29 de janeiro de 2007

Versos do além

Embora eu seja um dos sujeitos mais anti-socialistas que eu mesmo conheço, não tenho grandes simpatias pelo capitalismo, e menos ainda pelo moderno sistema de mega-corporações financeiras e industriais. Apesar disso, tenho um sério problema em comum com os grandes empresários e administradores: assim como para eles, para mim o tempo é curto demais, e há muita coisa pra fazer; é necessário, portanto, planejar rigorosamente as ações a fim de aproveitar todos os momentos possíveis. No meu caso, não se trata de ganhar dinheiro, e sim de algo muito específico: a obtenção de conhecimento, principalmente através da leitura. Quatro anos atrás notei que a quantidade de livros que eu tinha pra ler era muito grande (quinze, pra ser exato), e resolvi fazer uma lista pra não esquecer nenhum. Mantive-a atualizada desde então, removendo os livros que ia lendo e acrescentando os que iam despertando meu interesse. Atualmente a lista contém pouco mais de 250 títulos, o que constitui prova de que meu planejamento não tem sido muito bom.

Estou contando isso tudo apenas para justificar (inclusive para mim mesmo) o fato de ter demorado tanto para ler A divina comédia. Diante da oportunidade de ler um livro longamente esperado, é normal procurar lê-lo o mais rápido possível. Mas havendo centenas deles, o jeito é deixar muitos pra depois. O fato é que, felizmente, a vez de Dante chegou, e foi a minha primeira leitura do ano. Deixei passar algumas oportunidades de escrever sobre isso aqui, mas resolvi fazê-lo agora, antes que a impressão causada pela leitura se desvaneça. Mas acho bom esclarecer que meu desejo de comentar esse livro não provém de eu ter algo muito importante a dizer sobre ele; apenas acho injusto não dizer nada sobre uma obra tão valiosa. Farei, então, apenas alguns comentários breves e um pouco desconexos, visto que uma análise digna do livro comentado está seguramente acima da minha capacidade.

Lembro-me precisamente da primeira vez em que ouvi falar em A divina comédia: foi ainda na minha infância. Havia um artigo de uma ou duas páginas sobre ela numa velha enciclopédia de que eu gostava muito, e que meus pais têm em casa até hoje. Nunca cheguei a ler aquele artigo, pois na época eu me interessava quase exclusivamente por povos antigos e animais. Mas lembro-me de ter me detido um pouco para contemplar o esquema do universo desenhado naquela página: A Terra no centro, com os nove círculos do inferno no subterrâneo de um dos hemisférios, oposto ao qual erguia-se o monte do purgatório; em volta, as nove esferas celestes, fora das quais estava o trono de Deus. Não entendi quase nada daquilo; só me lembro de ter sentido uma profunda sensação de estranheza.

Foi apenas na oitava série, durante uma aula de história, que eu soube que o título daquele breve artigo era também o de um livro escrito por um medieval chamado Dante Alighieri, e que nele era relatada uma viagem fictícia do autor pelos três reinos do além. Desde então fiquei curioso para ler o livro, pois eu tinha curiosidade de saber qual era a concepção do inferno, do purgatório e do paraíso que as pessoas tinham na Idade Média. Com o passar dos anos, outras razões foram se acrescentando a essa, incluindo-se aí meus estudos sobre filosofia, teologia, história e ciências, que levaram inevitavelmente à ampliação do meu interesse pela cultura medieval em todos os seus aspectos. Enfim a leitura tornou-se inadiável, especialmente depois que meu amigo Fortes comprou um exemplar e gentilmente o ofereceu para que eu o lesse nessas curtas férias.

Devo começar elogiando a edição brasileira. A obra foi editada pela Itatiaia em parceria com a USP. Cristiano Martins (1912-1981) não apenas traduziu o poema como também escreveu milhares de notas explicativas, muitas das quais importantíssimas, e uma excelente narrativa de cerca de setenta páginas sobre a vida de Dante, descrevendo ainda o contexto cultural, social e político em que o poeta italiano viveu e escreveu. Como não falo italiano, e muito menos italiano do século XIV, não sei até que ponto a tradução foi fiel ao original. Mas admiro a competência de Cristiano Martins pelo simples fato de ele ter traduzido um épico de quase quinze mil versos mantendo o tempo todo a rima e o metro decassílabo, e em alguns trechos até mesmo o ritmo. Fiel ou não, é no mínimo uma belíssima tradução.

Conhecer algo sobre a vida de Dante também foi muito proveitoso. Além de seu talento para a poesia, descobri que ele possuía várias outras qualidades: foi soldado valente na juventude; homem de grande erudição, bem versado no trivium e no quadrivium; político sábio e honesto, embora isso não o tenha livrado de perseguições injustas movidas por seus inimigos; e, o mais importante, um homem sinceramente interessado no bem e na virtude. Se eu fosse um progressista, diria que ele foi um homem à frente de seu tempo, inclusive por ter defendido que a Igreja não deveria se preocupar em ter nas mãos o poder temporal e que estava aí a causa da decadência e corrupção da mesma. Mas posso igualmente dizer que nisso Dante era um cristão primitivo, e não um evoluído. Não deixa de ser interessante, aliás, notar que suas concepções políticas eram monárquicas e inspiradas justamente no Império Romano, em forte oposição ao sistema de pequenas repúblicas independentes que prevalecia na Península Itálica do fim da Idade Média.

