendo me delongar nesse ponto. Desejo apenas chamar a atenção para um fato deveras revelador: não falta ao autor uma percepção do que acabo de dizer. Ele defende expressamente em [4.4] que "as propriedades morais das acções, pessoas, instituições e situações dependem de um modo sistemático das suas propriedades naturais - por exemplo, de propriedades biológicas, psicológicas, legais e sociais". Não obstante, ele não se permite sequer levantar a conjectura de que o papel de Deus como Criador e Autor de tudo o que temos, a começar por nossa própria existência, possa ter alguma implicação moral relevante. É assim, por exemplo, que Brink sugere alguma imoralidade divina ao ordenar o sacrifício de Isaque em [n7]. O mínimo que posso dizer (e, por enquanto, ficarei nesse mínimo) é que não é óbvio que o Criador tenha as mesmas obrigações e prerrogativas morais que suas criaturas. No entanto, fico com a impressão de que, para o Dr. Brink, embora as diferenças entre um gato e seu dono, entre um cidadão comum e um juiz ou carcereiro e entre um professor e um aluno sejam importantíssimas, a diferença infinita entre o Criador e suas criaturas feitas ex nihilo não tem importância alguma, não é uma "propriedade natural" relevante, não merece discussão, nem sequer menção. Parece jamais ocorrer ao Dr. Brink que o homem possa ter algum dever de obediência, ou mesmo de simples gratidão, em relação a esse Deus - um dever que, por motivos óbvios, Deus não teria em relação ao homem.
É no mesmo espírito que Brink afirma, em [n8], que o vilão voluntarista identifica "a valência moral de algo com a sua disposição para provocar aprovação num avaliador apropriado", e assim "está comprometido com uma forma de particularismo moral", o que é visto como "uma razão complementar para rejeitar o voluntarismo". Assim, Deus é considerado como não mais que um candidato a "avaliador apropriado", em pé de igualdade com qualquer outro que porventura venha a se apresentar. Brink nunca entendeu seriamente o conceito bíblico de criação em geral, e de criação do homem à imagem e semelhança de Deus em particular. Se tivesse entendido a primeira parte, veria que é absurdo igualar o conhecimento do autor das leis ao daqueles para os quais ela foi criada. E, entendendo o segundo, veria que o caráter de Deus é normativo para o homem ("Sede santos, porque eu sou santo") em virtude dessa mesma imagem e semelhança, que nos é constitutiva. Desobedecer a Deus é, entre outras coisas, ir contra a norma de nossa natureza.
É nada menos que lamentável que toda essa cegueira apareça em um artigo que trata dos fundamentos da rejeição da ética "teísta". Mesmo de um ponto de vista estritamente intelectual, a argumentação de Brink deixa muito a desejar, a despeito de sua formação acadêmica e de sua inteligência e sensatez claramente perceptíveis em vários pontos. E não poderia ser diferente, pois Brink ignora praticamente tudo sobre o conteúdo, os fundamentos, as motivações e as implicações da ideia que combate.
E isso me leva à última coisa que devo dizer antes de passar à próxima seção: diante do exposto, só posso considerar presunçosa a atitude do autor ao dizer, como diz em [5.3], que "o naturalismo tanto parece a melhor aposta para os ateístas e agnósticos como para os teístas". Essa generalização só se justificaria na medida em que o autor entendesse de fato o que é o "teísmo" e quais são as motivações de seus adeptos. Demonstrei abundantemente até aqui que Brink não alcançou tal entendimento, e sequer chegou perto dele. É verdade que há teísmos para todos os gostos, e alguma vertente deve se enquadrar bem no retrato pintado por ele. Mas isso é tanto um atenuante quanto um agravante: se o que Brink diz só se aplica a determinados grupos teístas, ele não lidou de modo algum com "o" teísmo. Aliás, é por isso mesmo que venho colocando o termo "teísmo" entre aspas ao longo de toda esta série: ele diz muito pouco, a tal ponto que não tenho qualquer interesse em defendê-lo. Pensando lidar com características universais, comuns a todos os teísmos, o autor fez apenas uma caricatura barata da maioria deles. E, pelo menos no caso do "teísmo" que defendo, deixou de fora com muita satisfação quase tudo o que há de importante.
É também por isso que considero presunçosa a pretensão do autor de falar em nome do "teísmo", ditando os interesses deste a partir dos pressupostos de seu ateísmo. Brink é dogmático o suficiente para impor seus critérios universalmente, como regras universais da própria deusa Razão. Para mim, no entanto, seus critérios são apenas uma das partes do problema. São, para ser mais exato, uma das manifestações mais exteriores de sua profunda decisão nada racional de não se submeter a Deus, seja ele quem for. É também por essa motivação oculta (ou nem tão oculta) que Brink insiste em tratar o Deus verdadeiro como mais um deus pequeno.
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