5 de novembro de 2009

Reflexões nagelianas

Em contraste com este blog, em que costumam aparecer textos longos, detalhados e algo sisudos, no blog de meu amigo Gustavo Nagel predominam os pensamentos curtos, aforísticos e bem-humorados. Faz tempo que tenho vontade de me aventurar um pouco nesse ramo, apenas para fugir momentaneamente da rotina. Inspirado pelo exemplo de meu amigo, comecei, portanto, a escrever algumas coisas que me passavam pela cabeça, e agora as publico, devidamente divididas por temas. Nem todas são aforísticas ou bem-humoradas, mas ao menos são curtas.

Ciência

Quando dizemos que a ciência moderna só pôde surgir graças à cosmovisão teísta e cristã, alguns materialistas pensam que com isso estamos tentando justificar e preservar o cristianismo. Porém, o que estamos tentando fazer é justificar e preservar a ciência.

Um dos efeitos mais palpáveis de meu envolvimento pessoal em atividades de pesquisa científica foi a perda da confiança, compartilhada por tanta gente hoje em dia, na autoridade da ciência e dos cientistas.

César Lattes, o maior físico que o Brasil já teve, o que por duas vezes chegou perto de ganhar o Nobel, nunca fez pós-graduação e achava que tal empreendimento era perda de tempo. Deve ter sido, pois, a título de insulto, e não de homenagem, que deram seu nome à plataforma nacional de currículos acadêmicos.

Saber das coisas é ótimo, mas o ato de aprender é demasiado árduo e desagradável. Felizmente temos no MEC pessoas que sabem disso e fazem de tudo para nos proteger de semelhante experiência.

Irreligião

Em entrevista à Veja, o matemático anticristão John Allen Paulos afirmou que o fato de grandes matemáticos terem sido cristãos nada diz em favor da religião. O Gustavo replicou (num dos posts excluídos junto com seu antigo blog, creio eu) que "prova apenas que só um atrasado mental para opor uma coisa à outra". Eu concordo, mas vou além. Quem foi que disse que a religião precisa do aval da matemática? Na verdade, tal fato nada prova em favor da religião; mas talvez prove alguma coisa em favor da matemática.

Muita tinta é gasta pelos céticos quando eles tentam esclarecer para si mesmos as razões pelas quais seus argumentos antirreligiosos, que a eles próprios parecem irresistivelmente convincentes, não surtem o efeito desejado na conversão dos crentes ao seu "descredo". Quase todas as teorias propostas começam tecendo considerações sobre a falta de humildade das pessoas que invariavelmente aderem a sistemas de crenças que concedem importância cósmica às suas existências. E quase todas terminam com louvores indisfarçados aos que têm coragem de abrir mão de tais pretensões. Eis o ponto mais próximo a que esses senhores são capazes de chegar da verdadeira humildade.

Por mais que os ateus militantes gostem de fazer fama como mártires da razão perseguidos pelas forças tenebrosas do obscurantismo, não sou nem um pouco favorável a qualquer esforço de calá-los. Não só por causa da tal liberdade de expressão, mas também por uma questão estratégica. Um exemplo concreto deixará claro o que quero dizer: sou favorável à prisão de Dawkins, mas não para que ele se cale. Ele deveria ser enjaulado e levado numa viagem por todo o mundo, tendo a oportunidade de pregar contra a religião em cada pequeno povoado, com direito a tradução simultânea. Com base em minha própria experiência, creio que bem poucos gostariam de renegar a fé ou permanecer na descrença uma vez que vissem diante de si o próprio resultado encarnado dessas atitudes.

Não é verdade que não respeito escritores não-cristãos. Em média, respeito-os tanto mais quanto menos escrevam sobre o cristianismo.

Percepções gerais sobre a vida

Fazer fofoca nada mais é que confessar os pecados dos outros.

O problema da filosofia, da literatura, da música e do cristianismo é um e o mesmo: seus elementos menos dignos recebem muito mais publicidade que os melhores. Karl Marx, Paulo Coelho, Engenheiros do Hawaii e Bento XVI se equivalem perfeitamente na medida em que prestam aos seus respectivos campos de atuação o mesmo péssimo serviço.

Eu tinha cerca de cinco anos quando ouvi falar pela primeira vez na doutrina bíblica da eleição incondicional. Explicaram-me (não com essas palavras, creio) que Deus escolhera de antemão aqueles que seriam salvos e preordenara todos os eventos que levariam a isso, com base em critérios em nada relacionados aos méritos dos seres humanos. Ao ouvir a explicação, entendi imediatamente a razão pela qual a eleição era incondicional, mas não entendi por qual motivo um termo eleitoral deveria ser aplicado a esse caso. Na tentativa de compreender isso, logo imaginei as três pessoas da santíssima Trindade reunidas em torno de uma mesa, antes da fundação do mundo, examinando uma extensa lista de nomes e literalmente votando pela salvação ou não de cada um. "E se não houver votos brancos e nulos", pensei com satisfação, "não poderá haver empate".

O Chantilly, um dos gatos da minha namorada, adora perseguir sombras e tentar mordê-las. Quando tentamos brincar com ele agitando as mãos ou algum objeto, ele frequentemente ignora tudo isso e concentra sua atenção na sombra correspondente, que se agita no chão ou na parede. É o oposto exato da alegoria da caverna: um felino perfeitamente antiplatônico.

Poucas experiências nos alertam de maneira tão eficaz sobre a fragilidade humana quanto o ato de engasgar com a própria respiração.

Catolicismo

No centro de minha cidade há um prédio que já deve ter abrigado alguma instituição católica, a qual posteriormente cedeu lugar a um hotel. Está ainda pregado na porta um cartaz dos velhos tempos, ao qual os novos proprietários simplesmente juntaram um segundo. No primeiro se vê uma gravura da Virgem Maria com os dizeres: "O caminho da fé". E o segundo acrescenta: "Pague com Visa Electron".