Mas não pretendo falar sobre o autor, e sim sobre a obra. Ao iniciar a leitura, aquilo que inicialmente me motivou a ler o livro - os retratos dos castigos no inferno e no purgatório e da beatitude dos eleitos no paraíso - rapidamente perdeu toda a sua importância. Embora a criatividade de Dante para inventar tormentos seja para muitos o principal atrativo do livro, parece-me agora que o valor do poema não reside de modo algum nisso. Embora a imaginação do autor seja prodigiosa, inclusive nesse aspecto, o livro tem tantos outros méritos, e tão mais dignos, que a mera descrição do ambiente acaba totalmente eclipsada por eles. Na verdade, percebo hoje que não poderia ser de outra forma. Qualquer tentativa de extrair dos aspectos descritivos da narrativa uma concepção literal sobre a "estrutura interna" do além me parece agora inteiramente ingênua. A paisagem (ou seu equivalente infernal) não está lá para que a tomemos como descrição do que as pessoas encontrarão depois da morte, e sim como pano de fundo simbólico para a exposição de uma mensagem muito profunda e ampla que constitui, essa sim, o cerne da obra. Quem ler o livro encontrará lições de filosofia, teologia e moral e reflexões sobre arte e política, bem como inúmeras referências à vida pessoal do autor, especialmente quanto a seu amor por Beatriz e seu sofrimento no exílio imposto pelo governo florentino. A narrativa em si é apenas o substrato necessário à exposição de tudo isso. Trazer as descrições físicas ao primeiro plano é deixar de lado quase todo o valor da obra.

Através de toda a obra é possível encontrar uma elevada consciência dos problemas que afligiam a sociedade daquele tempo, bem como das deficiências morais do ser humano, que estão por trás de todos eles. Transparece também o profundo respeito pelo legado da antiga civilização greco-romana, bem como pelos sábios da vizinha civilização muçulmana. A valorização do conhecimento pela sociedade medieval, e particularmente pelo próprio Dante, pode ser vista no fato de que, em sua jornada pelo paraíso, o autor passa quase o tempo todo ouvindo das almas bem-aventuradas dissertações sobre diversos temas teológicos, históricos e, sobretudo, filosóficos. E quem imagina que na Idade Média predominava um servilismo acrítico diante do poder da Igreja se surpreenderá com a quantidade de ex-papas com que Dante se depara em sua jornada pelo inferno.

Dificilmente haverá melhor antídoto que A divina comédia para curar quem ainda acredita que o fim da Idade Média foi um período de ignorância, barbárie e cegueira. Dante seguramente não foi, nem de longe, o mais sábio dentre os medievais. A sabedoria que transparece em seu poema não é propriedade exclusiva sua, e sim a expressão dos valores e conflitos de toda uma civilização, a hoje extinta civilização cristã. A despeito de todas as diferenças de cosmovisão que possa haver entre um poeta católico do século XIV e um físico protestante do século XXI, não posso deixar de reconhecer e apreciar esse traço comum.

Resta falar, é claro, sobre o aspecto especificamente poético da obra. Já é impressionante que alguém tenha inserido magistralmente numa interessante narrativa suas reflexões pessoais acerca de alguns dos grandes homens da história e suas ações, seu julgamento acerca dos rumos da própria nação, suas lembranças da cidade natal, suas opiniões sobre a arte, a filosofia de Aristóteles, as ciências naturais e a teologia escolástica, bem como inúmeras referências à mitologia e às narrativas bíblicas, e coroando tudo isso com declarações de amor à mulher que não pôde ouvi-las em vida. Mas que ele tenha feito tudo isso em verso, com rima e métrica, eis o que considero verdadeiramente assombroso. É claro que meu juízo pode ter sido indevidamente influenciado pelo fato de eu ter lido apenas uma tradução; mas não vejo como a tradução de um poema possa ser superior ao próprio poema, de modo que, se houve distorção, provavelmente não terá sido para melhor.

Autor de uma das melhores análises já escritas sobre Dante, T. S. Eliot afirmou que ele foi um poeta superior a Milton, e no mínimo tão grande quanto Shakespeare. Quanto à primeira parte, não sei; Milton é outro que está na minha lista já há muito tempo. Mas Shakespeare de fato não me impressionou tanto quanto Alighieri. Diante disso, devo reconhecer que a afirmação de Eliot não me parece nada exagerada. Não vejo maneira melhor de expressar minha admiração pelo grande poeta italiano do que dizer que, de agora em diante, o adjetivo "dantesco" tem para mim um sentido muito diferente do que tinha até trinta dias atrás.

25 de janeiro de 2007

Mitologia bioquímica

Houve um período da minha vida em que desejei ser biólogo. Nessa época, naturalmente, eu nada sabia sobre biologia. Eu via aqueles documentários sobre a vida selvagem no Globo Repórter, e achava que biologia era ficar filmando animaizinhos nas savanas da África e coisas do tipo. O que me curou dessa ilusão foi justamente o meu entusiasmo pela idéia: ao ingressar no ensino médio, comecei a ler avidamente o livro-texto de biologia adotado em minha escola, e isso bastou para me convencer de que seria melhor pensar em outra coisa pra fazer na vida. Apesar disso, nunca deixei de me interessar pela disciplina; li o livro da escola até o fim, e isso serviu para me mostrar quais áreas eram interessantes e quais não eram. O ramo da biologia que achei mais interessante - e ainda acho - foi o da evolução. E como na época eu gostava de química mais do que gosto hoje, fiquei particularmente impressionado com a exposição dos autores sobre a abiogênese, ou origem da vida.

Todos os livros-texto de biologia que vi desde então descrevem basicamente a mesma seqüência de eventos: a formação, na Terra primitiva, de uma atmosfera de hidrogênio, metano, amônia e vapor d'água; as reações ocorridas entre essas moléculas e outras na atmosfera que se resfriava, gerando um oceano cheio de pequenas moléculas orgânicas; a reunião dessas substâncias em longas cadeias, formando os muitos tipos de moléculas necessárias à vida; e, finalmente, a reunião de todas elas nos primeiros seres vivos, ainda naquela "sopa primordial". Esse esquema teórico geral havia sido defendido nos anos 20 por dois biólogos, o russo Aleksandr Ivanovich Oparin e o britânico J. B. S. Haldane. Então, em 1953, vieram dois americanos, Stanley Miller e Harold Urey, e demonstraram em laboratório a viabilidade da teoria, ao produzir aminoácidos num aparelho que simulava as condições da Terra primitiva.

