5 de dezembro de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 8

A despeito do tempo curtíssimo gasto no passeio pela capital francesa, a diversidade de experiências novas chegou perto de ser atordoante. Isso foi motivado em parte pela própria escassez de tempo disponível: preferimos passar correndo por uma grande quantidade de lugares a visitar detidamente um ou dois. E para isso foi fundamental a presença da Régine, que conhecia muito bem a cidade, os meios de transporte e os atalhos aos pontos mais interessantes. Foi assim que passei, ao todo, duas horas dentro do Louvre, que mereceria uma visita de uma semana. No mesmo espírito, devo ter ficado menos de meia hora na catedral de Notre Dame, mais ou menos o mesmo na basílica do Sacré Coeur, uns quinze minutos sob o Arco do Triunfo, e assim por diante. A narrativa do que ocorreu dentro ou nos arredores desses pontos turísticos célebres de modo algum esgota os acontecimentos interessantes que vivenciei em Paris; na verdade, sequer chegam a ser os mais importantes. Apesar disso, começarei por aí.

O Arco do Truinfo é um belo monumento, mas nada que se possa considerar empolgante. Ele é, talvez, tanto pela fama quanto pelo tamanho, o maior exemplo do valor dado pela cultura francesa aos seus mortos em guerra, como já comentei num
post anterior. As duas igrejas acima mencionadas são lindas, com traços arquitetônicos ricos e repletas de belíssimas esculturas e outras obras de arte. Quando entrei em Notre Dame, havia no ar um canto muito bonito. E em Sacré Coeur acabei presenciando parte de uma missa que contava, também, com belas músicas. Embora o valor espiritual disso seja muito discutível, não deixou de ser muito agradável ao meu senso estético. O impacto só não foi maior porque, estando na França há várias semanas, eu já estava acostumado a ver prédios bonitos por todos os lados. Considero a primeira catedral mais bonita, mas a segunda tem também uma vantagem nada desprezível: depois de subir as centenas de degraus que levam à entrada (eu contei o número de degraus, mas já não me lembro de quantos eram), tem-se uma vista maravilhosa da cidade - que só não se mostrou ainda mais maravilhosa porque o tempo estava parcialmente nublado.

O Louvre é um caso à parte. Poderíamos ter gasto as duas horas de que dispúnhamos para o passeio apenas na fila para compra dos ingressos, que era gigantesca. Isso não aconteceu apenas graças, mais uma vez, à Régine, que nos conduziu a uma entrada lateral, meio escondida, desconhecida da quase totalidade dos turistas, e na qual não havia fila alguma. (Quem for ao Louvre algum dia me pergunte onde fica essa entrada, que eu explico.) Eu disse acima que poderia passar uma semana lá dentro, mas, pensando bem, creio que o ideal seria ficar ainda mais. Daria para permanecer uma semana em cada ala do museu. Lembro-me especialmente de ter passado correndo pelos quadros renascentistas e barrocos, pela ala egípcia e pelas esculturas gregas e romanas, ficando um ou dois minutos em cada sala, cada uma das quais contendo ao menos várias dezenas de peças. As seções árabe e medieval eu não pude ver, porque estavam em reforma. Mas o que vi, a despeito da pressa, foi maravilhoso. Para quem gosta de arte e história, é uma experiência inesquecível.


Não posso deixar de fazer um breve comentário sobre a Mona Lisa, já que todo mundo pergunta a respeito. É, de longe, uma das coisas menos impressionantes do museu todo, exceto pela quantidade de gente que se amontoa em volta dela para tirar fotos. (Sim, as fotos são permitidas, a despeito do que dizem os boatos.) É também a única sala em que me lembro de ter visto seguranças permanentes. Mas, sinceramente, não entendo o motivo. É um quadro minúsculo que fica atrás de um vidro espesso, e do qual não é possível, mesmo com esforço, chegar a uma distância inferior a uns três metros. Ou seja, mesmo que seja uma obra maravilhosa, não dá para ver muita coisa.


Fora dos pontos turísticos mais famosos também acontece muita coisa interessante. Merece destaque especial a música. Por toda parte - mas sobretudo nos lugares mais movimentados, é claro - há músicos oferecendo sua arte em troca das moedas lançadas pelos transeuntes. Sei que no Brasil isso também acontece, principalmente nas grandes cidades. A diferença reside no seguinte fato: aqui, os que já vi fazendo isso eram, em boa parte das vezes, velhotes com sanfonas meio desafinadas; gente a quem acabamos dando algum dinheiro por pura caridade. Na França, ao contrário, são músicos profissionais da melhor qualidade: no pátio interno do Louvre, um ótimo flautista; em algum lugar de que já não me lembro, um violinista igualmente bom; em frente a um teatro, uma cantora lírica, uma mulata cuja bela voz se fazia ouvir a um quarteirão de distância, numa avenida de trânsito intenso; numa rua qualquer, um quarteto de cordas; nas escadarias de Sacré Coeur, um harpista espanhol. Por todos os lados, excelentes músicos exercendo sua profissão com alegria, ao ar livre e em troca apenas da gentileza dos turistas. Os sons da alta cultura parisiense se espalham por todos os cantos, no meio da rua, e isso contribui para tornar os passeios a pé pela cidade muito mais agradáveis.


Os turistas de Paris são ao mesmo tempo espectadores e parte do espetáculo. Dentro do Louvre, nas ruas, no metrô, nos restaurantes, veem-se todos os tipos de rostos e roupas e ouvem-se muitos idiomas. Lá há europeus de toda parte, e em consequência disso há notas e moedas de euro provenientes de todos os países, ao contrário do que acontecia em Toulon. O simples ato de receber o troco de uma compra pode, portanto, trazer pequenas e agradáveis surpresas. Perto do Louvre, vi um sujeito que não sei de onde era, mas parecia asiático; trajava uma túnica alaranjada engraçadíssima e trazia na cabeça um chapéu enorme mais engraçado ainda. Mas o destaque fica, sem dúvida, por conta dos japoneses, que sempre aparecem com roupas e penteados de cores e formas inesquecíveis. São quase sempre adolescentes, e jamais aparecem em bandos de número inferior a cinquenta indivíduos, empolgados com tudo, rindo e falando alto e tirando pelo menos uma foto a cada cinco segundos. Para conduzir o bando todo, o guia turístico anda com umas placas coloridas na mão, semelhantes a raquetes de tênis de mesa. O efeito conjunto de tudo isso é muito divertido.


Andar de ônibus ou metrô em Paris é como em qualquer outro lugar que tenha esses meios de transporte, exceto, mais uma vez, pela diversidade de línguas. No metrô sentou-se ao meu lado um rapaz que trazia um livro escrito num alfabeto que jamais supus existir, e que talvez não volte a ver nesta curta vida. De resto, ouvi línguas de todos os tipos, inclusive de um tipo muito familiar: português, e com sotaque paulista. A diversidade racial também é muito maior em Paris que no pacato litoral sul. Em particular, a presença de negros é muito mais intensa. Creio que quase todos são oriundos de alguma das antigas colônias francesas na África, e falam com o que me pareceu ser um sotaque diferente (mas, dada a minha ignorância do idioma, essa impressão não pode ser considerada confiável). Muitos deles são camelôs, e andam carregando ou estendem em qualquer calçada (quando a polícia não está por perto) cartões postais, chaveiros e miniaturas da Torre Eiffel: os mesmos objetos que são vendidos nas lojas, mas a preços quatro ou cinco vezes menores, mesmo que o freguês não pechinche. E é muito fácil pechinchar; em muitos casos, os próprios camelôs tomam a iniciativa. Todos eles são sujeitos simpáticos e tratáveis; gostei deles.


A gentileza desses representantes da classe mais baixa de Paris faz lembrar a do povo do sul da França como um todo, e contrasta de modo notável com o jeito de ser da maior parte da população da própria capital francesa. A impressão que tive foi a de um povo sisuso, apressado, estressado, mal-humorado, não muito sensível e ocasionalmente mal-educado. Um único exemplo deixará isso suficientemente claro: ao passo que em Toulon qualquer cidadão, solicitado na rua, se compadeceria de um estrangeiro em dificuldades linguísticas e geográficas e faria de tudo para ajudá-lo (dei vários exemplos disso nas postagens anteriores), numa estação de metrô de Paris o próprio funcionário encarregado de fornecer informações não fez seu trabalho sem antes zombar de mim por causa de meu péssimo francês.


Faço questão de ressaltar esse contraste por uma razão muito simples: muitos brasileiros que já estiveram na França voltaram com uma péssima impressão sobre a hospitalidade e simpatia de seus habitantes. Quando me lembro dos gentis transeuntes, comerciantes e colegas de trabalho das pequenas cidades do litoral sul, não posso deixar de considerar esse juízo totalmente injusto. Já os parisienses, descontadas certas exceções, parecem merecer essa má fama. E, visto que a capital deve ser mais visitada por estrangeiros que qualquer lugar mais pacato, não é nada surpreendente que seus cidadãos tenham inadvertidamente transmitido aos estrangeiros uma impressão ruim sobre a totalidade do país. Mas nisso a França não é diferente de qualquer outro lugar: também aqui no Brasil as grandes cidades apresentam uma proporção consideravelmente maior de gente mal-educada. Os próprios franceses do sul pensam de Paris mais ou menos a mesma coisa que os brasileiros do interior costumam pensar sobre São Paulo ou sobre o Rio de Janeiro.


Por tudo isso, a despeito das inúmeras maravilhas presentes em Paris, muitas das quais ausentes em Toulon e arredores, não foi sem um certo alívio que embarquei na estação para a viagem de volta. Comparativamente, a cidadezinha do sul, que antes me parecera um lugar inóspito, selvagem e pouco acolhedor, agora me parecia um recanto pacato e aconchegante. Foi um passeio delicioso e inesquecível, sem dúvida, e recomendo uma ida a Paris a todos os que não desejam nada além disso. Mas não creio que seja fácil suportar a residência permamente naquele lugar. E disponho de não poucos testemunhos que confirmam essa minha impressão, fornecidos tanto por brasileiros quanto por franceses de outras localidades. Sendo assim, no domingo, depois que escureceu, tomei um ônibus para a Gare de Lyon, comprei um bom lanche e embarquei satisfeito para Toulon. Gostaria de ter ficado mais tempo e ter visto mais e melhor, mas estava contente por voltar ao meu lar temporário. E desta vez fiquei acordado durante a maior parte da viagem. Sendo noite, porém, mais uma vez não pude contemplar as belas paisagens que havia visto na ida, enquanto atravessava o país no sentido oposto.

26 de novembro de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 7

Embora já tenha se passado mais de um ano desde que voltei da França, ainda tenho algumas aventuras para narrar. Neste post começarei a contar sobre os aspectos mais importantes de minha viagem a Paris, tarefa que continuará no próximo texto. Fiquei lá apenas um fim de semana. Mais precisamente, cheguei no sábado, pouco antes do horário de almoço, e parti de volta para Toulon no domingo, pouco depois do anoitecer. Eu, na verdade, já havia estado na cidade-luz ao chegar à França, tendo permanecido nela cerca de quatro horas. Esse tempo é evidentemente curto demais para se conhecer Paris, e eu o gastei todo com o desembarque, a mudança de aeroporto e o reembarque. Além do mais, ambos os aeroportos parecem ficar longe de tudo o que há de interessante na cidade. Tudo isso fez com que meu desejo por um bom passeio na capital francesa apenas aumentasse.

