28 de fevereiro de 2013

Fragmentos de razões - parte 3

Nos posts anteriores desta série, lidei com vários elementos do comentário do Jorge à primeira parte de minha série O direito ao mistério, de 2010. Antes de passar a outros comentários, ainda dentro do mesmo tema, devo dizer apenas mais duas coisinhas rápidas sobre aquele comentário. O primeiro diz respeito ao seguinte trecho da argumentação do Jorge:

"Então, acho que no que disse anteriormente há uma pitada de fé, de crer que, a despeito da minha ignorância e incapacidade de compreender certas questões, a Bíblia não tem paradoxos ou antinomias. Mas, sobretudo, porque, como a palavra fiel de Deus, ela é santa e perfeita, e em si mesmo garante-nos a sua santidade e perfeição porque proveniente do Deus santo e perfeito; logo, objetivamente, não é uma questão subjetiva, ainda que seja de fé. Nesse caso, a fé objetiva na palavra objetiva que garante a objetiva perfeição e santidade do texto sagrado. Não há espaço para antinomias, há para mistérios (sem esquecer que mistério não é algo contraditório, mas oculto, não revelado); é isso o que ela nos diz."

O que convém ressaltar é que toda a força retórica desse argumento reside no pressuposto implícito de que perfeição implica em ausência de paradoxos. Diante dos esclarecimentos e objeções que levantei na primeira parte da presente série, e na ausência de argumentações mais sólidas por parte de meus interlocutores, que até aqui têm se limitado a repetir sua premissa sem qualquer tentativa de fundamentação mais sólida, creio que posso dar encerrado esse ponto específico por enquanto.

A segunda coisinha que tenho a dizer é sobre as palavras finais do Jorge naquele comentário:

"Como decidi não ler os demais textos antes de tecer meus comentários, não sei o que vem pela frente. Mas se eu parar, saiba que é por completa inaptidão, e você pode ter certeza de que tem um aliado na luta contra Crampton e essa turma de desmancha-prazeres, que querem impedir o direito ao paradoxo (rsrs)."

Visto que, depois de ter lido as partes seguintes, ele não fez nenhum comentário a respeito, seria de se supor que ele se convenceu de meus argumentos e se tornou meu aliado. No entanto, essa tese é desmentida por seus comentários posteriores a outros pontos. Que o Jorge me perdoe a piada irresistível, mas o fato é que não vejo solução para esse paradoxo. Mas digo isso apenas porque eu realmente gostaria que ele tivesse analisado mais detidamente meus textos e explicado, sem circularidades, por que meus melhores argumentos não o convenceram. E isto que escrevo agora manifesta minha esperança de que nosso diálogo ainda possa se tornar mais produtivo nesse sentido.

O outro comentário relevante do Jorge foi feito na parte 2 da série O irracional dos racionalismos. Também aqui não recebi nenhuma resposta dele a partir do momento em que minha argumentação entrou nos pontos mais importantes - no caso, a partir da parte 3 -, pelos quais o próprio Jorge tinha manifestado profundo interesse: "ficou faltando a definição do que seja 'racionalismo' ... isso é uma aflição... esperar até a próxima postagem... (rsrs)". Mas tratarei devidamente do retorno parcial que chegou a mim.

Na verdade, há nessa participação do Jorge apenas um ponto que considero digno de algum comentário: aquele em que ele se referiu à parte inicial da minha postagem, na qual, depois de citar um irmão em Cristo que foi evolucionista por muito tempo depois de convertido, comparei o racionalismo de alguns reformados ao evolucionismo teísta, nos seguintes termos:

"Ora, eu compartilho da convicção, comum a muitos cristãos, de que o evolucionismo é incompatível com a fé cristã. Como, então, devo entender o testemunho desse irmão? [...] Creio que existem cristãos verdadeiros que são evolucionistas, os quais não são hereges; e, no entanto, existe entre o cristianismo e o evolucionismo uma incompatibilidade muito mais importante e grave que qualquer erro possível sobre a questão do batismo infantil. [...] Não vejo de que maneira, por exemplo, um cristão realmente convertido possa não crer na ressurreição corpórea de Cristo, ou na Trindade, ou na salvação pela graça, ou ainda, para início de conversa, em sua própria pecabilidade. Vários outros exemplos de doutrinas fundamentais poderiam ser dados. Mas o que importa enfatizar neste momento é que, em minha opinião, quanto a esse aspecto, o racionalismo é mais semelhante ao evolucionismo que a uma visão equivocada sobre a Trindade ou o batismo de bebês: não é um erro de pouca importância, e tampouco é de natureza tal que impeça alguém de ser um cristão verdadeiro."

Sobre isso, o comentário do Jorge foi:

"Bem, não concordo que se possa equiparar um evolucionista-teísta com um racionalista cristão, pois o [evolucionista teísta] tem de 'negar' parte da Bíblia para adequá-la ao evolucionismo. Questões como a Queda, a morte e o pecado tomam outros 'ares' diante do evolucionismo."

Tenho duas observações a fazer acerca desse comentário. A primeira é que, dado que racionalismo e evolucionismo não são a mesma coisa, é possível listar muitas diferenças entre ser racionalista e ser evolucionista. Contudo, uma leitura adequada da minha comparação mostra que ela não se concentra em quaisquer semelhanças de conteúdo ou de consequência, e sim apenas de importância: declarei que ambos são erros sérios sem que, no entanto, constituam heresia ou impeçam de ser cristão alguém que as endosse. Apenas isso. Sob esse aspecto, o motivo do Jorge para discordar da equiparação que fiz é irrelevante.