Não descreverei isso tudo em detalhes, já que todos os livros de biologia o fazem melhor do que eu seria capaz. Registro apenas que o assunto me interessou a tal ponto que desde então eu jamais fiquei muito tempo sem pesquisar a respeito. E na época eu não tinha idéia da complexidade da questão, e tampouco dos acalorados debates que têm ocupado os especialistas no assunto ao longo de todas essas décadas. Mas de lá pra cá descobri algumas coisas interessantes. Contarei nos próximos cinco parágrafos algumas coisas que descobri; aviso desde já que quem não tiver paciência para argumentos científicos fará muito bem em pulá-los e ir direto à parte final deste texto.

Descobri, por exemplo, que não poucos geólogos puseram em dúvida a tese de que a atmosfera primitiva tinha a composição mencionada nos livros didáticos. Uma das razões é que é difícil justificar a ausência de oxigênio livre, seja teoricamente, dado que ele se forma espontaneamente nas altas camadas da atmosfera a partir de vapor d'água, ou empiricamente, uma vez que em certas rochas sedimentares daquela época há evidências de sua presença em quantidades não desprezíveis. E a presença de oxigênio inviabiliza praticamente todos os mecanismos abiogênicos já propostos, uma vez que os compostos orgânicos dificilmente se formariam em ambientes oxidantes. Os poucos geoquímicos que ainda sustentam a existência de uma atmosfera redutora o fazem porque ela seria um pré-requisito para a abiogênese. Mas numa discussão sobre os fundamentos da própria abiogênese esse argumento seria claramente circular.

Descobri também que, mesmo que a atmosfera redutora fosse admitida, ela não poderia gerar um oceano cheio de pequenas moléculas orgânicas. Alguns cientistas demonstraram que as concentrações de tais substâncias seriam ainda menores que nos oceanos atuais, da ordem de 10-5 mol/l, insuficiente para gerar reações de polimerização. Além disso, tais reações teriam deixado certos resíduos nas rochas desse período, os quais estão inteiramente ausentes.

Mesmo com um oceano contendo essas substâncias em solução concentrada, porém, o problema não acabaria. Reações de formação de ligações peptídicas (o tipo de ligação química que reúne aminoácidos para formar proteínas e outras coisas), por exemplo, têm a água como um de seus produtos. Em meio aquoso, portanto, a reação praticamente não ocorre, como demonstra uma regra elementar dos equilíbrios químicos. Foram feitas estimativas, baseadas em considerações termodinâmicas, da concentração esperada de cadeias peptídicas relativamente longas (cem aminoácidos, o que poderia ser uma proteína muito pequena) em soluções bastante concentradas. A resposta foi a seguinte: para que o número esperado de cadeias formadas chegasse a um, seria necessário um oceano de volume inconcebivelmente maior que o do universo visível.

Foram feitas algumas interessantes tentativas de substituir a "sopa primordial" por outros cenários mais plausíveis; não os descreverei, já que os livros-texto de biologia que conheço também não os descrevem. Mas um problema comum enfrentado por todos eles é a total incapacidade de produzir cadeias que contenham informação biologicamente útil. Uma cadeia de aminoácidos não é necessariamente uma proteína biológica, assim como uma seqüência de letras não é necessariamente um texto. E basta um cálculo simples para demonstrar a inviabilidade da produção de algo tão altamente ordenado (como uma proteína ou um texto) a partir de um arranjo aleatório de seus constituintes.

Some-se a tudo isso a presença constante de reagentes competidores (como estereo-isômeros e aminoácidos não-protéicos) e outras impurezas que inviabilizariam ainda mais a ocorrência das reações necessárias ao surgimento da vida; também o fato de que os compostos altamente complexos de que a vida necessita precisariam não apenas se formar, mas também fazê-lo num mesmo local e momento, e arranjar-se de maneira precisa para constituir um ser vivo, por mais simples que este fosse; e ainda o fato de que os pesquisadores experimentais do ramo costumam realizar suas experiências a partir de reagentes altamente purificados dispostos em quantidades precisamente medidas, com a temperatura e outros fatores cuidadosamente controlados, e pretendem que seus resultados sejam uma descrição fidedigna da Terra primitiva.

Este é o momento adequado para fazer alguns esclarecimentos. O primeiro é que a descrição acima não é, e não pretende ser, completa ou rigorosa. Cada um dos tópicos levantados merece uma discussão bem mais profunda, e muitos outros problemas eu simplesmente deixei de fora. O que estou tentando fazer aqui é apenas dar ao leitor não familiarizado com o assunto uma noção da enormidade do problema. Os argumentos científicos são chatos, mesmo nesse nível tremendamente superficial em que os expus; e na verdade não é necessário sequer ter entendido inteiramente tudo o que eu disse para acompanhar o que vou dizer daqui em diante. Por isso, nessa visão panorâmica que acabo de fornecer, optei pela brevidade em detrimento do rigor, e mesmo da clareza.

Quem acompanhou o texto até aqui será agora recompensado pela revelação do que pretendo com o mesmo. Certamente não vou criticar os cientistas que trabalham nesse campo, os quais considero dignos de todo o respeito por sua coragem e perseverança, já que enfrentam uma questão absurdamente difícil e persistem nela mesmo depois de várias décadas de total insucesso. Vale mencionar também que seus fracassos em desvendar a origem da vida já trouxeram importantes contribuições a outros campos da ciência. A questão que me preocupa é simples: o que uma teoria tão fortemente contrariada por toda a evidência disponível está fazendo nas páginas dos nossos livros de biologia?