Felizmente, surgiu uma oportunidade de satisfazer esse desejo. Minha amiga Marcia, sãocarlense e ex-companheira de coral que atualmente mora e estuda em Bruxelas, havia me convidado a ir visitá-la enquanto estivesse na França. Eu também desejava, é claro, conhecer a capital belga. Porém, Bruxelas é consideravelmente mais longe de Toulon que Paris, o que inviabilizou minha ida tanto por motivos financeiros quanto pelo pouco tempo de que eu dispunha: tendo de ir num dia e voltar no seguinte, eu passaria dentro do trem a maior parte do tempo útil. Por isso, sugeri que nos encontrássemos em Paris, por ficar mais ou menos no meio do caminho. A Marcia topou e levou junto a Régine, sua amiga belga.


A aventura começou muito antes que eu voltasse a colocar os pés em Paris. Fui comprar a passagem com uma semana de antecedência. Eu já tinha alguma experiência em comprar coisas na França. Achei que seria simples: eu diria que quero ir a Paris em tal dia, a moça me diria os horários disponíveis, eu escolheria um, ela diria o preço, eu pagaria, ela me daria a passagem e eu iria embora. Acabei descobrindo que andar de trem é uma das coisas mais complicadas que alguém pode fazer naquele país. O preço da passagem varia de acordo com uma infinidade de fatores: o dia da semana, o horário, o tipo e a posição da poltrona, o tempo que resta até a viagem, a compra ou não da passagem de volta junto com a de ida, as escalas que o trem faz e provavelmente outros dados de que já me esqueci. Eu não estava em condições de travar um diálogo tão complexo, e a atendente não tinha lá muita paciência - aliás, se bem me lembro, ela foi a única com quem tive problemas dessa ordem em toda a região de Toulon. Desisti, fui fazer outras coisas e voltei horas mais tarde, sendo desta vez atendido por uma mulher que não só era bem mais atenciosa, mas também falava um inglês perfeitamente compreensível - o que é uma raridade naquele canto do mundo, como já tive oportunidade de mencionar em outro post. O problema estava resolvido, enfim.


O próximo passo era certificar-me de que encontraria minhas duas companheiras de turismo naquela cidade enorme e indecifrável. Combinamos, por e-mail, um encontro sob a Torre Eiffel. A primeira questão, portanto, era: como ir da Gare de Lyon, a estação de trem parisiense, até o célebre ponto turístico? Eu não tinha a menor ideia. Quem resolveu meu problema foi o Google Maps. Logo vi que o caminho mais curto era consideravelmente complicado: eu teria de fazer umas quinze curvas, e não sabia se as ruas de Paris eram bem sinalizadas e identificadas; tampouco sabia se poderia contar com a paciência e a presteza do povo da cidade. Optei por um caminho algo mais longo, mas muito mais fácil: acompanhar o rio Sena (La Seyne), que passava perto tanto da estação quanto da torre. Ele não seguia em linha reta, mas seguir o curso de um rio é bem mais fácil que fazer quinze curvas corretamente numa cidade que se desconhece de todo e cujo idioma se ignora quase de todo. Essa consideração resolveu a questão quanto à estratégia a ser adotada.


Saí de casa - isto é, da casa da Caroline, minha anfitriã - às cinco da madrugada, e consegui tomar o trem sem grandes dificuldades. A paisagem era linda, mas não pude vê-la porque dormi quase o tempo todo, já que havia dormido pouco durante a noite e acordado muito cedo. De vez em quando eu despertava, olhava para fora e divisava uma daquelas paisagens até então só vistas nas mais belas produções do cinema europeu: campos, pinheirais, fazendas, plantações de uva, de trigo e outras coisas. "Que maravilha!", pensava eu, segundos antes de adormecer novamente. Uma das coisas que mais lamento quanto ao tempo em que permaneci na França é justamente não ter conseguido permanecer de olhos abertos durante essa viagem.


Cheguei à Gare de Lyon, desembarquei e pus-me a tentar descobrir para que lado ficava o Sena. Descobri depois de uns dez minutos, e parti. As diferenças entre Paris e Toulon começaram a se manifestar no fato de que ali todo mundo caminhava com pressa. Evidência adicional surgiu quando um mendigo me pediu esmolas ainda dentro da estação, e duas moças fizeram a mesma coisa antes que eu tivesse me afastado trinta metros dela. Em Toulon, conforme já mencionei aqui, recebi três pedidos de esmola em trinta dias; em Paris, esse número foi alcançado bem antes dos trinta minutos.


Andei uma hora e meia pela margem do Sena, carregando minha mala, até chegar à Torre Eiffel. Uma vez mais, não fiquei suado. Aliás, nesse dia passei mais frio que em qualquer outro, embora houvesse sol. (É notável a diferença de temperatura entre Paris e o sul da França.) Ainda assim, teria sido uma caminhada bastante cansativa, não fosse a beleza deslumbrante do cenário. Já teriam sido suficientes o Sena e os barcos que navegam sobre ele, a avenida que o circunda, suas árvores e suas esculturas, mas também passei pelos museus do Louvre e Orsay, a catedral de Notre Dame e muitas outras belíssimas construções de que agora não me lembro. Havia beleza em todas as direções. Me convenci naquele momento de que Paris devia ser a cidade mais bonita do mundo. (Mais tarde descobri que partilham dessa opinião muitos conhecidos bem mais experientes em viagens internacionais.)


De longe comecei a ver, enfim, o topo da torre. Quando me aproximei dela, contudo, algumas máculas começaram a aparecer naquele cenário deslumbrante. A primeira coisa que vi foi uma jovem refugiada da Bósnia, que veio me pedir esmolas por meio de um bilhete velho escrito em inglês. Dei-lhe mais dinheiro que a qualquer outro pedinte que já encontrei, na França ou no Brasil. Embora eu não tenha tido de pedir dinheiro a ninguém naquelas minhas poucas semanas como estrangeiro, dependi da boa vontade de pessoas desconhecidas para muitas coisas, e isso bastou para que eu compreendesse que, se mendigar é péssimo, mendigar no país dos outros é muito pior. Por causa dessa viagem, pude sentir com maior clareza e intensidade a benevolência contida na Lei dada por Moisés aos hebreus, quando disse: "Amai, pois, o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito" (Deuteronômio 10.19). A segunda coisa que vi ao me aproximar da torre foi um cartaz. Não pude compreender a mensagem toda, mas eu conhecia palavras francesas em quantidade suficiente para entender que se tratava de um alerta aos turistas para que tomassem cuidado com os batedores de carteiras. Era uma prova de que a tranquilidade paradisíaca de Toulon ficara mesmo a centenas de quilômetros de distância. E a terceira coisa que vi eliminou de vez qualquer possibilidade de dúvida quanto a esse ponto: um grupo de policiais passou por mim conduzindo um jovem algemado.


Cheguei à torre e parei com um suspiro de desânimo. Conforme já relatei, havíamos combinado um encontro bem embaixo dela. Eu havia imaginado ingenuamente que chegaria ao local e encontraria minhas duas companheiras de turismo calmamente sentadas num banquinho, acenando para mim; eu iria até lá e tudo estaria resolvido. Mas o que encontrei foi uma multidão de pelo menos duas mil pessoas, andando para todos os lados, ou enfrentando filas gigantescas que davam acesso aos elevadores da torre, ou ainda entrando e saindo das lojas que vendiam cartões postais, miniaturas da torre, chaveiros e outras bugigangas do tipo. Não havia meios de encontrar a Marcia e a Régine naquela multidão, a não ser me enfiando no meio dela. E foi o que fiz: andei por todos os cantos, inspecionei todas as filas, entrei em todas as lojas, várias vezes. No começo, estava achando tudo isso divertido. Afinal, havia mesmo coisas interessantes para se ver: os souvenirs das lojas, a paisagem do Champ de Mars, a estrutura gigantesca e toda entrelaçada da própria torre vista de baixo, e mesmo as pessoas: a diversidade de rostos, roupas e idiomas constituía por si mesma um espetáculo.


Tudo isso, porém, começou a me cansar depois de um tempo, pois eu havia viajado e caminhado bastante, e estava agora faminto, com as mãos e os ombros doloridos por causa da mala e já começando a pensar no que faria se as duas não aparecessem. Toulon era um lugar bem mais acolhedor que Paris, e eu sequer tinha o endereço do hotel em que a Marcia havia feito as reservas para nós. Após meia hora de procura, desisti de andar e decidi ficar parado perto de uma das lojas - que ficava alguns degraus acima do restante do terreno - e ficar observando dali a multidão.


Ao depositar a mala no chão, apertada entre meus pés (eu não me esquecera do cartaz que alertava sobre os ladrões), olhei para o aglomerado de pessoas e vi, no primeiro ponto em que pousei os olhos, a Marcia apontando uma câmera fotográfica para mim; a Régine estava ao seu lado. Sorri, feliz por encontrar pessoas queridas naquela cidade de rostos estranhos, e aliviado por estar agora na companhia de alguém que sabia se virar naquele lugar. Enquanto elas vinham em minha direção, ainda pensei: "mas será que elas estão me fotografando e rindo de mim há meia hora?". Felizmente, elas garantiram que haviam acabado de chegar.

5 de novembro de 2009

Reflexões nagelianas

Em contraste com este blog, em que costumam aparecer textos longos, detalhados e algo sisudos, no blog de meu amigo Gustavo Nagel predominam os pensamentos curtos, aforísticos e bem-humorados. Faz tempo que tenho vontade de me aventurar um pouco nesse ramo, apenas para fugir momentaneamente da rotina. Inspirado pelo exemplo de meu amigo, comecei, portanto, a escrever algumas coisas que me passavam pela cabeça, e agora as publico, devidamente divididas por temas. Nem todas são aforísticas ou bem-humoradas, mas ao menos são curtas.

Ciência

Quando dizemos que a ciência moderna só pôde surgir graças à cosmovisão teísta e cristã, alguns materialistas pensam que com isso estamos tentando justificar e preservar o cristianismo. Porém, o que estamos tentando fazer é justificar e preservar a ciência.

Um dos efeitos mais palpáveis de meu envolvimento pessoal em atividades de pesquisa científica foi a perda da confiança, compartilhada por tanta gente hoje em dia, na autoridade da ciência e dos cientistas.

César Lattes, o maior físico que o Brasil já teve, o que por duas vezes chegou perto de ganhar o Nobel, nunca fez pós-graduação e achava que tal empreendimento era perda de tempo. Deve ter sido, pois, a título de insulto, e não de homenagem, que deram seu nome à plataforma nacional de currículos acadêmicos.

Saber das coisas é ótimo, mas o ato de aprender é demasiado árduo e desagradável. Felizmente temos no MEC pessoas que sabem disso e fazem de tudo para nos proteger de semelhante experiência.

Irreligião

Em entrevista à Veja, o matemático anticristão John Allen Paulos afirmou que o fato de grandes matemáticos terem sido cristãos nada diz em favor da religião. O Gustavo replicou (num dos posts excluídos junto com seu antigo blog, creio eu) que "prova apenas que só um atrasado mental para opor uma coisa à outra". Eu concordo, mas vou além. Quem foi que disse que a religião precisa do aval da matemática? Na verdade, tal fato nada prova em favor da religião; mas talvez prove alguma coisa em favor da matemática.

Muita tinta é gasta pelos céticos quando eles tentam esclarecer para si mesmos as razões pelas quais seus argumentos antirreligiosos, que a eles próprios parecem irresistivelmente convincentes, não surtem o efeito desejado na conversão dos crentes ao seu "descredo". Quase todas as teorias propostas começam tecendo considerações sobre a falta de humildade das pessoas que invariavelmente aderem a sistemas de crenças que concedem importância cósmica às suas existências. E quase todas terminam com louvores indisfarçados aos que têm coragem de abrir mão de tais pretensões. Eis o ponto mais próximo a que esses senhores são capazes de chegar da verdadeira humildade.

