13 de maio de 2013

Deveres sem pessoas - parte 6

Nesta postagem, passarei a dar mais atenção aos comentários de David O. Brink sobre o naturalismo ético no artigo A autonomia da ética, depois de ter escrito um bocado sobre seus comentários em torno do voluntarismo. Em [3.1], Brink definiu a "doutrina dos mandamentos divinos" da seguinte forma: "Se Deus existe, x é bom ou correcto se, e só se, Deus aprova x." Não discutirei a exatidão teológica da definição, nem sua pertinência. O que importa é assinalar que, para o autor, o entendimento voluntarista dessa sentença implica que "o voluntarismo e o ateísmo implicam conjuntamente o niilismo". Ele está dizendo, de modo menos pungente, a mesma coisa que Dostoyevsky afirmou ao declarar que "Se Deus não existe, tudo é permitido". Por outro lado, em [3.5], o autor extrai dessa afirmação condicional a seguinte conclusão: "Porque o naturalismo não faz as qualidades morais depender da existência ou vontade de Deus, implica que estas qualidades existiriam mesmo que não existisse Deus. Assim, o naturalismo implica que o ateísmo não implica o niilismo nem o relativismo." Em outras palavras, se o naturalismo for verdadeiro, então existe uma moral objetiva, mesmo que Deus não exista. Essa percepção é um primor de coerência lógica, no sentido da validade formal do argumento. Ao mesmo tempo, porém, constitui uma total falta de sensatez quanto ao fundamento metafísico das premissas adotadas, e isso torna o argumento inútil. Tentarei ilustrar isso com um exemplo mais palpável que mantém a mesma forma lógica. Consideremos o seguinte arrazoado, de inspiração um tanto baconiana:

Se a magia existe, podemos voltar no tempo por meio dela ou do progresso científico e tecnológico. Contudo, o argumento X prova que não existe magia. Portanto, no futuro os seres humanos serão capazes de voltar no tempo graças às descobertas científicas e desenvolvimentos tecnológicos que ainda serão feitos até lá.

Ainda que o argumento X seja imbatível e a eficácia da magia possa ser dada como nula, é fácil perceber que algo está faltando nesse arrazoado: nada ali prova que a ciência descobriu, descobrirá ou mesmo poderia descobrir um meio de proporcionar viagens no tempo. O ponto cego na argumentação de Brink é formalmente idêntico: ele não prova que há uma moral objetiva, e tampouco prova que, havendo tal coisa, ela é compatível com o materialismo. Como já apontei na segunda parte da presente série, esse problema já estava prenunciado em [1.1], e aqui atinge sua forma mais desenvolvida.

A parte final dessa seção, [5.1-6.1], foi totalmente ignorada até aqui, e agora lidarei com ela. Já expliquei por que considero falsa a escolha que ele propõe: nenhuma das opções, voluntarismo e naturalismo, corresponde à posição cristã histórica, e o voluntarismo descrito no artigo não é muito mais que um boneco de palha. Ainda assim, essa seção levanta uma questão pertinente: como é dito em [5.1], o naturalismo aparentemente "compromete a omnipotência de Deus", pois, "Se as exigências morais são independentes da vontade de Deus, e lhe dão forma, então estão para lá do seu controlo". Essa argumentação é melhor desenvolvida e expandida em [5.2], de onde extraio alguns trechos:

"Se os monoteístas tradicionais devem encará-la ou não como uma boa objecção ao naturalismo é algo que depende de como concebemos a omnipotência. Se a concebermos como a capacidade para fazer tudo, então o naturalismo compromete realmente a omnipotência de Deus. [...] Mas os teístas tradicionais enfrentam um dilema comparável em qualquer caso. É difícil acreditar que Deus poderia mudar as leis da lógica (e.g., o princípio da não contradição) ou as verdades da aritmética (e.g., que 2 + 2 = 4). Estas são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis, e não conseguimos conceber como seria um mundo no qual não fossem verdadeiras. Se aceitarmos isto, então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus. [...] Mas talvez a omnipotência não seja o poder para fazer tudo, mas antes o poder para fazer tudo o que é possível, tudo o que não seja inconsistente com as verdades e leis necessárias. Se aceitarmos isto, então a incapacidade de Deus para mudar as leis da lógica e da matemática não tem de comprometer a sua omnipotência. Mas, do mesmo modo, a incapacidade de Deus para tornar bens intrínsecos em males ou males intrínsecos em bens não tem de comprometer a sua omnipotência. Mas então o naturalismo não tem de comprometer a omnipotência de Deus."

Com base nesse argumento, e na discussão precedente sobre o voluntarismo, Brink conclui coerentemente em favor do naturalismo em [5.3]:

"O naturalismo não só explica como o ateísta pode reconhecer exigências morais, mas também permite aos teístas explicar a bondade de Deus e ver que os seus mandamentos se baseiam em princípios, em vez de serem arbitrários. Deste modo, o naturalismo tanto parece a melhor aposta para os ateístas e agnósticos como para os teístas."