Deve ser dito em defesa dos autores que eles estão pelo menos parcialmente conscientes do problema. Não se trata, ao que parece, de ignorância da parte deles. Em todos os livros que li há discretas advertências de que existem ainda alguns pontos não resolvidos na teoria abiogênica (embora não sejam fornecidas ao aluno condições de sequer imaginar quais sejam eles), e são introduzidos aqui e ali a palavra "provavelmente" ou outra com sentido equivalente. O nome mais educado que essa atitude merece, na minha opinião, é o de propaganda enganosa. Do ponto de vista da correspondência com a realidade, qualquer teoria científica deveria ser considerada um lixo se tivesse contra si metade dos argumentos levantados contra a teoria abiogênica. Chamá-la de provável é conceder-lhe valor infinitamente superior ao que de fato possui. E o ato de omitir dos estudantes todos os argumentos contrários (dos quais, repito, citei apenas uma fração) contribui para lhes dar uma visão inteiramente enganosa sobre o assunto.

Naturalmente, os professores de biologia ensinam uma teoria tão absurda apenas porque os pesquisadores não foram capazes de propor nada mais plausível. Se uma teoria melhor vier a surgir, todo mundo abandonará correndo as velhas estorinhas. Mas isso, é claro, não responde inteiramente à questão. Convém indagar por quê os escritores de livros não dizem francamente que ninguém faz a menor idéia de como a origem da vida pode ser explicada cientificamente, e também é importante saber por quê essas pessoas consideram que ensinar uma teoria tão horrível é melhor que admitir a própria ignorância ou simplesmente não tocar no assunto.

A resposta, parece-me, só pode ser uma: a origem da vida, assim como a evolução biológica, é um ponto sensível de divergência entre o público leigo e a comunidade que tem formação científica. O "fundamentalismo bíblico" está sempre à espreita, e qualquer concessão será imediatamente aproveitada por um bando de líderes religiosos fanáticos e ignorantes como prova do triunfo da fé sobre a ciência. Assim, é melhor ensinar gerações inteiras de estudantes um punhado de distorções imaginativas: eles serão privados de umas poucas verdades secundárias, mas com isso aprenderão a crer na ciência.

Se essa minha suposição estiver correta, só tenho a lamentar por isso. Que o ensino de ciências possa servir para ensinar alguma outra coisa no lugar de ciências já me parece algo suficientemente indesejável. Que uma pessoa se sinta no direito de convencer outras de uma tese que não é capaz de defender com argumentos suficientemente bons, apelando assim à simples ignorância dos ouvintes, chega a ser um ato abominável. Acima de tudo, porém, é irônico notar que a avidez dos nossos educadores por evitar que os alunos engulam algo que é considerado como um mito antigo sem fundamento científico acaba fazendo com que lhes enfiem goela abaixo como verdade científica um mito moderno com fundamentos no mínimo igualmente precários.

15 de janeiro de 2007

Declaração de guerra

Cerca de três anos atrás um colega recomendou-me um certo livro que tratava do Evangelho de Tomé e sua relação com Jesus e o Novo Testamento. Pouco tempo depois eu li o livro e constatei que o autor desconhecia certos fatos que eram fundamentais à compreensão historiográfica do assunto. É suficiente dizer aqui que a tese principal do livro baseava-se implicitamente numa única premissa, a qual, infelizmente para o autor, é demonstravelmente falsa. Inconformado, encontrei o e-mail do cavalheiro na internet, enviei-lhe um texto de apenas quatro páginas expondo minhas principais críticas à idéia central do livro e pedi que ele defendesse seu ponto de vista. Logo recebi em resposta uma carta na qual transparecia toda a bondade e boa educação do escritor, que agradeceu minha atenção e elogiou minha redação. Só não fez a única coisa que eu havia pedido. Sobre isso ele limitou-se a dizer que não era seu objetivo dissuadir ninguém de sua fé, pois cria ser essencial que houvesse respeito e tolerância entre pessoas de convicções teológicas distintas, como de fato não acontecia, por exemplo, no Oriente Médio (foi exatamente esse o contra-exemplo utilizado).

Não pretendo discutir aqui o conteúdo do livro, seja pelos acertos ou pelos erros. Também não pretendo especular se o gentil autor teria ou não respostas coerentes às minhas críticas, coisa que provavelmente nunca saberei com certeza. E tampouco vem ao caso o fato de que ele ignorou totalmente, em sua resposta, o conteúdo histórico da minha crítica, que era o que realmente importava, para concentrar-se apenas na questão religiosa, de que eu tratei apenas secundariamente. Se eu realmente tivesse feito críticas especificamente teológicas o caso não deixaria de ser inteiramente válido como um exemplo (dentre muitos que já presenciei) do que pretendo discutir hoje.

Refiro-me à confusão ou associação indevida de dois conceitos inteiramente diferentes: o de tolerância e o de concordância. Existe na cultura de hoje uma vaga intuição de que as diferenças entre as pessoas (em todos os níveis, incluindo-se aí as diferenças de idéias) são a causa de todas as hostilidades, ou pelo menos de muitas delas. Tanto quanto sei, essa é uma bobagem tipicamente moderna, ou melhor, pós-moderna; e, como normalmente acontece com idéias pós-modernas, essa é flagrantemente autocontraditória. Os tolerantes de outras culturas diriam que os homens devem aprender a conviver pacificamente com as diferenças. Os tolerantes pós-modernos ensinam que isso não basta, sendo necessário eliminar inteiramente os desacordos; ou seja, a tolerância às idéias diferentes deve ser convertida gradualmente em acentuada simpatia e daí em completo acordo; em sua ânsia extrema por respeitar as diferenças, o pós-modernista acaba negando que existam diferenças a respeitar.