Por mais que os ateus militantes gostem de fazer fama como mártires da razão perseguidos pelas forças tenebrosas do obscurantismo, não sou nem um pouco favorável a qualquer esforço de calá-los. Não só por causa da tal liberdade de expressão, mas também por uma questão estratégica. Um exemplo concreto deixará claro o que quero dizer: sou favorável à prisão de Dawkins, mas não para que ele se cale. Ele deveria ser enjaulado e levado numa viagem por todo o mundo, tendo a oportunidade de pregar contra a religião em cada pequeno povoado, com direito a tradução simultânea. Com base em minha própria experiência, creio que bem poucos gostariam de renegar a fé ou permanecer na descrença uma vez que vissem diante de si o próprio resultado encarnado dessas atitudes.

Não é verdade que não respeito escritores não-cristãos. Em média, respeito-os tanto mais quanto menos escrevam sobre o cristianismo.

Percepções gerais sobre a vida

Fazer fofoca nada mais é que confessar os pecados dos outros.

O problema da filosofia, da literatura, da música e do cristianismo é um e o mesmo: seus elementos menos dignos recebem muito mais publicidade que os melhores. Karl Marx, Paulo Coelho, Engenheiros do Hawaii e Bento XVI se equivalem perfeitamente na medida em que prestam aos seus respectivos campos de atuação o mesmo péssimo serviço.

Eu tinha cerca de cinco anos quando ouvi falar pela primeira vez na doutrina bíblica da eleição incondicional. Explicaram-me (não com essas palavras, creio) que Deus escolhera de antemão aqueles que seriam salvos e preordenara todos os eventos que levariam a isso, com base em critérios em nada relacionados aos méritos dos seres humanos. Ao ouvir a explicação, entendi imediatamente a razão pela qual a eleição era incondicional, mas não entendi por qual motivo um termo eleitoral deveria ser aplicado a esse caso. Na tentativa de compreender isso, logo imaginei as três pessoas da santíssima Trindade reunidas em torno de uma mesa, antes da fundação do mundo, examinando uma extensa lista de nomes e literalmente votando pela salvação ou não de cada um. "E se não houver votos brancos e nulos", pensei com satisfação, "não poderá haver empate".

O Chantilly, um dos gatos da minha namorada, adora perseguir sombras e tentar mordê-las. Quando tentamos brincar com ele agitando as mãos ou algum objeto, ele frequentemente ignora tudo isso e concentra sua atenção na sombra correspondente, que se agita no chão ou na parede. É o oposto exato da alegoria da caverna: um felino perfeitamente antiplatônico.

Poucas experiências nos alertam de maneira tão eficaz sobre a fragilidade humana quanto o ato de engasgar com a própria respiração.

Catolicismo

No centro de minha cidade há um prédio que já deve ter abrigado alguma instituição católica, a qual posteriormente cedeu lugar a um hotel. Está ainda pregado na porta um cartaz dos velhos tempos, ao qual os novos proprietários simplesmente juntaram um segundo. No primeiro se vê uma gravura da Virgem Maria com os dizeres: "O caminho da fé". E o segundo acrescenta: "Pague com Visa Electron".

Ao ver seu vizinho católico ajoelhando-se diante de uma estátua, o protestante comum, apegado à simplicidade de sua fé, percebe imediatamente que catolicismo é idolatria - algo de que nós, protestantes metidos a intelectuais, às vezes chegamos a desconfiar depois de ler uns oitenta livros.

O Gustavo acha, conforme declarou aqui, que "o maior argumento contra o protestantismo talvez seja o fato de a Igreja ter subsistido 1500 anos sem ele". Eu concordo plenamente. Mas, ao passo que ele considera essa uma excelente razão para deixar de ser protestante, eu considero que a falta de argumentos melhores é um ótimo motivo para continuar a sê-lo.

Esquerdices

É curioso como aquelas mesmas pessoas que desprezam revistas como Veja, Época ou IstoÉ por seu sensacionalismo, suas fofocas ou seu direitismo tomam-nas como autoridade final e inerrante quando algo é publicado ali sobre o criacionismo, o aborto, o movimento gay, o cristianismo ou a Bíblia.

Em termos econômicos, o problema do socialismo é que, revoltados com a discrepância entre a condição de vida dos ricos e a dos pobres, seus defensores acabam apoiando planos de sociedade que levam todo mundo à miséria. Estatisticamente, o problema é que ele toma como provado o estranho teorema de que a diminuição do desvio padrão leva automaticamente à elevação da média.

Pessoas que, como Einstein, pensam que um governo mundial seria a única solução contra a opressão de algumas nações por outras parecem jamais pensar em se precaver contra a possibilidade de o próprio governo mundial oprimi-las todas.

Em sua ânsia tipicamente esquerdista de se opor a todas as "opressivas" regras, uma ardorosa militante feminista americana passou a escrever seu nome sem iniciais maiúsculas. A fim de transgredir a gramática, portanto, ela assina seus trabalhos como "bell hooks". Nada poderia ser mais apropriado para uma ideologia que despreza a personalidade e coisifica as pessoas. Diz o velho clichê que a sociedade sempre tratou a mulher como um objeto. Pois na nova sociedade as próprias mulheres tratarão a si mesmas, não como um objeto, e sim como vários deles. E agirão assim segundo o exemplo dessa que trata a si própria como um sino e um punhado de ganchos.

Filósofos

Leon Trotsky é até hoje venerado por boa parte dos socialistas que conheço não só por seus dotes intelectuais, mas também por ter se oposto a Stálin e morrido com uma picaretada na cabeça. Quanto a mim, embora condene a iniciativa de seu velho inimigo, não posso solidarizar-me com os que consideram sua partida deste mundo uma grande perda. Até onde posso ver, não havia na cabeça dele nada que fizesse valer a pena o esforço de abri-la de maneira tão violenta.

Tenho a impressão de que a filosofia de Nietzsche não é muito mais que uma racionalização literariamente talentosíssima das sensações viscerais despertadas no autor de maneira imediata por um contato apenas superficial com os objetos de sua análise. Ao contrário do que se costuma esperar de um filósofo, o órgão mais diretamente envolvido em sua atividade intelectual não é o cérebro, e sim o estômago. Não há sentido, portanto, em atribuir a Nietzsche o epíteto de "grande filósofo" com base nos textos que escreveu, a menos que se atribua o mesmo título a Pelé, em reconhecimento aos dribles e gols que fez.

Voltaire não era um filósofo, e não era sequer um intelectual no sentido legítimo dessa palavra. Era apenas um comediante; ou, se preferirem, um palhaço, no sentido não-pejorativo do termo. Mas, ao levar a sério demais suas próprias piadas, tornou-se um palhaço no sentido pejorativo.

Pretendo escrever, algum dia, um conto que narre o duelo verbal de dois reducionistas irredutíveis: de um lado, um revolucionário marxista que considera todos os desejos humanos como resultados dialeticamente determinados pela luta de classes; do outro, um psicanalista freudiano convicto de que o ímpeto de transformar o mundo é mero subproduto de desejos sexuais inconscientes e reprimidos.

6 de outubro de 2009

Retratando

"Que rios bastariam para nos lavar de tanta ignorância quanto a que, pela misericórdia do Senhor, se corrige a cada dia?" (João Calvino)

Nos últimos tempos tenho escrito pouco neste blog - digo, com baixa assiduidade, pois o tamanho dos posts tem sido, estatisticamente, o mesmo de sempre. E tenho gasto muito espaço com coisas que qualquer criança poderia fazer, como relatos de viagens, resumos de livros velhos e críticas a textos ateístas e modernistas. Várias pessoas já me disseram, diretamente ou não, que preferem essa nova fase, e eu de fato creio que faria mais sucesso se decidisse permanecer nela. Talvez alguém pudesse, de uma comparação entre a fase inicial e a posterior, extrair ao menos uma de duas conclusões: primeira, que mudei o estilo e os assuntos para conquistar maior público; e segunda, que as questões intelectuais que sempre tiveram proeminência por aqui - relativas a teologia, filosofia, ciências, literatura, história - têm agora me interessado menos, e talvez até minha vida intelectual esteja estacionada.

A primeira possível conclusão não seria verdadeira. Como afirmei já na postagem inaugural deste blog, "meus objetivos são primariamente egocêntricos". Não significa, é claro, que eu não goste de ter leitores ou de receber comentários. Através deste blog já recebi comentários úteis e inúteis, elogios e críticas, arrumei novos contatos e até algumas amizades, bem como algumas briguinhas. De modo geral, gosto muito de ter passado por tudo isso. No fundo, porém, devo admitir que não é só para os leitores que escrevo, e talvez nem em primeiro lugar. Outro dia um amigo me perguntou por qual razão eu escrevo num blog. É uma questão sobre a qual eu nunca havia refletido detidamente. Ao abrir este blog, listei minhas razões para fazê-lo. Mas os motivos para dar início a um procedimento não podem coincidir de todo com os motivos para persistir nele depois de quase três anos, ainda que essa última classe de razões não chegue a contradizer a primeira. Assim, a pergunta de meu amigo obrigou-me a sondar meu próprio interior quanto a essas novas justificativas. Dei-lhe, assim, uma resposta improvisada, mas que, depois de ter refletido de maneira mais demorada a respeito, considero inteiramente correta.

Escrevo para registrar o que me passa pela cabeça. Trata-se de uma espécie muito peculiar de diário: um diário que, além de não ser atualizado diariamente, é público, sem periodicidade definida e sobre assuntos não confidenciais. Embora eu escreva por prazer e necessidade pessoal, preciso ter algum outro leitor em mente, ainda que hipotético e abstrato. Do contrário, não tenho com quem me comunicar. Escrever para mim mesmo é muito fácil, pois sou capaz de entender o que eu mesmo quero dizer ainda que não o explique bem. Em vista disso, na ausência de leitores sou acometido de uma certa preguiça de me empenhar em prol de uma clareza que não requer empenho algum, e assim tornar o texto abreviado e mal construído demais, como um rascunho. E tenho plena consciência do risco que isso acarreta. Nunca tive um diário, mas já guardei velhos cadernos de anotações e rascunhos durante anos. Quando voltei a abri-los, descobri que era incapaz de discernir algum sentido na maior parte do que estava ali anotado: coisas que me pareciam perfeitamente claras quando as coloquei no papel, mas que se tornaram indecifráveis depois que minha mente se desligou delas por tempo suficiente. A fim de evitar isso, publico meus textos. Mesmo que ninguém jamais lesse nenhum deles, a simples possibilidade desse acontecimento já bastaria para me obrigar a uma atitude diferente dessa que acabo de descrever. Preciso me esforçar para transferir a clareza para o texto, pois nenhum leitor é obrigado a adivinhar o que não está ali. Assim, o respeito pelo leitor me leva a buscar o aprimoramento da expressão escrita. E além de tudo isso, é claro, existe a possibilidade de que o que digo faça bem a algum leitor, conhecido ou desconhecido.

De maneira análoga, o respeito pelo leitor me leva também a aprimorar o conteúdo. Não é que eu me preocupe em dizer coisas interessantes. Na verdade, boa parte do que escrevo certamente não pode interessar a muita gente. Mas me preocupo em não dizer besteiras. É claro que o espaço é meu e tenho o direito de publicar nele o que bem entender, já que não há compromisso algum de meus textos com quem quer que seja. Entretanto, creio que a publicação de qualquer coisa traz consigo uma obrigação intrínseca de tomar cuidado. No meu caderno de rascunhos posso escrever as besteiras que quiser e substituir o conhecimento pela imaginação sempre que me der vontade. Não tem problema, porque ninguém vai ver. É apenas um backup de partes de meu cérebro, e nada mais que isso. Um blog é isso também, mas ao mesmo tempo é muito mais que isso. Não tenho a obrigação de ser infalível, é claro, mas tenho a de não tratar os assuntos de maneira imprudente. Todos esses esclarecimentos, ressalvas e especificações esclarecem o que eu quis dizer ao afirmar que este blog é um diário muito peculiar. Porém, a despeito de todos os esforços, bobagens acabam sendo ditas. Jamais tive ilusões quanto a isso. Ao abrir o blog, declarei:

"Pode ser que daqui a alguns ou muitos anos eu releia tudo e ache uma tremenda porcaria, repleta de simplificações, ingenuidades, futilidades e tosquices. Não ficarei triste se isso vier a acontecer. Aliás, é justamente o que eu espero que aconteça."

