30 de novembro de 2012

A filosofia das contradições

Há cerca de quatro meses, um irmão em Cristo e grande amigo meu me fez por e-mail uma pergunta de ordem apologética. Disse ele:

"Gostaria de te perguntar uma coisa que pode esclarecer uma dúvida minha. Se não esclarecer, pelo menos jogar alguma luz sobre a questão. Como sei que você é um leitor voraz da Bíblia e de literatura cristã, além de no passado ter debatido com alguns ateus, imagino que você já tenha se perguntado ou sido questionado a respeito do seguinte. Mateus e Lucas fazem descrições distintas do nascimento e dos primeiros anos da vida de Jesus. Até aí, problema nenhum; mas eu encontrei uma diferença que me chamou à atenção: Lucas relata que José e Maria moravam em Nazaré e foram para Belém apenas para se recensear, enquanto que Mateus nos dá a entender que eles não moravam em Nazaré e só foram para lá porque o filho de Herodes (o grande), Arquelau, governava a Judeia.

Você já viu alguma explicação ou comentário sobre isso ? Eu pesquisei algumas coisas na net, mas nada que me convencesse. Primeiro tinha o pessoal da Superinteressante usando esse episódio e outros para pichar a bíblia, sempre dando aquele viés implícito do que o que está relatado ali não é confiável. Depois achei uns tais Jovens Redentoristas (acho que são cristãos católicos) dizendo que a intenção dos evangelistas, no relato do nascimento e primeiros anos de Jesus, é usar um estilo literário (do qual não me lembro o nome) que visa identificar o Senhor com outros grandes homens de Deus (no caso, Mateus estaria fazendo um paralelo entre Jesus e Moisés, devido à referência ao Egito e ao fato de Jesus ter sobrevivido ao assassinato dos infantes). Internamente, a explicação até parece fazer algum sentido, mas tenho dificuldades em conciliar essa ideia com o que Lucas diz que vai fazer na introdução do seu evangelho."


O que farei a seguir é transcrever, com algumas alterações editoriais, a resposta que dei ao meu amigo. Faço isso por estar sem tempo para escrever coisas novas, e também porque me parece que a pergunta dá ensejo a considerações interessantes cujo alcance é bem mais amplo que a discussão desse caso específico, permitindo que eu exponha a visão que considero mais sadia acerca das aparentes contradições internas nos relatos históricos das Escrituras. Não obstante, é claro que as considerações abaixo não têm qualquer intenção de esgotar o tema.

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Eu de fato já havia notado essas diferenças, e não falta quem desqualifique, total ou parcialmente, a historicidade dos evangelhos por causa de coisas desse tipo. Um exemplo é John Paul Meier, sobre cujo livro comentei aqui, para quem esse e outros problemas impossibilitam a obtenção de qualquer informação confiável sobre a infância de Jesus.

Podemos resumir o problema da seguinte forma: se tivéssemos à disposição apenas Mateus, provavelmente entenderíamos que José e Maria eram de Belém, que fugiram para o Egito logo após o nascimento de Jesus e que, ao retornar (sabe-se lá depois de quanto tempo), se mudaram para Nazaré por medo de Arquelau. Por outro lado, se tivéssemos à disposição apenas Lucas, concluiríamos que José e Maria eram de Nazaré, foram para Belém apenas para o recenseamento, depois estiveram em Jerusalém por um curto período e voltaram para casa, em Nazaré. Mateus não traz o episódio do recenseamento e, portanto, não diz que o casal era oriundo de Nazaré; ele tampouco menciona a passagem por Jerusalém. Lucas, por outro lado, não menciona a fuga para o Egito, nem diz que José e Maria consideraram, por algum momento, a ideia de morar em Belém. Tomados isoladamente, portanto, os dois evangelhos sugerem sequências de eventos razoavelmente diferentes. Resta saber se é possível conciliá-los.

Na verdade porém, acredito que o problema é mais filosófico. Antes de acusar o texto bíblico (ou qualquer outro documento histórico) de contradição, é necessário verificar a própria natureza de um documento histórico. Isso é especialmente importante para nós, que somos da área de exatas e estamos mais acostumados a pensar em termos de "igual" e "diferente", matematicamente falando. A realidade histórica é mais complexa, como a própria vida. Nos parágrafos seguintes, mediante três breves exemplos, buscarei mostrar como contradições aparentes podem não sê-lo de fato.
 