Como se pode ver, eu discordo desse procedimento; e aqui reside a segunda contradição do mesmo. Posso discordar de quem sustente tal coisa, mantendo-me assim coerente com meus princípios. A pessoa em questão, entretanto, não pode fazer o mesmo. Ao afirmar que é errado discordar das pessoas, ela estará moralmente obrigada a concordar com quem discorde dela nesse ponto. Se o pós-modernista em questão concordar comigo a fim de evitar a intolerância, cairá obviamente em contradição; se discordar, será, de acordo com seus próprios critérios, um intolerante, caindo mais uma vez em contradição.

A opção restante para qualquer um que aprecie a boa lógica, portanto, é continuar acreditando que a veracidade da afirmação X acarreta necessariamente a falsidade da negação de X. Conseqüentemente, o cidadão que acredita em X deve ter o direito de dizer em voz alta que o cidadão que não acredita em X está errado. Deve também ter o direito de dizer isso na cara dele, e os dois têm o direito de gastar na discussão do assunto tanto tempo quanto lhes convenha. Cada um deles tem também o direito de tentar mostrar ao restante da comunidade que seu ponto de vista é correto, e que o do opositor é uma completa idiotice.

Aqui o nosso amigo pós-moderno provavelmente enxergará uma prova evidente de que a antipatia pela opinião alheia leva fatalmente à antipatia pelo portador da opinião em questão. "Encontra-se aqui", dirá ele, "a origem de toda sorte de intolerância, da perseguição por meios políticos e violentos a todos os dissidentes, culminando no estabelecimento de um pensamento único, hegemônico e totalitário." Mas eu não ficarei muito preocupado com o valor de semelhante objeção, a qual parte de alguém que, desde o começo, optou pela paz universal como valor máximo, erigindo-lhe um templo em cujo altar sacrificou sua própria capacidade de raciocínio. Esse último argumento é apenas mais uma demonstração desse fato.

A tirania não nasce da discussão, e sim do abandono da mesma. Enquanto duas pessoas mantiverem suas desavenças no plano argumentativo não haverá o menor problema. O problema surgirá justamente quando uma das duas não estiver mais disposta a discutir, mas ainda assim estiver disposta a fazer prevalecer seu ponto de vista. Só então a razão cederá lugar à política. As razões morais ou situacionais que podem levar alguém a desistir do convencimento racional e passar a outras formas de persuasão são, sem dúvida, muito variáveis. Permanece, porém, o fato de que, uma vez cessada a discussão, a via da opressão (de qualquer tipo) é a única que resta. O "pensador" pós-moderno, porém, nos ensina que é errado discordar e, portanto, é errado discutir. Eis como a sua grande contribuição à causa da tolerância converte-se automaticamente em um incentivo à atitude diametralmente oposta. E eis também a razão pela qual os Estados mais totalitários que o mundo já viu foram todos movidos pelas ideologias menos sustentáveis racionalmente, e que de fato não tinham em alta conta o debate honesto.

Convém esclarecer que o autor que citei no início não é de modo algum partidário de semelhante besteira. A doutrina que ele defende nada tem de pós-moderna; pelo contrário, considero-a até positivista demais. Citei aquele caso apenas como exemplo vivo de um aspecto do espírito do nosso tempo que eu deploro inteiramente. O referido autor provavelmente deixou-se levar sinceramente, embora irrefletidamente, por uma idéia que está no ar, mas que não pode ser abrigada por sua visão de mundo. Ou talvez ele não tivesse argumentos para refutar minhas críticas, e então utilizou a melhor desculpa que pôde arranjar para fugir da discussão. Mas, não tendo qualquer razão para pensar tão mal de uma pessoa que em tudo se mostrou tão boa, prefiro crer na primeira hipótese.

Tenho uma razão particularmente importante para ter dito tudo isso hoje: é que, como todos terão a oportunidade de ver, eu não consigo ficar muito tempo sem descer a lenha em alguém. Isso em termos puramente argumentativos, é claro. Dados os objetivos a que me proponho neste blog, não posso deixar de discordar de muitas pessoas cuja visão da realidade é diferente da minha, nem me sinto no direito de ignorar as objeções que essas pessoas podem ou poderiam me fazer. E quando eu começar a criticar as idéias dessas pessoas (e a lista de criticáveis eminentes é enorme), espero que ninguém me venha com comparações com os terroristas islâmicos ou outras bobagens desse tipo em nome da tolerância.

10 de janeiro de 2007

Alegoria e fantasia

Antes de inaugurar o blog eu havia feito uma pequena lista de assuntos potencialmente interessantes sobre os quais discorrer. Não estava nos meus planos, porém, falar sobre o tema de hoje senão daqui a alguns meses. Atribuo a culpa pela antecipação ao meu jovem camarada Fernandinho, que tenho a honra de ter como vizinho de cadeira no coral da nossa igreja. Sendo músico por vocação e por educação, e possuindo outros interesses tais como a teologia, a filosofia e mesmo a física (juro que a culpa não foi minha), ele disse em seu blog - inaugurado, aliás, poucas horas depois do meu - algumas palavras sobre a relação entre a música e o cristianismo. Inspirado por esse acontecimento, vou falar muito brevemente sobre um tema um pouco diverso e mais específico: a relação entre a religião cristã e a literatura, conforme vista por dois grandes escritores cristãos do século XX, C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien.