Não cheguei (por enquanto, pelo menos) ao ponto de achar que tudo o que escrevi é uma porcaria. Mas já não concordo com certas coisas que eu mesmo publiquei aqui, e tampouco aprovo algumas das atitudes que adotei enquanto escrevia. Deixei documentada uma porção de erros, e só não cometi muitos outros por não ter tido tempo de escrever mais. Não é a primeira vez que isso acontece, é claro. Já me retratei de coisas que disse aqui mesmo, e já expliquei melhor declarações que poderiam transmitir uma impressão errada. Mas eram erros localizados, específicos e de correção relativamente simples. Nenhum deles envolvia revisões muito sérias de minha visão de mundo ou minhas atitudes. Mas nos últimos tempos tem acontecido tudo isso. E esse fato, diga-se de passagem, relaciona-se de perto com a segunda conclusão a que um leitor poderia chegar a partir de minhas últimas postagens: a de que meu interesse pelas grandes questões diminuiu. Tal conclusão seria um equívoco ainda maior que a primeira. Embora eu venha tendo menos tempo para ler e escrever, tenho refletido de maneira mais intensa sobre certos assuntos e acontecimentos, e mudado de maneira significativa algumas de minhas posições. A profundidade e a velocidade dessas mudanças são justamente os fatores que me impediram de falar sobre elas até o momento, e talvez continuem impedindo por mais algum tempo. Pois as grandes mudanças, ao contrários das pequenas, levam tempo para ser compreendidas pela mente e absorvidas pelo coração. Até que o processo se complete, na medida em que chega a se completar, a melhor coisa a fazer é ficar em silêncio, ao menos sobre o assunto em pauta. Eis a razão pela qual tenho dedicado este blog a outras coisas, a assuntos que não exigem de mim grande esforço. É claro que, à parte de tudo isso, a diminuição de meu tempo disponível para escrever é um fato objetivo de minha vida pessoal, e isso também me desencoraja a escrever sobre os assuntos que ocupam o centro de minhas atenções: eles me parecem importantes demais para que eu me pronuncie a respeito deles com pressa.

De qualquer forma, meus erros estão publicados, e preciso decidir o que fazer acerca deles. A solução mais fácil seria excluir o blog (ou pelo menos alguns de seus textos), de modo a eliminar a possibilidade de que alguns leitores sejam convencidos de ideias em que já não acredito, causando-lhes assim o que é, de minha perspectiva presente, um mal. Tal procedimento, porém, é objetável por duas razões. Uma delas é que, se as partes das quais hoje discordo podem fazer mal aos leitores, as partes com as quais continuo concordando podem muito bem beneficiá-los, e separar umas das outras sem mutilar profundamente alguns textos seria difícil a ponto de ser mais fácil reescrevê-los. A segunda razão é que tal procedimento seria incompatível com o propósito fundamental do blog, conforme o descrevi acima: se as ideias em questão não são mais minhas, nem por isso perdem o direito de ficar registradas. Meu blog serve, como já afirmei, para que eu registre aquilo que ocupa minha atenção; assim, o espaço possui uma história e uma continuidade próprias. Afirmei acima que ele é uma espécie de diário, mas creio que é ainda mais exato dizer que é uma espécie de álbum de fotografias: seu propósito é registrar momentos; ele é algo como um auxiliar da memória, e uma fonte de memórias para quem não vivenciou os momentos em questão. Excluir as partes que já não julgo aproveitáveis seria varrer para debaixo do tapete todo um lado de minha própria história, fingindo que jamais existiram.

Porém, a decisão de não excluir o blog deixa sem solução o problema. As ideias que repudiei continuam lá, impunes. Não seria honesto ignorá-las, pela razão mencionada no parágrafo anterior. Além disso, não quero ignorá-las, pois elas revelam informações importantes sobre mim. E tampouco é meu desejo que o leitor, qualquer que seja, deixe de tomar contato com elas. Quero que ele tenha a oportunidade de saber que errei e tomar conhecimento de como vim a desviar-me desses erros. Em outras palavras, só me resta a retratação. Não deixa de ser curioso o fato de que a palavra "retrato" está no título deste blog. Eu nunca havia percebido, até este momento, que o mesmo verbo é usado em nossa língua para designar a confecção de um retrato e o anúncio público de uma mudança de posição. Retratar-se é pintar um retrato de si mesmo, um retrato diferente do que até então vinha sendo pintado. As distorções nos retratos em exposição denunciam a miopia do artista. Quando ele próprio descobre isso, tem a obrigação de arrumar um bom par de óculos e sair consertando tudo. É o que começarei a fazer, não de imediato, por pura falta de tempo, mas assim que puder.

24 de setembro de 2009

Almas sob o altar

"Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que sustentavam. Clamaram em grande voz, dizendo: 'Até quando, ó soberano Senhor, santo e verdadeiro, não julgas, nem vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra?' Então a cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos como também eles foram." (Apocalipse 6.9-11)

Têm havido mártires cristãos quase desde a própria fundação da Igreja, desde que os judeus de Jerusalém apedrejaram Estêvão, conforme a história narrada nos Atos dos apóstolos. E a lista dos mártires continua aumentando com rapidez até hoje. Desde a infância tenho ouvido muitas histórias de perseguições aos cristãos, mas tenho pensado nisso com maior frequência ultimamente. Só o século XX testemunhou a morte de dezenas de milhões, mortos por se recusarem a negar sua fé ou trair seus irmãos, sobretudo sob regimes comunistas e islâmicos. Porém, isso não fez o cristianismo desaparecer nos países onde há perseguição, e talvez esses lugares não sejam mais suscetíveis a esse risco que aqueles em que ser cristão é uma coisa tão fácil e cômoda que se torna possível ostentar esse título sem risco ou compromisso algum. Esse fato talvez confirme a declaração feita, creio eu, por Tertuliano de Cartago, segundo a qual o sangue dos mártires é a semente da Igreja.

Recentemente li, em edição portuguesa, um livro já meio antigo de Richard Wurmbrand, um judeu romeno que passou catorze anos numa prisão comunista, sofrendo solidão total, fome, torturas e trabalhos forçados. Foi condenado a tudo isso sob a terrível acusação - verdadeira, por sinal - de ser pastor luterano. Uma vez libertado, ele emigrou para a Europa Ocidental e, mais tarde, para os EUA, onde fundou e presidiu uma missão para prestar ajuda (espiritual e material) às igrejas dos países comunistas, fornecer exemplares da Bíblia e outros textos cristãos, além de pregar o Evangelho aos que vivem sob (e sobre) o regime. Ao longo do livro, intitulado Onde é que Cristo está ainda a ser perseguido?, Wurmbrand conta muitas histórias sobre toda sorte de sofrimentos e privações enfrentados por esses cristãos distantes: assassinatos, prisões, torturas físicas e psicológicas, carreiras destruídas, famílias separadas. Essas histórias são contadas com graus diversos de detalhamento; em muitas delas os nomes ou locais sequer são mencionados, pois a divulgação dessas informações poderia colocar irmãos em perigo. Alguns casos são mencionados apenas de passagem, enquanto outros são narrados mais extensamente. Transcrevo abaixo os nomes dos 56 mártires citados no livro, acompanhados de algumas das informações que porventura lhes digam respeito. (Alguns dos prenomes devem ter sido aportuguesados, e outros anglicizados; não procurei saber qual era a grafia original.)

Note-se que há na lista nomes de protestantes, católicos, ortodoxos e outros grupos cristãos minoritários. Apesar de todas as graves divergências internas da cristandade, acho justo mencionar todos esses grupos. É verdade que somos todos hereges aos olhos uns dos outros, mas os Estados ateístas que levaram todos esses fiéis à morte não estavam preocupados em saber quem era representante do cristianismo verdadeiro. Por isso, ao menos num certo sentido, Cristo foi perseguido em todos os casos. Cabe só a Deus decidir quem morreu pela causa (ou Pessoa) correta. A nós cabem as orações e o auxílio a todos os perseguidos, sejam de que estirpe forem.

1 e 2. Odintsev e Pedro Vins, cristãos mortos sob o regime de Stálin; o segundo foi morto na prisão, e seu filho também foi preso posteriormente.

3 a 8. Khmara, Moiseyev, Ostapenko, Bilenko, Deynega e Lambdin, batistas russos mortos sob os governos de Krushev e Breznev. O primeiro teve a língua cortada. Sobre Ivan Moiseyev eu já havia lido em outro lugar: foi um jovem soldado pentecostal que teve problemas no exército por causa de sua fé, e acabou morto devido ao tratamento que recebeu na prisão - coisas como passar a noite em pé ao relento do inverno russo usando farda de verão. O exército divulgou o afogamento como causa acidental da morte e não entregou o corpo à família Moiseyev.

9. Nina Rujetshko, adventista russa torturada até a morte na prisão de Kemerovsk no Ano Novo de 1980.

10. Simeão Baholdin, adventista russo morto no campo de Slikamsk em setembro de 1980.

11 e 12. Gorgula e Kotyk, padres católicos ucranianos. O primeiro foi regado com gasolina e queimado, e o segundo foi encontrado coberto de sangue, com os dentes quebrados e a boca cheia de pão, em sinal de zombaria à Eucaristia.

13. Premysl Coufal, padre da igreja subterrânea (isto é, não autorizada pelo Estado) da Tchecoslováquia que havia sido ordenado secretamente. Foi morto por ter se recusado a denunciar outros fiéis. Os comunistas invadiram sua casa, quebraram-lhe o nariz e o crânio e deixaram o gás ligado ao sair.

14 e 15. Barendsen, Sobrenome de um casal de missionários protestantes holandeses que foram picados em pedaços no Afeganistão comunista.

16. Jameel Safoury, protestante libanês que teve os braços e cabeça decepados por guerrilheiros palestinos.

17. Alexandre Sisoiev (nome provável, mas incerto), segundo Solzhenitsyn, foi um evangelista fuzilado no campo de concentração de Kengir depois de ter passado muitos anos detido ali. Era tão estimado pelos 2500 presos desse campo (dos quais apenas um quinto eram presos políticos) que sua morte causou uma rebelião, a qual foi sufocada violentamente, resultando na morte de setecentos detentos.

18. Munteanu, padre ortodoxo romeno.

19. Gavrilov, capitão russo executado por organizar uma União de Oficiais Cristãos e publicar uma revista cristã.

20. Ramero, pregador batista cubano. Foi preso e confinado numa cela cujo tamanho era o estritamente suficiente para que ele ficasse sentado. Foi também espancado com cordas e paus, queimado com brasas, banhado em ácido e teve sua cabeça colocada numa caixa com abelhas. Como, depois de tudo isso, ainda se recusava a confessar crimes que nunca cometeu, foi enfim executado.

21. Boitel, jovem cubano fuzilado.

22 a 28. Wen-Yuang Kung, Liu-Ling-Chiu, Chou-Ching-Tse, Tung-Hu-En, Fang-Ai-Shih, Chou-Fu Ching e Marcus Cheng, alguns dentre os milhões de cristãos chineses mortos sob o regime maoísta.