Ao ver seu vizinho católico ajoelhando-se diante de uma estátua, o protestante comum, apegado à simplicidade de sua fé, percebe imediatamente que catolicismo é idolatria - algo de que nós, protestantes metidos a intelectuais, às vezes chegamos a desconfiar depois de ler uns oitenta livros.

O Gustavo acha, conforme declarou aqui, que "o maior argumento contra o protestantismo talvez seja o fato de a Igreja ter subsistido 1500 anos sem ele". Eu concordo plenamente. Mas, ao passo que ele considera essa uma excelente razão para deixar de ser protestante, eu considero que a falta de argumentos melhores é um ótimo motivo para continuar a sê-lo.

Esquerdices

É curioso como aquelas mesmas pessoas que desprezam revistas como Veja, Época ou IstoÉ por seu sensacionalismo, suas fofocas ou seu direitismo tomam-nas como autoridade final e inerrante quando algo é publicado ali sobre o criacionismo, o aborto, o movimento gay, o cristianismo ou a Bíblia.

Em termos econômicos, o problema do socialismo é que, revoltados com a discrepância entre a condição de vida dos ricos e a dos pobres, seus defensores acabam apoiando planos de sociedade que levam todo mundo à miséria. Estatisticamente, o problema é que ele toma como provado o estranho teorema de que a diminuição do desvio padrão leva automaticamente à elevação da média.

Pessoas que, como Einstein, pensam que um governo mundial seria a única solução contra a opressão de algumas nações por outras parecem jamais pensar em se precaver contra a possibilidade de o próprio governo mundial oprimi-las todas.

Em sua ânsia tipicamente esquerdista de se opor a todas as "opressivas" regras, uma ardorosa militante feminista americana passou a escrever seu nome sem iniciais maiúsculas. A fim de transgredir a gramática, portanto, ela assina seus trabalhos como "bell hooks". Nada poderia ser mais apropriado para uma ideologia que despreza a personalidade e coisifica as pessoas. Diz o velho clichê que a sociedade sempre tratou a mulher como um objeto. Pois na nova sociedade as próprias mulheres tratarão a si mesmas, não como um objeto, e sim como vários deles. E agirão assim segundo o exemplo dessa que trata a si própria como um sino e um punhado de ganchos.

Filósofos

Leon Trotsky é até hoje venerado por boa parte dos socialistas que conheço não só por seus dotes intelectuais, mas também por ter se oposto a Stálin e morrido com uma picaretada na cabeça. Quanto a mim, embora condene a iniciativa de seu velho inimigo, não posso solidarizar-me com os que consideram sua partida deste mundo uma grande perda. Até onde posso ver, não havia na cabeça dele nada que fizesse valer a pena o esforço de abri-la de maneira tão violenta.

Tenho a impressão de que a filosofia de Nietzsche não é muito mais que uma racionalização literariamente talentosíssima das sensações viscerais despertadas no autor de maneira imediata por um contato apenas superficial com os objetos de sua análise. Ao contrário do que se costuma esperar de um filósofo, o órgão mais diretamente envolvido em sua atividade intelectual não é o cérebro, e sim o estômago. Não há sentido, portanto, em atribuir a Nietzsche o epíteto de "grande filósofo" com base nos textos que escreveu, a menos que se atribua o mesmo título a Pelé, em reconhecimento aos dribles e gols que fez.

Voltaire não era um filósofo, e não era sequer um intelectual no sentido legítimo dessa palavra. Era apenas um comediante; ou, se preferirem, um palhaço, no sentido não-pejorativo do termo. Mas, ao levar a sério demais suas próprias piadas, tornou-se um palhaço no sentido pejorativo.

Pretendo escrever, algum dia, um conto que narre o duelo verbal de dois reducionistas irredutíveis: de um lado, um revolucionário marxista que considera todos os desejos humanos como resultados dialeticamente determinados pela luta de classes; do outro, um psicanalista freudiano convicto de que o ímpeto de transformar o mundo é mero subproduto de desejos sexuais inconscientes e reprimidos.

4 comentários:

Norma disse...

Amo muito tudo isso. :-)

Fernando Pasquini disse...

Muito bom mesmo! Gostei muito do post, me lembrou bastante as frases do Chesterton; curtas, diretas, e as vezes cômicas!

Realmente, o que há para fazer com esses ateus militantes é deixar que eles falem tudo o que querem mesmo. Até hoje, nenhum questionamento que tive quanto à fé cristã veio de um argumento de um ateu; os questionamentos vieram de mim mesmo, de confusões e falta de conhecimento minhas. E claro, também é muito fácil e praticamente instintivo diferenciar um argumento sólido de um protótipo de argumento de um ateu, que é como o pessoal diz por aí, um famoso "migué". =P

Roberto Vargas Jr. disse...

Olá, meu caro André!
Vou deixar uma postagem a menos na fila! rs
Gostei muito. Principalmente do gato antiplatônico (embora eu goste mesmo é de cães) e do pretenso intelectual em suas dúvidas!
Grande abraço, no Senhor,
Roberto

DG Jem disse...

ótima postagem andré.

Gostaria apenas que deixasse um pouco mais claro a questão referente à predestinação que você citou.
Sei que é um assunto polêmico.

Sem contar que a parte cômica, mas que não deixa de ser verdade e que me fez rir, foi essa:

protestantes metidos a intelectuais, às vezes chegamos a desconfiar depois de ler uns oitenta livros.

André poderia ser explicito?
Mais ainda, por favor, hehehe

se quiser mande para o meu e-mail, ou responda aqui mesmo.

valeu caríssimo, ótimo mesmo.