Para quem porventura não conheça esses dois britânicos, basta saber umas poucas coisas: eles tinham muito em comum, como o fato de que ambos perderam a mãe ainda na infância, tinham o hábito de fumar cachimbo, combateram na Primeira Guerra Mundial, admiravam profundamente os mesmos escritores (como George MacDonald e G. K. Chesterton), nutriam uma paixão profunda pela mitologia - em especial a nórdica - e estudaram em Oxford e posteriormente tornaram-se professores nessa mesma instituição. Foi em Oxford, aliás, que se conheceram, em meados da década de 20, tornando-se a partir de então grandes amigos até a morte de Lewis, em 1963. Outro importante traço comum, já mencionado, foi a fé cristã; Tolkien era católico, e Lewis, ateu desde o início da adolescência, converteu-se afinal ao cristianismo em 1931, não sem a ajuda de seu amigo, tornando-se a partir de então membro da Igreja da Inglaterra.

Mas embora as semelhanças sejam mais profundas, as diferenças são ainda mais interessantes. Qualquer leitor atento e suficientemente familiarizado com as obras de ambos pode notar facilmente não só as diferenças de estilo como também as diferentes prioridades de cada um. E na verdade essas diferenças não são casuais, nem mero produto de diferentes aptidões literárias; como pretendo explicar adiante, elas fundamentam-se grandemente em diferentes concepções sobre qual deveria ser o próprio objetivo da literatura.

Toda a produção escrita de Lewis posterior à sua conversão é imbuída de um forte elemento pedagógico. Utilizo essa palavra aqui num sentido amplo, significando a transmissão de conceitos através não só da exposição como também da defesa diante de conceitos concorrentes. A conversão despertou em Lewis o ardente desejo de comunicar as verdades que havia descoberto a uma civilização que progressivamente se afastava delas. Essa proposta, porém, ia muito além do aspecto puramente teológico, abrangendo também questões filosóficas, antropológicas, históricas e outras. E de fato grande parte de sua obra é composta por dissertações que lidam simultaneamente com duas ou mais dessas disciplinas.

A literatura, embora ocupando no pensamento de Lewis uma posição proeminente, possuía um papel subordinado dentro desse amplo projeto pedagógico. Não entrarei nos pormenores filosóficos da coisa, limitando-me a afirmar que para Lewis, assim como para São Tomás de Aquino e outros filósofos medievais, a imaginação ocupa uma posição importante para as faculdades intelectuais do ser humano. Algumas verdades importantes a respeito do mundo e do próprio homem seriam tão difíceis de comunicar sem o recurso à ficção literária e outras formas de arte quanto impossíveis de apreender sem a sensibilidade necessária para a apreciação das mesmas.

Sendo assim, a literatura jamais deveria prescindir da conexão com a realidade, e sim servir como um recurso adicional, e dos mais importantes, para a compreensão da mesma. Isso explica o motivo pelo qual um dos traços mais marcantes das obras ficcionais de Lewis, especialmente as infantis, é a alegoria. Por ela são revelados aspectos da realidade, possivelmente ocultos aos leitores, através de analogias que convidam à reflexão por meio do apelo à imaginação. Não é por outro motivo que os contos de fadas, a inspiração mitológica e a cosmovisão cristã conviveram lado a lado nos sete volumes de As crônicas de Nárnia, a grande obra de Lewis voltada para o público infanto-juvenil.

Tolkien, por seu turno, alimentava uma concepção radicalmente diferente, pelo menos na aparência, acerca do papel da literatura. Ele não simpatizava em nada com as alegorias. Em entrevista, ele declarou expressamente: "Eu repugno a alegoria sempre que lhe sinto o cheiro." Imagino que essa desavença deve ter dado ensejo a muitas discussões entre os dois grandes amigos.

Mas as razões de Tolkien para abominar a alegoria, assim como as de Lewis para empregá-las, encontram sua explicação numa concepção mais ampla. Tolkien não era um entusiasta do uso pedagógico da literatura, isto é, não cria que a exposição da realidade fosse, nesse sentido, seu objetivo principal. E qual era, então, o objetivo principal? A resposta encontra-se, também, na arraigada fé de Tolkien no cristianismo, e é expressa claramente em sua própria obra.

Tolkien nos conta no Ainulindalë que Eru, o Todo-poderoso, antes do início do universo material no qual haveria de surgir um dia a Terra-média, fez os espíritos e anunciou-lhes a intenção de criar o mundo e povoá-lo. Criou-o então e enviou alguns desses espíritos, liderados pelos que vieram a ser conhecidos como Valar, para torná-lo habitável aos Filhos de Eru, os elfos e os homens. Os Valar partiram e fizeram seu trabalho, aguardando ansiosamente a chegada das novas criaturas que Eru prometera, até que, cansado de esperar, Aulë, um dos Valar, criou por sua própria conta os anões, segundo nos é dito no Quenta Silmarillion. Mais tarde, argüido por Eru, Aulë pediu perdão por sua impaciência, e acrescentou as seguintes palavras:


"Contudo, a vontade de fazer coisas está em meu coração, porque eu mesmo fui feito por ti. E a criança de pouco entendimento que imita os atos de seu pai pode fazê-lo sem nenhuma intenção de zombaria, apenas por ser filha dele. E agora, o que posso fazer para que não te zangues comigo para sempre? Como um filho ao pai, ofereço-te essas criaturas, obra das mãos que criaste."

Eis a concepção basilar de Tolkien sobre a arte em geral e sobre a literatura em particular. A invenção de histórias - incluindo-se aí o folclore, a mitologia e os contos de fadas - é um impulso natural do ser humano, em vista de este ter sido criado à imagem e semelhança de um Deus que também se compraz em criar histórias. Mais do que isso, porém: sendo um dom concedido por Deus, a criatividade artística deve ser, como qualquer outro dom, aprimorada até a máxima perfeição possível, a fim de que o artista reflita, ainda que muito limitadamente, os atributos divinos, e sua obra reflita a obra do Criador. Longe de ser uma atitude soberba, essa concepção é fundamentalmente humilde, na medida em que constitui a realização do propósito divino na pessoa do artista. Trata-se de aplicar à criatividade o dever cristão da busca consciente por graus sempre mais elevados de perfeição. Na qualidade de subcriador (termo usado e, pelo que sei, cunhado pelo próprio Tolkien), o homem pode e deve produzir aquilo que Tolkien designa como fantasia, no sentido nada depreciativo da palavra.