29. Kuman Chandah, médico indiano que morreu após ter tido as pernas e os olhos arrancados numa prisão chinesa.

30 e 31. A família de Vladimir Tatishtshev, um cristão russo que teve as pernas quebradas na cadeia para confessar crimes imaginários. Como se recusasse, sua casa foi invadida, a esposa foi fuzilada e o filho bebê teve a cabeça esmagada contra uma parede.

32. Kiwanuka, procurador da missão de Wurmbrand no Uganda.

33. Wang-Shiu-Mei, cristão chinês e membro da missão de Wurmband, foi espancado até a morte por ter sido flagrado portando Bíblias.

34 e 35. Jon Clipa e Sabin Teodasiu, colaboradores da missão de Wurmbrand que foram mortos na Romênia.

36 a 40. Suciu, Frentziu, Rusu, Hossu e Aftenine, bispos uniatas romenos. O último morreu louco devido às torturas que sofreu na prisão.

41 a 44. Macavel, Pop, Moldovan e Stanescu, padres uniatas romenos. (Uniatas, ou católicos do rito oriental, são ex-ortodoxos que se submeteram a Roma, preservando, porém, um rito próprio.)

45 e 46. Chiu-Chin-Hsiu & Ho-Hsiu-Tzu, duas jovens chinesas de Kiangsi, fuziladas na prisão por seu próprio pastor, que atirou nelas em troca da promessa de liberdade e foi fuzilado em seguida, pagando assim o preço por sua traição e por confiar em comunistas.

47 a 51. John Kotcurov, John Riabuhin, John Krasnov, Nikolai Koniuhov e Alexandre Podolskii, padres ortodoxos russos. O primeiro dessa lista foi também o primeiro padre ortodoxo a ser morto pelos comunistas, segundo uma fonte ortodoxa russa clandestina. O segundo foi morto em Essentuki, juntamente com muitos outros; teve os membros amputados e foi sepultado vivo. O terceiro também foi sepultado vivo. O quarto foi abandonado à morte por congelamento. O último foi espancado até a morte, e aqueles que tentaram sepultá-lo foram fuzilados.

52. Tikhon, diácono ortodoxo russo que foi forçado pelos comunistas a cantar os cânticos de seu próprio funeral enquanto seu filho de dez anos cavava sua sepultura.

53 e 54. Grigorii Dmitrevskii e Grigorii Nikolski, padres ortodoxos russos. O primeiro teve o nariz decepado, seguido pelas orelhas, e foi, enfim, decapitado. O segundo foi morto por um grupo de comunistas cujo líder, depois de tê-lo ouvido recitar a liturgia, lhe disse: "Agora vamos dar-te a Santa Comunhão", e lhe deu um tiro na boca.

55. Ghasibe Kayrouz, estudante libanês de vinte e dois anos que foi fuzilado enquanto viajava a Nabha para passar o Natal com sua família. Tendo tido um pressentimento de sua morte, escreveu uma carta consolando seus queridos e pedindo que perdoassem seus assassinos.

56. Pavel Vasilievitch, pastor batista morto num campo de concentração soviético. Sua esposa foi condenada a dez anos de trabalhos forçados, e só soube de sua morte anos mais tarde.

Mas por que estou transcrevendo esses nomes todos aqui? Acho que o principal motivo é que me ocorreu, enquanto lia o livro, que esses nomes merecem ser lembrados, ainda que seja difícil decorá-los. Wurmbrand diz em alguma parte que se espantava em saber que muitos cristãos americanos conheciam o nome de atletas e outras celebridades romenas, mas não sabiam citar um único irmão romeno martirizado. Os nomes dos mártires deveriam ser lembrados com maior frequência. Conta-nos Marcos em seu evangelho que Jesus honrou a mulher que o ungiu com um perfume caríssimo de nardo. Diante dos protestos de alguém que sugeriu que a preciosa substância deveria ter sido vendida e o dinheiro usado para ajudar os pobres, o Senhor respondeu: "Os pobres sempre tendes convosco e, quando quiserdes, podeis fazer-lhes bem, mas a mim nem sempre tendes. [...] Onde for pregado em todo o mundo o Evangelho, será também contado o que ela fez, para memória sua." (14.7,9). João dá nomes aos personagens, identificando a mulher com Maria, irmã de Lázaro e Marta, e o queixoso com Judas Iscariotes. Sobre este diz o quarto evangelista: "Isto disse ele, não porque tivesse cuidado dos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava" (12.6).

Vejo alguma semelhança entre Maria e os mártires cristãos produzidos pelo comunismo: tanto estes como aquela deram maior valor a Cristo (ou pelo menos à igreja e aos irmãos de fé) que aos que perpetravam crimes e os justificavam pelo falso pretexto do amor aos pobres. Em vista disso, deixo aqui este pequeno memorial em homenagem a esses bravos combatentes e à classe que eles representam, a daqueles que vão, a cada século, completando o número de almas que aguardam sob o altar de Deus.

30 de agosto de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 6

Embora eu ainda tenha algumas aventuras para narrar, sinto necessidade de fazer uma pausa para contar algo sobre certos fatos e experiências que, como agora percebo, não foram adequadamente descritos nas postagens anteriores, e nem poderiam ser nas que ainda pretendo publicar. O que há em comum entre eles é o fato de que se estendem por todo o período de minha viagem, não se concentrando em nenhum momento e não podendo, portanto, ser senão parcamente ilustrados pela narração de eventos específicos. Refiro-me, principalmente, a coisas triviais que qualquer um que andou por terras distantes deve contar, por estarem entre as primeiras que todo mundo pergunta. De alguma maneira que nem eu compreendo bem, consegui não falar sobre esses tópicos até agora.

O primeiro deles é a comida. Em vista da fama da culinária francesa, várias pessoas vieram me perguntar a respeito. Respondo apenas que, até onde pude constatar, a fama se justifica. Mas os elementos de que disponho para emitir tal parecer são bem menos abundantes do que seria de se esperar de alguém que esteve lá, ainda que por pouco tempo. E a razão disso é muito simples: na França, de fato, pode-se comer muito bem, desde que se tenha dinheiro. É desnecessário dizer que não era o meu caso. Dadas as minhas condições financeiras, comer em restaurantes era exceção, e não regra. Sendo mais preciso, pisei quatro vezes em estabelecimentos desse tipo. Em todas elas comi muito bem, exceto quando decidi comer uma pizza - ocasião a que já aludi anteriormente. E em nenhuma gastei menos de onze euros, sem contar a bebida.

Visto que meus talentos na cozinha estão em algum ponto entre o desprezível e o inexistente, surge naturalmente a questão: o que fazer se o dinheiro não basta para comprar comida pronta todos os dias? A resposta é dupla. Em primeiro lugar, os supermercados: neles há uma profusão de produtos semiprontos ou de preparação facílima a um preço relativamente baixo. (Praticamente tudo na França é bem mais caro que no Brasil, de modo que os produtos de supermercado se tornam, em comparação, consideravelmente baratos.) Há inclusive, uma porção de elementos provenientes da culinária marroquina e de outros países da África setentrional. As frutas são todas lindas e apetitosas - como raramente se vê nos supermercados daqui do paraíso da fruticultura -, mas muito caras. Cheguei a ver em Paris um quilo de cerejas por mais de trinta euros. Em compensação, há uma estonteante diversidade de queijos, e quase todos a um preço acessível. Se há uma coisa que lamento no que diz respeito à alimentação durante essa viagem, é justamente o fato de ter comprado e provado apenas uma minúscula parte de toda a variedade disponível desse gênero alimentício. Mas a maior de todas as minhas surpresas foi ter descoberto que lá aparentemente inexiste uma coisa tão banal quanto o chá mate. (Os franceses a quem perguntei dividem-se quanto a isso: a maioria garante que o chá mate não existe na França; alguns, porém, afirmam que já viram isso à venda alguma vez.)

Em segundo lugar, é claro, existem os lanches e alimentos semelhantes. Há pães de todos os tamanhos, sempre bonitos e deliciosos. Também não cheguei a provar senão uma ínfima parte da variedade disponível no que diz respeito aos formatos, tamanhos, coberturas e recheios. Alguns deles de fato valem sozinhos por uma refeição. Não tenho motivo algum para reclamar das padarias. Boa parte doque digo sobre os pães aplica-se também aos doces. De modo geral, os franceses são tão bons em café da manhã quanto em almoço e jantar. O mesmo, porém, não pode ser dito quanto ao fast food, a velha arte de enganar o estômago. A pizza a que já aludi é bem ilustrativa quanto a esse ponto. O povo dessa terra é tão ruim com a má alimentação quanto é excelente com a boa. Posso resumir a situação dizendo que os melhores lanches da França são os do McDonald's, tanto pelo sabor quanto pelo preço. Eu, que detesto o McDonald's por razões vinculadas estritamente ao meu sistema digestório - pois minha língua e meu estômago, posso garantir, não ligam para questões ideológicas -, vi-me comendo lá mais frequentemente que em qualquer outro lugar. Há outras redes do mesmo tipo, francesas mesmo, como o Quick; entretanto, embora algumas delas ofereçam lanches maiores, o sabor tende a ser sensivelmente inferior. Todos os salgados que vi - inclusive os célebres croissants - eram pequenos, de aparência muito oleosa e pouco apetitosa, de modo que não julguei que valesse a pena pagar por eles. E as lanchonetes comuns oferecem lanches de tamanho razoável, mas bem pouco saborosos. O preço costuma ser algo em torno de cinco euros. E em alguns estabelecimentos o atendente nem mesmo se dá ao trabalho de esquentar sua mercadoria.

Não posso deixar de fazer também um comentário geral sobre as cinco vezes em que fui convidado para jantar ou almoçar em algum lar francês. A comida era leve e simples, e estava deliciosa em todas as ocasiões. Não cheguei a notar grandes diferenças no cardápio. Há, porém, dois detalhes dignos de menção. O primeiro é que os franceses não têm o hábito de tomar sucos ou refrigerantes como acompanhamento. Tomam vinho, e quem não quer vinho toma água. Eu gostaria de entender alguma coisa de vinhos para poder comentar mais extensamente a respeito, ou mesmo apenas para poder me lembrar de quais deles experimentei. Não sendo o caso, porém, sou obrigado a me contentar com essas poucas palavras a respeito, sem deixar de observar, contudo, que todos os vinhos que provei eram excelentes. E o segundo detalhe, que apreciei ainda mais, diz respeito aos já mencionados queijos, que os franceses têm o hábito de servir como uma espécie de sobremesa, numa bandeja contendo cinco ou seis tipos. Portanto, o cotidiano gastronômico dos franceses parece consistir de comida leve e saborosa, acompanhada de vinhos e queijos. Li recentemente que na França há quatrocentos tipos de vinho, e um queijo apropriado para acompanhar cada um deles. Não vi todo esse rigor no dia a dia, e nem de longe provei tamanha variedade. De maneira geral, porém, o panorama culinário desse país me agradou bastante.

O segundo tópico digno de nota é o clima. Já falei sobre a beleza do outono francês, e de como fiquei satisfeito por ter estado lá justamente durante essa estação; contei também que o sol daquele país não foi capaz de me deixar suado. Contudo, há mais a ser dito. Embora eu tenha permanecido na França por apenas um mês, e todo ele dentro de uma mesma estação, nem por isso deixei de experimentar certa diversidade climática. No primeiro sábado fui passear pela praia e pelo centro de Toulon vestindo apenas bermuda e camiseta, e o clima estava muito agradável: sol ameno, vento moderado e não gelado, céu azul com bem poucas nuvens. Na última semana o tempo estava cinzento, ventava muito, chovia todos os dias, várias horas por dia, e era impossível sair de casa com menos de dois casacos. O clima era um tanto deprimente, e se eu não estivesse avidamente interessado em aproveitar os últimos momentos da viagem - isto é, se houvesse perspectiva de permanecer na França por mais alguns meses com aquele clima horrível (e, na verdade, a tendência é ir piorando) -, creio que teria de fato ficado deprimido.