A segunda observação é que, especificidades à parte, o comentário acima antes reforça que nega o valor de minha comparação. Para o evolucionista cristão, "a Queda, a morte e o pecado tomam outros 'ares'", como bem declarou o Jorge; da mesma forma, conceitos como verdade, sabedoria, conhecimento, pensamento e muitas categorias epistemológicas e apologéticas "tomam outros 'ares'" na cosmovisão do cristão racionalista. É por causa dessa semelhança que minha comparação se sustenta. O Jorge não concorda comigo, evidentemente, pois suas ideias racionalistas lhe parecem eminentemente bíblicas, tanto quanto os conceitos de Queda, morte e pecado do evolucionista o parecem a este. Mas, ainda que o Jorge tenha razão, isso não anula o valor da comparação que fiz, uma vez que o objetivo dela era descrever a minha posição, e não a dele.

O restante daquele comentário do Jorge não acrescenta nada ao debate, por consistir quase todo de uma repetição com outras palavras (quando não com as mesmas) do que ele mesmo já dissera em participações prévias, e às quais já respondi nos posts anteriores desta série. Não sei se ele tem consciência disso ou se, ao contrário, realmente crê que cada participação sua traz novos progressos ao debate. Seja como for, não me animo a repetir ad infinitum o que já disse antes, e prefiro, por enquanto, apenas conferir ao Jorge o tempo de que ele precisa para meditar mais profundamente sobre o que já escrevi, coisa que ele, em seu comentário à primeira parte da presente série, em 5 de setembro de 2012, admitiu não ter feito e prometeu fazer. Daqui a algum tempo, depois que eu tiver analisado devidamente outros comentários mais antigos que recebi, deverei voltar ao tema analisando o último comentário do Jorge.

Por ora, aproveitando o espaço que me resta na presente postagem, tratarei brevemente de um comentário que recebi do Osmar Neves à terceira parte de minha série O direito ao mistério. Ele afirmou ter "grande simpatia pela abordagem lógica do Gordon Clark e do Vincent Cheung", embora sentisse faltar em Crampton "um pouco mais de sutileza e conhecimento histórico para abordar algumas questões", e nesse ponto, segundo ele, minha série havia corroborado sua impressão. Ele declarou ainda concordar com Clark em que 1. "a lógica [é] um atributo da Deidade, [...] uma característica constitutiva do seu Ser" e que 2. "não existem contradições na realidade", mas 3. apenas "ausência de informação exaustiva", sendo que 4. "parte desse problema pode ser resolvido com deduções lógicas das informações existentes" (5. "é aqui que não me conformo com o acanhamento de alguns teólogos", acrescentou); ele também 6. considera "pertinente a pergunta do Cheung sobre contradições: como é que se sabe se ela é aparente ou real?". A enumeração das opiniões do Osmar é minha, naturalmente.

Assim como ocorre no caso dos comentários do Jorge, algumas dessas proposições foram tratadas por mim em postagens posteriores; aliás, o Osmar me enviou esse comentário antes mesmo da conclusão da série O direito ao mistério. Sendo assim, tentarei exprimir em bem poucas palavras minhas opiniões sobre cada um desses pontos:

1. Creio que, ao afirmar que "a lógica [é] um atributo da Deidade", o Osmar na verdade quer dizer que a coerência lógica é um atributo dos pensamentos de Deus. Posso concordar com isso, no sentido de que tais pensamentos podem ser, em princípio, estruturados e declarados de forma lógica por Ele mesmo. Isso não quer dizer, porém, que sempre possam sê-lo por nós, e muito menos que Deus pense efetuando silogismos ou algo do tipo. Só seres finitos e temporais, que precisam raciocinar para conhecer a verdade sobre as coisas, pensam concretamente dessa forma. Se os pensamentos de Deus podem ser estruturados de forma lógica, só pode ser por meio de uma adaptação a posteriori, e isso nada diz sobre o modo como Deus pensa concretamente. Por isso evito dizer que "a lógica [é] um atributo da Deidade": essa formulação é imprecisa e induz ao erro por excesso de simplificação.

2. Concordo plenamente que "não existem contradições na realidade".
 
3. Não concordo, porém, que haja apenas "ausência de informação exaustiva". Como já expliquei no penúltimo parágrafo do primeiro post da presente série, a ênfase na falta de informações ou dados ignora aspectos muito mais fundamentais de nossos modos de conhecimento.
 
4. Também concordo que "parte desse problema pode ser resolvido com deduções lógicas das informações existentes", mas creio que os irmãos racionalistas superestimam em muito o tamanho dessa parte, e sua confiança no poder de seu raciocínio lógico os leva a ignorar os fatores mais importantes a que acabo de aludir no ponto 3, o que compromete em grande medida a viabilidade de seu projeto de resolução de paradoxos.
 
5. Não sei quais são os teólogos com cujo acanhamento o Osmar não se conforma, e isso me impede de julgar devidamente o valor de seu inconformismo, mas é certo que podem existir excessos em ambas as direções.
 
6. Não considero pertinente a pergunta de Cheung sobre as contradições. Para quem, como o Jorge, o Osmar e eu, crê no ponto 2, toda contradição é forçosamente aparente. A pergunta de Cheung só faria sentido fora da perspectiva pressuposicional. Não por coincidência, o racionalismo da escola clarkeana responde em grande parte por seu pressuposicionalismo inconsistente.

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