Essa busca pela perfeição de suas faculdades subcriativas ajuda a entender a obra de Tolkien em contraste com a de Lewis. Este, a partir do projeto pedagógico já explicado, produziu dezenas de livros sobre diversos assuntos e nas mais variadas formas. A obra de seu amigo foi muito mais restrita: à parte de sua grande criação, a Terra-média e o universo fictício que a contém, Tolkien produziu relativamente pouca coisa. Gastou quase todas as suas energias aperfeiçoando e enriquecendo uma única e grandiosa obra, ao invés de dividi-las em uma porção de produções menores e mais diversificadas. O aspecto mais marcante da obra de Tolkien (principalmente em O Senhor dos Anéis) é, sem dúvida, a profusão de detalhes. Ele criou uma história de dezenas de milhares de anos, com milhares de personagens, e muitos pormenores geográficos, culturais, históricos, sociais, lingüísticos e outros tantos. A vastidão desse empreendimento ficou patente após a sua morte, quando seu filho Christopher começou a editar e publicar quilos e mais quilos de textos e rascunhos retirados dos arquivos de seu pai.

Na minha opinião, os dois aspectos da literatura não são totalmente contraditórios, nem poderiam ser. Os dois elementos, alegoria e fantasia, são, num certo sentido, indispensáveis. Lewis utilizou a alegoria com um brilhantismo que não seria possível sem uma elevada dose do tipo de criatividade que Tolkien apreciava como mais digna, sem a qual a alegoria seria nada mais que mero plágio. E Tolkien, embora sem a intenção de fazer qualquer alegoria, legou-nos uma narrativa que possui numerosos pontos de contato com a realidade e que retira dela o seu valor, como não poderia deixar de ser. Ele não inventou, por exemplo, uma nova física, nem uma nova metafísica, nem uma nova moral; a criatividade também tem seus limites, e precisa tê-los.

Comparando a totalidade das obras de ambos, considero difícil decidir qual era o melhor escritor. Mas não vejo sentido em discutir qual obra é mais caracteristicamente cristã. Lewis primava pelo que sua obra podia proporcionar aos outros homens, enquanto Tolkien estava mais interessado em sua relação vertical com Deus. Para o primeiro a literatura era uma forma de instrução, enquanto para o segundo era uma forma de louvor. Pelas razões que acabo de expor, acredito que as divergências entre eles são apenas uma questão de ênfase, e não uma contradição irremovível. Não me parece, aliás, que eles próprios encarassem essa questão de outra maneira. Portanto, espero que ninguém me peça para tomar partido nesse pequeno desacordo. Há lugar de sobra para Lewis e Tolkien (e suas respectivas filosofias literárias) dentro do cristianismo e da literatura.

1 de janeiro de 2007

Por que o sujeito da foto precisa de um blog?

"Nos nossos dias, lemos novos livros demais ou, então, somos oprimidos pela preocupação dos novos livros que não temos tempo para ler; lemos muitos livros, porque não podemos conhecer pessoas em número suficiente; não podemos conhecer todas as pessoas que, para nosso benefício, deveríamos conhecer, visto que, muito simplesmente, há gente demais. Assim, se tivermos a habilidade que nos permita poder escrever e a sorte de ter quem nos publique, comunicamos pela publicação de mais livros. De modo geral, só podemos ignorar os livros da autoria de escritores que temos a boa sorte de conhecer; e, quanto melhor os conhecermos pessoalmente, menos sentiremos ser necessário ler o que eles escrevem."

Mais um ano tem início, e minhas expectativas pessoais para o mesmo incluem uma maior quantidade de novidades do que as proporcionadas pelos anos precedentes. Não satisfeito com isso, resolvi acrescentar-lhe mais uma: esta aqui. Criei um blog. Ótimo! Mas pra quê? É o que pretendo explicar neste texto inaugural; e não é o que se pode considerar muito fácil de se explicar.

As palavras que transcrevi acima foram extraídas de um livro muito interessante chamado Notes towards the definition of culture, sobre o qual provavelmente ainda escreverei neste blog. Seu autor é o inglês T. S. Eliot (1888-1965), um sujeito que sem dúvida alguma entendia muito de livros e textos em geral, como ficou demonstrado por suas atividades como editor, crítico literário, poeta, ensaísta e dramaturgo, numa brilhante carreira que foi coroada pelo Nobel de Literatura em 1948.

Hoje, quase seis décadas depois, não é necessário ter tanta sorte para ter quem nos publique; a internet está aí e, como vocês estão vendo, qualquer zé mané pode criar um blog. Mas Eliot está perpetuamente correto, penso eu, quanto a ser a comunicação direta, oral, pessoal, infinitamente superior e preferível à comunicação por escrito, devendo esta ser encarada apenas como um substituto precário diante da impossibilidade daquela. No meu caso, essa necessidade provém de razões diversas. Uma delas é que tenho uma facilidade muito maior para me comunicar por escrito. Pessoas que só travam contato comigo pessoalmente não fazem idéia do tamanho que meus e-mails podem atingir, assim como pessoas com quem só me comunico por escrito não fazem idéia do quanto sou quieto e introvertido na vida real. Quem me vê debatendo no orkut talvez tenha dificuldade em me imaginar como o sujeito tímido que presencia em silêncio quase todas as discussões entre amigos por pura indisposição de dialogar com três ou quatro pessoas ao mesmo tempo. E bem poucas das pessoas que convivem comigo saberiam dizer o que passa pela minha cabeça naqueles momentos nada raros nos quais sou flagrado no mundo da lua. E para os que não convivem comigo, é claro, a principal barreira é mesmo puramente geográfica.