Mas não digo isso só por causa do clima. Um dos aprendizados mais importantes dessa viagem foi a descoberta de que gosto do Brasil mais do que eu mesmo supunha. Por mais deslumbrante que a França seja em muitos aspectos, ela é incapaz de aquecer o coração de um brasileiro. A viagem só foi maravilhosamente boa por ter sido curta. Senti falta de uma boa companhia, de ter com quem compartilhar os passeios e conversar longamente sem entraves linguísticos. Teria sido muito pior, é claro, se eu não fosse tão introvertido. Mesmo assim, creio que não gostaria de voltar sozinho à França, nem de ir sozinho a qualquer outro país.

É interessante ressaltar que a alteração climática a que me referi não é como as que estou acostumado a presenciar no Brasil. Aqui em São Carlos não é raro termos as quatro estações num único dia. Mesmo em outros lugares, porém, são comuns as mudanças mais ou menos bruscas de temperatura e outras variáveis - de um dia para o outro, por exemplo. Nada parecido com isso aconteceu na França: o processo foi tão gradual que só me dei conta dele depois de umas duas semanas.

Há um terceiro tópico de descrição não tão fácil e cuja natureza é psicológica, mas que creio ter ficado perfeitamente nítido em um evento proporcionado pela conjunção dos dois elementos acima mencionados, comida e clima. Num dia da última semana, almocei numa loja do KFC próxima ao campus. O KFC é parecido com o McDonald's, mas com duas importantes diferenças: todos os lanches são à base de frango, e as bebidas (refrigerantes, chá gelado ou suco) são fornecidas à vontade por um preço único, naquelas máquinas com torneirinhas. O próprio atendente fornece o copo no qual se bebe. Depois de enfrentar fila, fiz meu pedido, peguei o lanche e o copo e, não havendo lugar vago no interior do prédio, fui me sentar numa das mesinhas colocadas lá fora. Não estava chovendo, mas havia um vento fortíssimo, o qual prontamente levou o copinho de plástico, que eu ainda não tivera oportunidade de encher. Sem pensar duas vezes, deixei o lanche sobre uma das mesas e saí correndo atrás do precioso recipiente. Não foi uma tarefa fácil recuperá-lo, mas, depois de uma perseguição de dois ou três minutos, que me conduziu por todo o estacionamento, enfim alcancei meu objetivo ao me abaixar para apanhar o objeto buscado, que jazia enroscado sob um carro, e voltei ostentando meu troféu diante de uma plateia de quatro ou cinco famílias. Foi apenas nesse momento que constatei, não sem uma certa surpresa, que eu não estava nem um pouco constrangido.

Esse episódio ilustra o mais interessante fenômeno psicológico que me acometeu na França: a perda da vergonha de pagar mico. Fui forçado a perdê-la por razões estritamente práticas: eu poderia, é claro, ter me dirigido ao balcão, explicado o que houve e solicitado outro copo, se já não soubesse, com base na experiência das semanas precedentes, o quanto isso seria trabalhoso. Estimo que eu gastaria uns dez minutos no processo de formular mentalmente uma maneira de explicar o ocorrido em francês (após várias consultas ao dicionário que eu carregava o tempo todo) e fazer com que alguém me entendesse (pois a experiência me ensinou que aquilo que eu julgava ser uma explicação perfeitamente clara quase nunca o era de fato). Seria muito mais fácil e rápido simplesmente fazer o que fiz. Além disso, pagar mico num país estrangeiro cuja língua se ignora é algo tão frequente e inevitável que o constrangimento acaba por se desvanecer sem que cheguemos a nos dar conta, e somos acometidos por um sentimento que, se traduzido em palavras, seria algo assim: "Não sou daqui, não sei falar a língua dessas pessoas e não sei bem como me comportar neste ambiente. Não tenho obrigação alguma de evitar todos os micos. Fugir de tantos quanto puder é um desafio muito interessante e digno, mas não há grande problema nos fracassos. Ninguém é prejudicado por eles. Logo estarei bem longe daqui, e tudo isso que agora vivo será apenas uma lembrança engraçada. E é também exatamente isso que serei na memória desses que agora me vêem."

7 de julho de 2009

Confusão na vizinhança - parte 2

1. "Não podemos aceitar que ideais religiosos de qualquer vertente sejam apresentados a nossa comunidade como alternativa ao pensamento racional, crítico e científico."

O problema é que os signatários do manifesto demonstraram, em todo o texto precedente, uma ignorância abissal sobre as propostas do criacionismo em geral, e sobre o tema da palestra em particular. Meu amigo que esteve lá informou que o palestrante nada mais fez que apresentar argumentos científicos - com direito a deduções matemáticas do tipo que agrada a maioria dos físicos - em favor de seu ponto de vista, e nenhum dos presentes conseguiu refutá-lo. De onde, então, foi retirada a idéia de que alguém pretendia apresentar uma alternativa ao pensamento "racional, crítico e científico"? Aliás, o que é isso que os autores qualificam com tão sublimes adjetivos? Esse amontoado de bobagens desfilado ao longo de toda a carta? Por aí se nota que já não se fazem críticos racionalistas como antigamente. (Isso é só força de expressão, é claro, pois os de antigamente também não eram grande coisa.)

2. "Esse tipo de evento, que visa a promover uma ideologia religiosa disfarçada de ciência alcança a inconstitucionalidade, segundo a Constituição Federal do Brasil (CF/88 - Art. 19). O Brasil é um país laico, e assim, nenhuma crença ou religião pode exercer pressão ideológica junto aos cidadãos livres, nem imprimir sua presença em órgãos e espaços públicos (que é o caso da USP). Caso a supracitada palestra ocorra, o Instituto de Física de São Carlos (com a conivência da USP) estará infringindo a lei ao fazer uso de recursos públicos para a promoção e divulgação de um pensamento dogmático baseado na religião cristã – por meio do oxímoro 'Criacionismo Científico' – como suposta alternativa ao método científico universalmente aceito pela comunidade acadêmica mundial."

Em primeiro lugar, note-se a linguagem utilizada. Na opinião dos autores do texto, um físico que defende suas convicções sobre a origem do universo com os argumentos científicos que lhe parecem apropriados diante de uma platéia de estudantes e professores universitários que comparecem ao evento por livre decisão, e não por obrigação acadêmica ou outra de qualquer espécie, está exercendo "pressão ideológica junto aos cidadãos livres". Além disso, não importa o que ele faça - e a carta deixa claro que seus signatários não tinham idéia do que ele faria -, trata-se da proposição de uma "alternativa ao método científico universalmente aceito pela comunidade acadêmica mundial". Não passa jamais pela cabeça desses senhores que alguém possa usar o mesmo método para defender conclusões opostas às "universalmente" aceitas pela "comunidade acadêmica mundial". Aliás, não parece existir sequer a mais leve consciência de que discordar quanto aos resultados a que leva um dado método não é o mesmo que rejeitar o método. Tal percepção deveria ser fácil para pessoas envolvidas em atividades de pesquisa científica. Lamentavelmente, isso não ocorre no texto em questão.

Sobre a questão da suposta ilegalidade do evento, visto que o texto do Artigo 19 da Constituição Federal do Brasil não foi transcrito na carta, tive de ir buscá-lo em outro lugar. Em meio a outras coisas irrelevantes para o presente contexto, o Artigo 19 declara que é "vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios [...] estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público". Qual dessas ações descreve corretamente a palestra de Adauto Lourenço no IFSC? Não entendo grande coisa de assuntos jurídicos, mas, visto que os signatários da carta não deram sinais de entender mais que eu, exerço meu direito de falar na condição de mero cidadão brasileiro que sabe ler: não vejo relação alguma entre o conteúdo do artigo e o evento que causou toda essa polêmica. A Constituição fala apenas de "cultos religiosos ou igrejas" e proíbe - com restrições - que o governo estabeleça com essas instituições ou seus representantes "relações de dependência ou aliança". Portanto, quem quer que deseje usar esse artigo contra a palestra em questão deve demonstrar, antes de tudo, que o palestrante foi enviado como reepresentante de alguma igreja ou culto religioso. É desnecessário dizer que não há provas desse tipo na carta. Até que se demonstre o contrário, portanto, Adauto Lourenço veio a São Carlos para falar apenas em seu próprio nome, e não há nada - no Artigo 19 ou em qualquer outro - que proíba isso.

Cabe acrescentar um dado interessante: já ouvi falar de palestras ministradas em universidades defendendo a ufologia, o gnosticismo, a teosofia, o espiritismo, os cultos afro-brasileiros, a astrologia e o hinduísmo. Todos esses casos caracterizam-se como crenças religiosas ou pseudocientíficas. Entretanto, não me lembro de ter ouvido os defensores da tal "razão científica" fazendo tamanho barulho - ou mesmo o mais leve ruído - contra esses eventos. A menos que alguém possa me mostrar evidências da participação de nossos nove cruzados em batalhas desse tipo, eu gostaria de saber por qual motivo o cristianismo e o "criacionismo ou design inteligente" recebem um tratamento diferenciado. Por que se incomodar tanto com algo que é só mais uma crença religiosa e pseudocientífica?

3. "Além disso, é missão vital de uma democracia a proteção das minorias religiosas, que não devem sofrer discriminação ou desconforto pela promoção de alguma religião majoritária dentro de espaços públicos."

Esse argumento é particularmente notável. Depois de terem se referido repetidamente em termos pejorativos não só ao cristianismo e ao conceito de criação sobrenatural em particular, mas às religiões em geral, os autores subitamente se lembraram dos devotos destas últimas e, penalizados com seus pobres e frágeis sentimentos, decidiram que argumentar contra elas, mesmo cientificamente, é uma atitude discriminatória e inadmissível. Não estou exagerando ao dizer que a carta afronta todas as religiões. Todas elas são vilipendiadas na própria definição da "missão da universidade": "a busca do saber e a propagação do pensamento crítico e racional e não a divulgação de ideologias religiosas como contraponto ao pensamento científico e racional". Fica claro que, na opinião dos signatários, religião é uma "ideologia" (será que eles conhecem o significado do termo?) incompatível com a ciência e com a razão. Eles também se referem pejorativamente aos tempos pré-científicos "onde o homem atribuía fenômenos físicos naturais, como uma tempestade ou um eclipse, a um castigo divino e não a fenômenos físicos hoje elucidados", desprezando assim todos os cultos que vêem algum elemento sobrenatural ou significado religioso em eventos da natureza. (Note-se também a falta de cuidado com a língua portuguesa que acabou resultando na atribuição de fenômenos físicos a fenômenos físicos.) Finalmente, a carta afirma que "a defesa do ensino laico e do conhecimento científico é uma questão fundamental da sociedade moderna" - o que significa, como o restante do texto já deixou claro, que todo adepto de qualquer religião tem o dever de permanecer de boca fechada na presença desses senhores, de modo que eles possam propagar sem oposição as bobagens anti-religiosas contidas nessa carta, assim como outras que porventura lhes ocorram. É verdade que sua antipatia pelo cristianismo é particularmente intensa, mas isso não chega a ser suficiente para gerar simpatia por outras religiões, a não ser superficialmente, quando interessa levá-las em conta para calar um cristão. Não há aqui consideração alguma por religião alguma. Essa pretensa preocupação democrática é pura hipocrisia, e o devoto de outra religião que porventura caísse nessa conversa seria apenas um idiota útil.