Já discorri o bastante sobre o argumento da arbitrariedade, e também sobre a falta que faz no artigo uma defesa da conciliação possível entre naturalismo moral e ateísmo. Mas algumas coisas precisam ser ditas sobre essa questão das limitações de Deus. Em certo sentido, o cristianismo as admite. O renomado teólogo Louis Berkhof, por exemplo, afirma em sua clássica Teologia sistemática que "há muitas coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode mentir, pecar, mudar, e não pode negar-se a Si próprio" e cita várias passagens bíblicas que afirmam tudo isso textualmente: Números 23.19, 1 Samuel 15.29, 2 Timóteo 2.13, Hebreus 6.18 e Tiago 1.13,17. Contudo, é fácil ver que o que se quer dizer com isso é que Deus não pode fazer tais coisas porque fazê-las seria contrário à sua natureza, e não porque haja leis ou princípios acima dele impossibilitando-o de fazê-las. Isso é o que distingue tais impossibilidades das que Brink tem em mente. Quando este diz que Deus não pode mudar as leis da lógica, da matemática e da moral, tem em mente esse segundo tipo de impossibilidade, como o contexto de todo o artigo deixa claro. Já defendi que a ideia de uma lei moral impessoal em sentido último carece de sentido, pois todo dever moral subentende uma relação entre pessoas. No entanto, não é óbvio que o mesmo possa ser dito sobre leis lógicas e matemáticas, e até alguns pensadores cristãos se inclinam a uma posição mais próxima à de Brink nesses casos. A questão levantada é relevante, e devo dizer o que penso sobre isso. Mas creio que posso fazer isso melhor valendo-me de uma pequena digressão, e peço desde já a paciência do leitor.

O teólogo e filósofo Gordon Clark era, como eu, calvinista e pressuposicionalista. Não obstante, todos os meus leitores razoavelmente assíduos sabem que tenho reservas algo severas quanto à sua filosofia. Certa vez, em comentário a um de meus posts, um leitor citou a tese clarkeana de que "a lógica [é] um atributo da Deidade". Na verdade, Clark acreditava que não havia nenhum problema em traduzir João 1.1 como "No princípio era a Lógica, e a Lógica estava com Deus, e a Lógica era Deus". Recentemente, escrevi o que penso sobre isso nos seguintes termos:

"[...] afirmar que "a lógica [é] um atributo da Deidade" [...] quer dizer que a coerência lógica é um atributo dos pensamentos de Deus. Posso concordar com isso, no sentido de que tais pensamentos podem ser, em princípio, estruturados e declarados de forma lógica por Ele mesmo. Isso não quer dizer, porém, que [...] Deus pense efetuando silogismos ou algo do tipo. Só seres finitos e temporais, que precisam raciocinar para conhecer a verdade sobre as coisas, pensam concretamente dessa forma. Se os pensamentos de Deus podem ser estruturados de forma lógica, só pode ser por meio de uma adaptação a posteriori, e isso nada diz sobre o modo como Deus pensa concretamente. Por isso evito dizer que "a lógica [é] um atributo da Deidade": essa formulação é imprecisa e induz ao erro por excesso de simplificação."

Acho importante citar essa breve argumentação porque ela mostra não só que não há consenso entre os cristãos sobre o tema, mas também que, em minha opinião, não se pode dizer apropriadamente que as leis da lógica sejam parte de Deus, e muito menos que estejam acima dele. Pelo motivo que levantei acima, falando em termos mais rigorosos, as leis da lógica só descrevem adequadamente o pensamento correto de criaturas temporais dotadas de conhecimentos limitados. Ao mesmo tempo, procurei mostrar que isso não significa que Deus seja irracional, pois a diferença qualitativa entre o pensamento de Deus e o nosso se deve a uma limitação nossa, não dele. Talvez essa diferença possa ser enquadrada no conceito de transposição, que Lewis apresentou em um dos capítulos de seu livro Peso de glória, e do qual fiz uma breve exposição nesta postagem. Seja como for, não considero convincentes os argumentos de Brink, que já transcrevi acima, mas repito aqui:

"É difícil acreditar que Deus poderia mudar as leis da lógica (e.g., o princípio da nãocontradição) ou as verdades da aritmética (e.g., que 2 + 2 = 4). Estas são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis, e não conseguimos conceber como seria um mundo no qual não fossem verdadeiras. Se aceitarmos isto, então já reconhecemos que algumas verdades necessárias estão para lá do controlo de Deus."

Há dois problemas nessa linha argumentativa. O primeiro é que dizer que "não conseguimos conceber" algo de modo algum prova a impossibilidade metafísica desse algo. Eu poderia dizer que não consigo deixar de atrair outro corpo material com uma força diretamente proporcional ao produto de nossas respectivas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância nos separa. Mas isso, dentro de uma cosmovisão "teísta" (pressuposta nesse ponto da argumentação de Brink), só prova que Deus estabeleceu a gravitação universal como uma das leis que regem o comportamento da matéria. Não prova que Deus não poderia criar um mundo em que tal lei não existisse ou fosse diferente. Naturalmente, Brink poderia objetar que um universo com outras leis físicas é ao menos concebível, o que não ocorre com as leis lógicas e aritméticas. Porém, talvez isso se deva ao simples fato de que as leis físicas se aplicam à matéria, não ao pensamento. Nossos pensamentos podem conceber outras leis da gravitação universal apenas porque não estão sujeitos à gravitação universal, uma vez que não possuem massa. Se não podemos conceber leis lógicas diferentes - o que não considero óbvio, mas assumirei como verdadeiro para fins de argumentação -, é porque as leis que existem foram criadas justamente para legislar sobre nossos pensamentos. Assim, nossa mente não pode pensar sem as leis elementares da lógica assim como nosso corpo não pode existir sem atrair outros corpos de determinada maneira, e pela mesma razão: nossa incontornável sujeição às leis que Deus estabeleceu para as diversas esferas de sua criação. Isso não prova de modo algum que as leis não poderiam ser outras em qualquer dos casos. Brink não tem nenhuma prova de que as leis da lógica e da aritmética "são verdades necessárias, verdadeiras em todos os mundos possíveis", e sequer tenta fornecê-la. Essa frase apenas revela uma confusão de categorias epistemológicas com categorias ontológicas. E esse é o primeiro problema. Na próxima postagem descreverei o outro e farei algumas considerações finais sobre essa seção do artigo.

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