Dadas essas condições dificultosas, em grande parte impostas por minha própria personalidade, acredito que a comunicação escrita é uma solução natural, embora no meu caso as causas do problema sejam muito diversas das que Eliot tinha em mente. Fosse eu tão tagarela ao vivo quanto sou por escrito, e provavelmente poderia dispensar este luxo. Mas no momento ele me parece sumamente necessário; tanto que não sei como não tive essa idéia antes.

Devo dizer, desde já, que tudo o que será dito neste blog enquadra-se em um tema muito bem definido: aquilo que eu achar importante dizer no exato momento em que estiver escrevendo. Nenhuma outra restrição além dessa está nos meus planos. As justificativas que adoto para uma delimitação tão pouco delimitadora são bem simples, e são basicamente três. A primeira é que não vejo motivo algum para impor regras desnecessárias sobre mim mesmo. A segunda é que cultivo já há muito tempo uma paixão assumida pela generalidade; a idéia de ser um especialista em seja lá o que for não tem para mim nenhum atrativo. A terceira razão decorre da segunda, e é de ordem essencialmente prática: suponhamos que eu resolvesse falar sobre um assunto específico. Nesse caso, qual seria? Meditando sobre essa questão, descobri rapidamente que não há assunto algum do qual eu entenda o suficiente para dedicar-lhe exclusivamente um blog. Sou obrigado, portanto, a apostar na variedade dos temas, sob pena de ficar rapidamente sem ter nada interessante para dizer.

Em vista de tudo isso, minha proposta é discorrer sobre todos os assuntos a respeito dos quais eu tenha conhecimento suficiente para ter o direito de dizer algo e interesse suficiente para achar que vale a pena dizê-lo. Em resumo, minha meta é retratar a realidade (tomando essa palavra no mais amplo sentido possível) tal como ela me parece ser. Não digo "como ela é" porque me sinto neste exato momento tomado por um ataque súbito de humildade socrática, e também porque é justamente a minha simpatia pelos métodos de Sócrates e seus seguidores que me forneceu o motivo mais forte para a criação deste blog.

Para explicar por que estou dizendo isso, farei uma breve recapitulação histórica. Acho que já faz uns dois anos que minha amiga Priscila, tendo lido um texto que escrevi, sugeriu que eu deveria escrever e publicar certas coisas que me passavam pela cabeça. Na época, embora me sentindo lisonjeado pelo elogio implícito nessa sugestão, recuei horrorizado diante da sugestão em si, convicto de que fazer tal coisa seria pretender um cargo de mestre, ao invés de me contentar em continuar sendo o aprendiz que eu realmente era.

Num certo sentido, este blog é a resposta longamente estudada à sugestão da minha amiga, sugestão da qual ela mesma talvez já não se lembre. Mas não é que eu tenha repentinamente sido promovido a mestre e me julgue agora apto a ensinar. Pelo contrário, minha mudança de atitude deve-se, antes de tudo, à descoberta de que colocar as idéias pra fora é um excelente método de aprendizado. E aprendi isso justamente com aqueles veneráveis mestres socráticos. O nome disso é "dialética"; não a de Hegel e Marx, mas a de Platão e Aristóteles, cujo nome menos pomposo é, simplesmente, "diálogo".

Vejo agora que expor opiniões, debater concepções, compartilhar conhecimentos - enfim, colocar a cara a tapa - é uma excelente maneira de aprender, e não apenas de ensinar. Assim sendo, devo confessar que meus objetivos ao criar este blog são primariamente egocêntricos: é claro que ficarei feliz se alguém aprender algo lendo o que escrevo, mas estou mais interessado nas reações que meus textos vão gerar, e no que vou aprender com elas.

Esses esclarecimentos também eliminarão, penso eu, qualquer mal entendido quanto à minha pretensão de retratar a realidade. Li em algum lugar que Leonardo da Vinci, influenciado pelo neoplatonismo, almejava pintar um quadro que retratasse o Absoluto. Não tenho tal pretensão, até porque não levo o mínimo jeito para a arte, por mais que minha mãe ache lindos os meus desenhos dos tempos de escola. Mas mesmo num sentido puramente não-artístico, o máximo que posso fazer é pintar fragmentos dispersos daquela fração da realidade que está diante dos meus olhos, embora num esforço constante para que esses fragmentos esbocem tão nitidamente quanto possível um todo coerente.

Não se trata, portanto, de retratar com perfeição, e sim de fazer tantos rascunhos que, aperfeiçoando-me pela prática constante, eu venha a retratar cada vez melhor. Para isso, três coisas são necessárias: primeiro, enxergar direito; em seguida, encontrar um bom ângulo de visão; e, finalmente, ter suficiente habilidade com as mãos para retratar o que está sendo visto. É isso o que pretendo adquirir com este blog: uma melhor percepção da realidade, uma maior sabedoria para interpretá-la na perspectiva correta e uma melhor capacidade de transmitir tudo isso, através das palavras, às pessoas que passarem por aqui.

Pode-se ver que não julgo de modo algum ter atingido a excelência em algum desses aspectos. Este blog nada mais é do que parte de um projeto que consiste, essencialmente, em aprender fazendo. Pode ser que daqui a alguns ou muitos anos eu releia tudo e ache uma tremenda porcaria, repleta de simplificações, ingenuidades, futilidades e tosquices. Não ficarei triste se isso vier a acontecer. Aliás, é justamente o que eu espero que aconteça. A ausência de tal percepção seria um sinal inequívoco do fracasso total deste empreendimento a que agora dou início.