4. "Para quem está absolutamente à margem do conhecimento científico, como estão os criacionistas, o prestígio de falar em universidades de renome tem sido utilizado como moeda de reconhecimento de mérito. Isto é absolutamente preocupante, uma vez que dá-se um verniz de respeitabilitade e faz crer que na universidade ainda se discutem idéias retrógradas que já foram rechaçadas há pelo menos 150 anos."

Esse trecho poderia levar algum leitor distraído a concluir que a ausência de mérito científico entre os opositores do evolucionismo é tamanha que pisar numa universidade é, para eles, ocasião raríssima e extraordinária, e que conseguir tal proeza é motivo de intensas comemorações. Adauto Lourenço provavelmente se gabará do fato junto aos amigos em todas as ocasiões possíveis pelos próximos cinco anos. Porém, o próprio texto da carta já havia mencionado um defensor do design inteligente que é professor universitário, e atesta também que o palestrante cuja voz eles tentam calar possui mestrado em física. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, na verdade, mas vou ficar só com o do já citado Marcos Eberlin, que é professor titular de química na Unicamp. Ele certamente não precisa de suas palestras sobre evolução em "universidades de renome" como fonte de prestígio ou como "moeda de reconhecimento de mérito", pela simples razão de que fala em uma universidade de renome quase diariamente, como é de se presumir. Será que adeptos do "criacionismo ou design inteligente" angariam renome para seus pontos de vista enquanto teorias científicas com maior eficácia fazendo palestras contra a evolução numa universidade de vez em quando ou sendo pesquisadores de mérito reconhecido nessa mesma universidade (sobretudo em áreas relevantes para o debate sobre evolução)? Nada disso dá sinais de ter passado pela cabeça dos signatários da carta, que estão, portanto, preocupadíssimos com algo de importância diminuta. Mas, se é lícito proibir uma palestra para não dar uma pequena publicidade ao inimigo, o que dizer dos fatos que proporcionam uma publicidade muito maior? Professores universitários que não aderem ao evolucionismo deveriam ser demitidos a fim de não gerar publicidade aos grupos errados? Se a resposta for afirmativa, trata-se de censura e perseguição, em nada - nem mesmo no uso da ciência como pretexto - diferentes das perseguições aos acadêmicos em diversos regimes totalitários ao longo do século XX. Se for negativa, trata-se de uma inconsistência pura e simples, mas nem por isso pequena ou desprezível.

Porém, as palavras finais do trecho acima transcrito lançam alguma luz adicional sobre a questão. Provavelmente os autores da carta não são favoráveis à demissão de professores antievolucionistas, desde que eles não fiquem espalhando suas heresias por aí. Afinal de contas, a maior preocupação desses senhores consiste no fato de que eventos em que se questiona a evolução "faz[em] crer que na universidade ainda se discutem idéias retrógradas que já foram rechaçadas há pelo menos 150 anos". Bem... que há discussão, há. O simples fato de um químico e um físico com formação acadêmica estarem dispostos a fazer palestras sobre isso em universidades públicas de qualidade indiscutível é uma prova desse fato, e provas adicionais poderiam ser reunidas com os livros e ensaios já publicados na literatura acadêmica - inclusive, mas não apenas, por cientistas que, sem questionar o dogma da evolução em si, fazem severas objeções a pontos importantes de teorias amplamente aceitas. Para muitos evolucionistas, contudo, o mais importante não é que não haja discussão, e sim que ninguém fique sabendo delas. Já imaginaram o que pensarão as pessoas comuns quando descobrirem que os cientistas e seu método não são detentores da infalibilidade que costumeiramente se lhes atribui, e que ainda são consideradas idéias retrógradas que bulas papais do século XIX já haviam declarado heréticas? Não dá! No fundo, esses que adoram posar de moderninhos são mesmo um bando de tradicionalistas.

29 de junho de 2009

Confusão na vizinhança - parte 1

Dado o contraste entre o elevado número de posts sobre minhas raras viagens e a baixa quantidade de textos sobre o que me ocorre enquanto estou em minha cidade, algum leitor poderia imaginar que nunca acontece nada de interessante em São Carlos. Mas isso seria uma injustiça: acontecem, sim, coisas interessantes aqui, principalmente enquanto viajo. Graças à minha ida à França perdi não só a defesa de mestrado de um colega de laboratório, como também - o que é ainda pior - o churrasco comemorativo. Além disso, em virtude dessa viagem perdi um evento que para mim é muito mais importante: o físico Adauto Lourenço defendendo o criacionismo numa palestra realizada em pleno campus da Universidade de São Paulo. O título da palestra foi O universo – teorias sobre a origem - criacionismo científico. Meu amigo Fernando me avisou por e-mail no dia de minha chegada à França, mas só pude ler o aviso mais tarde, no dia do acontecimento propriamente dito. Eu não teria podido ir, de qualquer forma, mas ele foi e me contou, quando retornei ao Brasil, que circulou por lá um manifesto contra o evento: na opinião dos assinantes, a presença do palestrante violou os princípios do laicismo.

O Fernando me contou ainda que muita gente compareceu e tomou parte na discussão, tentando por todos os meios demonstrar que a argumentação do palestrante era furada. Mas sem sucesso: o sujeito deu respostas satisfatórias a todas as objeções. E isso não me surpreende nem um pouquinho. Mas para mim o assunto se encerrou por aí, com um lamento por eu ter perdido tão magnífico espetáculo. Recentemente, porém, estive lendo o blog de um outro amigo, o Fortes, e encontrei transcrito ali o tal manifesto, redigido por nove pessoas, incluindo dois professores e seis alunos de pós-graduação dos departamentos de biologia da Universidade Federal de São Carlos. A carta foi dirigida aos professores Glaucius Oliva, diretor do Instituto de Física de São Carlos, e Richard Garratt, chefe do Departamento de Física e Informática, órgãos diretamente envolvidos na promoção do evento. Mesmo tendo-se passado já oito meses, não pude deixar de ficar algo impressionado com o que li, de modo que decidi fazer alguns comentários a respeito. Esses comentários aparecerão neste post e no próximo.

O texto começa citando com aprovação o fato de que o pró-reitor de pós-graduação e pesquisa da UFSCar havia cancelado, três semanas antes, uma palestra que seria dada pelo professor Marcos Eberlin, da Universidade Estadual de Campinas, em defesa do design inteligente, que os signatários qualificam como "um dogma religioso". Menciona também que a mesma palestra havia sido cancelada na própria Unicamp pelo coordenador da sexagésima reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Menciona ainda que em 2007 houve uma série de palestras na UFSCar nas quais se discutia o tema "evolução ou criação", e que tal iniciativa foi condenada pelo MEC. Em alusão à palestra no IFSC, os signatários da carta lamentam que tal reprimenda "parece não ter surtido o efeito esperado para todas as universidades públicas". O tom, até aqui, é claramente de intimidação, e mais adiante se converte em ameaça explícita, quando é dito aos destinatários que "sentir-nos-emos na obrigação de relatar o uso indevido de recursos públicos junto a autoridades competentes". Mas os remetentes têm a bondade de oferecer-lhes uma saída honrosa ao declarar: "estamos certos que esta palestra esteja ocorrendo à vossa revelia e que os senhores farão o necessário para que vosso nome não fique indelevelmente associado a palestras como esta". Agora examinemos as razões que levam os nove indivíduos a um desespero tal que torna justificável, na opinião deles, vociferar ameaças encobertas sob um manto de polidez formal. (Advirto que eventuais erros de português ou frases mal construídas nas citações seguintes não são de minha responsabilidade.)

Segundo o texto, "o Criacionismo ou 'Design Inteligente' é uma doutrina mascarada cujos defensores dão uma roupagem supostamente científica a essas crenças para propagá-las dentro de universidades e escolas". Essa definição apenas ignora um ponto fundamental da questão ao deixar de reconhecer, para início de conversa, que criacionismo e design inteligente são coisas diferentes, tanto na opinião dos próprios adeptos de uma ou outra vertente quanto na de todos os críticos sérios de ambas. (Não vou tentar explicar essa diferença simplesmente porque já fiz isso aqui.) Os críticos mais superficiais do design inteligente costumam acusá-lo de ser um criacionismo camuflado com fins estratégicos, isto é, a fim de parecer "ciência pura", isenta de pressupostos teológicos. A carta ora sob análise ignora tudo isso, e simplesmente apresenta os termos "criacionismo" e "design inteligente" como sinônimos, como se a idéia de usar esses nomes para distinguir dois movimentos distintos não houvesse jamais passado pela cabeça de quem quer que seja, mesmo que apenas a título de desconversa. E essa informação, garantem os autores, é fornecida "para esclarecimento".

Eles continuam "esclarecendo" aos destinatários que o híbrido por eles inventado - isto é, o tal "criacionismo ou design inteligente" - "pretende concluir a existência de deus e da criação a partir da impossibilidade da ciência atual de explicar todos os fenômenos naturais e distorce descaradamente conhecimentos há muito consolidados". O design inteligente, na verdade, sequer tem a pretensão de demonstrar a existência de Deus - nem mesmo de um deus com inicial minúscula, como o ostentado no texto em questão -, o que por si só já demonstra o poço de ignorância com que estamos lidando. Já no caso do criacionismo há pelo menos isto de verdadeiro: seus defensores de fato pretendem demonstrar cientificamente a existência de Deus e da criação, embora não necessariamente com o tipo de argumento mencionado na carta, a "impossibilidade da ciência atual de explicar todos os fenômenos naturais". Note-se, aliás, que a palavra atual está aí justamente para proclamar a fé dos autores na existência de uma explicação futura para aquelas questões fundamentais que permanecem sem respostas válidas após dois séculos de pesquisas. Boa parte do rancor alimentado contra os criacionistas pelos partidários do evolucionismo está justamente no fato de que aqueles se recusam a aderir a esse dogma. E aqui não uso essas palavras - e dogma - em seu sentido cristão original, autêntico e saudável, e sim no sentido pejorativo que elas costumeiramente possuem nas bocas e nos textos de pessoas como essas que redigiram a carta. Devo assinalar ainda que não há, ao longo de todo o documento, justificativa alguma para a afirmação de que o tal "criacionismo ou design inteligente" "distorce descaradamente conhecimentos há muito consolidados". Acusar de distorção os criacionistas e defensores do design inteligente é procedimento já antigo e bem estabelecido pela tradição darwiniana, e universalmente adotado por todos os devotos que diariamente sacrificam nos altares da razão e da ciência. Mas isso não justifica que se omitam as provas; se não da distorção, ao menos do descaramento. Sem isso, tais acusações são pura e simples difamação.

O "esclarecimento" continua no parágrafo seguinte: "O 'Design Inteligente', ou 'Criacionismo Científico', é reconhecidamente uma forma de criacionismo cristão." (De novo o uso de uma expressão pela outra, que comentei dois parágrafos atrás.) Pergunte-se o leitor: reconhecidamente? Quem foi que reconheceu isso? No caso, o advérbio não se refere aos adeptos do próprio movimento, como se poderia esperar num primeiro momento, e sim aos juízes que, em várias instâncias, proibiram o ensino do criacionismo científico e do design inteligente nas escolas públicas americanas, bem como aos indivíduos que protestaram contra o diretor de educação da Royal Society inglesa - que, segundo nos contam os autores da carta, foi demitido por supostamente ter defendido a inclusão do criacionismo no currículo escolar. A fim de não me desviar demais do assunto, não me estenderei sobre os pormenores dessas histórias todas, que têm sido mal contadas por toda a grande imprensa, aqui e no exterior. Mas fico deveras impressionado quando um grupo de cientistas (e aspirantes a cientistas, no caso) sente necessidade de buscar em decisões judiciais uma confirmação de suas opiniões sobre o que é e o que não é ciência. Já é ridículo o suficiente quando se faz isso recorrendo à autoridade de uma tal "comunidade científica", isto é, da opinião predominante entre os cientistas, como se não houvesse centenas ou milhares de cientistas defendendo o criacionismo (como Adauto Lourenço) e o design inteligente (como Marcos Eberlin) e como se, aliás, questões em ciência pudessem ser decididas por votação. Nossos signatários, entretanto, vão mais longe, indo buscar a opinião de pessoas que sequer praticam ciência, e desconsiderando a priori a hipótese de que fatores alheios às questões de filosofia da ciência possam ter influenciado decisivamente o resultado dos processos judiciais em questão, como aqueles que Phillip Johnson tem denunciado em seus livros e artigos. Mas Johnson é advogado, o que - como nos dizia Stephen Jay Gould - o torna automaticamente inapto para opinar sobre ciência; só tem importância a opinião do juiz John Jones, manifesta na decisão do caso Dover, e é a autoridade desse juiz que estabelece o melhor argumento apresentado na carta contra o caráter científico do tal "criacionismo ou design inteligente".

Além do mais, que história é essa de "criacionismo cristão"? Este mundo está cheio de criacionistas judeus e muçulmanos que defendem com argumentos científicos suas respectivas crenças sobre a origem das coisas exatamente da mesma forma que os cristãos, que apenas aparecem mais aqui no Ocidente por serem mais numerosos. E se o criacionismo não é cristão por excelência, o o design inteligente o é menos ainda: sei da existência de pelo menos dois cientistas adeptos desse ponto de vista que são agnósticos, além de um que é ateu. Duvido que algum deles esteja convencido de que aderiu a "uma forma de criacionismo cristão". Portanto, os autores da carta colocam em prática aqui a mesma desconsideração pelas minorias religiosas que condenam em outra parte do mesmo texto, conforme comentarei adiante. Antes devo analisar outros argumentos ali expostos. Não há, na verdade, novas objeções ao caráter científico do "criacionismo ou design inteligente", pois os autores aparentemente julgaram que as decisões judiciais e administrativas acima mencionadas são mais que suficientes para impugná-lo, a ponto de dispensar, inclusive, argumentos científicos e filosóficos. Mas são levantados argumentos adicionais contra a apresentação da palestra sobre criacionismo no IFSC, os quais vale a pena examinar brevemente, o que farei no próximo post.

Para encerrar este aqui, um esclarecimento precisa ser feito a fim de que eu não cometa uma injustiça contra meu amigo Fortes, que aparentemente endossou boa parte do conteúdo da carta. Embora a tenha publicado, ele acrescentou o seguinte comentário: "Talvez ao invés de boicotar fosse mais interessante que os que escreveram a carta estivessem presentes na palestra para gerar um debate". E esse é, na verdade, o único plano de ação que poderia passar pela cabeça de pessoas decentes e sensatas. Não sei se os signatários da carta estiveram presentes na palestra e, caso tenham estado, não sei se contribuíram para a promoção de um debate saudável. Mas o resultado típico de eventos como esse - e que, segundo me foi dito, repetiu-se nesse caso - ilustra a razão pela qual pessoas assim morrem de medo de debater. Os bons resultados obtidos pelos criacionistas em quase todos os debates públicos realizados nas universidades americanas, frustrando aqueles que esperavam poder demonstrar a imbecilidade de suas propostas, serviu de alerta para os que não suportam ver suas "verdades" desafiadas.

18 de maio de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 5

Na postagem de hoje contarei algo sobre minhas andanças, que não foram poucas. Fui de trem até Paris, onde passei meu último fim de semana na França, e esse evento merece um post apenas para si. Andei de barco em duas oportunidades, sendo que a primeira foi no dia seguinte ao de minha chegada, até a ilha de Porquerolles, perto da cidade vizinha Hyères; trata-se de uma ilha turística, mas fui até lá a trabalho, com o pessoal do laboratório, para coletar amostras de solo e fazer algumas outras coisinhas. A segunda foi num passeio à pequena cidade de Saint-Mandrier, do outro lado da Baía de Toulon. Andei de carro oito vezes, com destaque para a viagem - também a trabalho, para encontrar o professor Michel - até Saint-Raphael, a nordeste de Toulon, onde a água do mar é barrenta. (Mas o professor Stéphane me garantiu que isso era apenas um efeito temporário das chuvas constantes dos dias anteriores.) Ali participei de um almoço inesquecível num belo restaurante à beira da praia; inesquecível por duas razões: diverti-me muito com a seção de piadas contadas pelas pessoas que estavam comigo, embora eu tenha achado a situação tão cômica justamente por não ser capaz de entender nenhuma delas; e, além disso, porque paguei uns doze euros na pior pizza que já comi. Andei ainda uma vez de teleférico, e dezenas de vezes de ônibus, pois este era meu meio de transporte usual para a universidade e de volta para casa. Em todas as demais oportunidades andei a pé mesmo, e hoje pretendo contar algo sobre meu primeiro passeio longo feito dessa forma. Ele ilustra bem os elementos mais importantes de meus passeios a pé, o que me dispensará de narrar todos.

Na sexta-feira, meu quarto dia na França, tive o prazer de reencontrar a Marie, que estivera no Brasil no começo do ano e trabalhara três meses em nosso laboratório. Desde então ela concluiu o mestrado e arrumou emprego em Lyon, bem mais ao norte, mas estava em Toulon naqueles dias para rever os amigos, e aproveitou para me ver também. Decidimos nos encontrar para tomar um lanche e conversar melhor no sábado às quatro da tarde, em frente ao laboratório. O problema é que eu estava hospedado em outra cidade - lembremo-nos de que o campus fica, na verdade, em La Garde - e não sabia o caminho, pois ainda não havia andado de ônibus. (Nos três dias anteriores eu havia ido e voltado de carro com o professor Yves, que morava ali perto, e meu senso de direção não funciona muito bem quando estou entro de um veículo, e menos ainda num veículo que roda pelas ruas tortuosas da França.) Além do mais, eu não queria andar de ônibus; afinal, não é assim que se explora um novo mundo. O jeito, então, era ir a pé. Eu havia sido informado pelo professor Yves de que o trajeto de casa até a universidade levaria cerca de uma hora e meia, para alguém que andasse rápido. Calculei, então, que um turista estrangeiro que não estivesse com pressa, não conhecesse o caminho e não pudesse pedir informações a ninguém, tendo como únicas referências os mapinhas disponíveis nos pontos de ônibus (o que com certeza o levaria a se perder duas ou três vezes), provavelmente gastaria o dobro desse tempo para chegar ao destino. Portanto, saí de casa cheio de ânimo às treze horas, no início de uma bela e ensolarada tarde.

Visto no mapa, o caminho parecia quase retilíneo, uma vez atingida uma avenida que passava perto de casa. Ao chegar lá, porém, vi que não era uma avenida, e sim uma rodovia que não oferecia passagem para pedestres. (Creio já ter mencionado que os pedestres não parecem ser uma das preocupações primárias dos engenheiros de trânsito franceses.) Tive de pegar um caminho mais longo por uma outra avenida - esta, sim, uma avenida de verdade - para depois tomar outra, e logo após mais outra. Eu caminhava devagar, observando atentamente não só os mapas dos pontos de ônibus, mas também as belas paisagens oferecidas pelas ruas comuns do sul da França. Agindo assim, venci sem dificuldades, embora com lentidão, cerca de três quartos do caminho. Então entrei numa rua errada e, ao me dar conta disso, cerca de quinhentos metros e três curvas depois, tentei retornar e me perdi mais ainda. Cheguei enfim a uma rua que julguei ser a que procurava e entrei por ela, passando à beira de uma pequena praça onde uma senhora estava calmamente sentada. Cinqüenta metros depois descobri que aquela rua era sem saída, de modo que só me restava fazer meia-volta. Passei outra vez pela pracinha e, sabendo que a universidade não poderia estar longe, decidi tentar obter daquela senhora alguma indicação de como chegar até lá.

A mulher era baixa, magra e frágil, e me olhava fixamente com uma expressão que transmitia simpatia e curiosidade. Quando viu que eu ia em sua direção, começou a falar sem parar, estando eu ainda a uns dez metros de distância. Não compreendi tudo o que ela disse, mas o essencial era algo assim: "Você está perdido, não é? Eu sei, porque vi você passar pra lá, e agora pra cá, olhando para todos os lados." Sorri, cumprimentei-a, adverti-a sobre meu péssimo francês e disse o que estava procurando. Ela prontamente apontou numa certa direção e recomendou que eu fosse por ali e depois virasse à direita. Não consegui compreender em que ponto da rua eu deveria fazer a curva, e não havia meios de obter essa informação. Agradeci, portanto, e saí andando na direção indicada, pensando em repetir a pergunta a outra pessoa mais adiante. Andei, assim, uns quinhentos metros e parei numa esquina, ponderando se já teria chegado o momento de virar à direita. Segundos depois, alguém me cutucou. Era a mesma senhora, que havia me seguido porque se esquecera de me dizer que havia dois portões de acesso à universidade, e precisava saber se eu entraria pelo portão do norte ou pelo do sul. Visto que eu ignorava a resposta, pois sequer sabia da existência de mais de um portão, ela explicou prolongadamente os dois caminhos. Dessa explicação, como não poderia deixar de ser, eu entendi pouquíssimo. Mas, a julgar pelos gestos e pelas poucas palavras compreensíveis, tive a impressão de que um deles era mais curto e mais fácil, de modo que optei por ele. Assim, ajudado por aquela senhora falante e prestativa, cheguei à universidade poucos minutos mais tarde e, depois de me perder e pedir informações mais duas vezes dentro do próprio campus (pois aquele portão não era o mesmo que eu conhecia), cheguei, enfim, ao prédio do laboratório, às quatro horas em ponto. Marie e seu simpático cãozinho, que atende pelo nome de Gribouille, chegaram minutos mais tarde e, depois de agradáveis momentos nos quais narrei minhas aventuras e fui chamado de maluco por ter andado três horas seguidas (se isso já seria algo extraordinário no Brasil, imagine na França), voltei para casa de ônibus, depois que minha colega se informou sobre qual linha eu deveria tomar e onde deveria descer. (Lá cada ponto de ônibus tem um nome, de modo que não é muito difícil descer no lugar certo, mesmo sem referências exatas.)

Não conto esse episódio por ter ele algo especial, e sim, ao contrário, por ser absolutamente típico. Andar sem saber direito por onde ir, pedir informações na certeza de não entender mais de 20% da resposta, para então andar mais algumas dezenas de metros na direção indicada e parar outra vez para repetir a mesma pergunta a um outro transeunte, estudar com atenção os mapas em cada ponto de ônibus, desviar-se lamentavelmente da rota pretendida - todos esses eventos tornaram-se logo demasiado banais, embora, com o tempo, eu tenha me tornado cada vez mais habilidoso na arte de andar pelas ruas francesas, e também melhorado um pouco na tarefa, muito mais árdua, de entender o que me diziam. (Em meus últimos dias consegui proezas como comprar selos para cartões postais sem saber qual era a palavra francesa para "selo" e sem ter nenhum deles à vista). Isso basta para dar uma amostra de meus passeios cotidianos naquela região. Se houve algo extraordinário naquele dia, foi apenas a surpreendente descoberta de que três horas de caminhada sob o sol da Europa não bastam para me deixar suado, o que geralmente acontece depois que ando apenas meia hora em São Carlos. Aquele sol é fraco o suficiente para sequer incomodar, sem, no entanto, deixar de ser brilhante. Isso talvez explique em parte a reputação que os europeus possuem como inimigos do banho. Não é uma fama de todo justa, devo esclarecer; estou certo de que não poucos dos franceses que conheci tomam banho todos os dias. Mas talvez possa ser dito em favor dos que não o fazem que não é tão fácil feder naquele país. O que, entretanto, não impede que alguns consigam.