1. Para começar, cito um exemplo da própria Bíblia. Mateus 27.5 nos informa que Judas Iscariotes se enforcou, mas Atos 1.18 nos diz que ele foi partido ao meio. Até onde vai meu conhecimento, realmente não podemos saber como foi a morte de Judas nesse nível de detalhamento, porque só temos esses dois versículos sobre o assunto. Podemos imaginar várias soluções possíveis: a) Mateus diz que ele "foi enforcar-se", não que chegou a fazê-lo; então talvez o método de suicídio escolhido, no fim das contas, tenha sido outro; ou b) talvez Judas tenha sido partido ao meio só depois da morte, ao ter seu cadáver jogado em um precipício; ou c) talvez ele tenha montado a forca à beira de um precipício, e a estrutura toda cedeu, derrubando-o lá embaixo.

Não é meu objetivo descartar nem promover alguma dessas soluções, nem qualquer outra concebível. O que pretendo é apenas extrair duas lições desse exemplo. A primeira é que a questão sobre se há ou não uma contradição não se resolve simplesmente pela razão "analítica", pois os documentos históricos não trazem (e não têm a obrigação de trazer) todas as informações que gostaríamos que contivessem, de modo que as lacunas precisam ser preenchidas pela imaginação. O que não podemos fazer, naturalmente, é confundir nossa imaginação com o conteúdo do próprio registro histórico, deixando de reconhecer as incertezas inerentes a ele.

A segunda lição é que, ao afirmar que uma contradição é insolúvel, estamos dizendo apenas que não há nenhuma solução imaginável. Naturalmente, a falta de imaginação do acusador pode ser um fator que o impede de ver uma solução existente. E, no caso de eventos ocorridos em contextos muito distantes do ponto de vista cultural, histórico e geográfico, o próprio distanciamento do historiador pode impedi-lo de ver o que era muito claro para quem vivia no mesmo contexto do narrador. Isso se relaciona fortemente com a falta de humildade frequentemente detectada em "estudiosos" que, como Voltaire, se comprazem em identificar contradições pretensamente insolúveis em textos como os da Bíblia, e o fazem porque estão sempre muito mais propensos a desconfiar da honestidade dos outros que de sua própria capacidade intelectual. Aliás, também não é à toa que muitas das mais estapafúrdias acusações de contradição vêm de indivíduos racionalistas que, além de raciocinar mal, têm atrofiada a faculdade imaginativa.
 
2. O segundo exemplo que dou é extrabíblico, mas também histórico. Existem dois relatos sobre o julgamento de Sócrates, o de Platão e o de Xenofonte, ambos os quais foram discípulos diretos do réu e, ao que parece, testemunhas oculares do evento. Apesar disso, existe uma contradição aparente em certo ponto. Quando Sócrates foi condenado, segundo a lei de Atenas, ele tinha o direito de propor uma pena para si próprio, uma espécie de fiança. Xenofonte diz que ele se recusou a fazê-lo, porque isso iria contra sua consciência de não ter cometido crime algum. Mas Platão nos diz que ele primeiro alegou ser muito pobre, por isso só podia oferecer uma quantia irrisória. Porém, seus discípulos fizeram uma "vaquinha" e o convenceram a oferecer uma soma maior, paga por eles, e foi o que ele fez.

Apesar das aparências, não creio que haja uma contradição real aqui. Ao contrário, vejo na atitude de Sócrates, tal como narrada por Platão, certa dose de ironia. Na primeira parte, é como se ele dissesse: "Vocês querem uma fiança? Bom, eu posso dar... vejamos..." Enfia a mão nos bolsos e tira um punhado de moedas. É óbvio que ele sabia que isso não seria aceito, e talvez até irritasse os juízes. No segundo momento, ele faz questão de deixar claro que o dinheiro e a insistência são dos discípulos, de onde se deduz que, por ele, aquilo tudo era desnecessário. Se fosse escapar da morte, não seria com seu próprio dinheiro. Acredito que Xenofonte, em tudo bem mais sintético que Platão ao relatar o julgamento, simplesmente captou o espírito da reação de Sócrates, sem se apegar aos detalhes do que foi dito ou não.

Isso nos leva ao fato de que o historiador, ao relatar o que quer que seja, necessariamente faz uma seleção dos fatos a apresentar e do nível de detalhamento com que os apresenta, pelo simples motivo de que não é possível registrar absolutamente todos os fatos com grau máximo de detalhe. E, nessa empreitada, ele é guiado não só por sua própria capacidade de conhecimento dos fatos e honestidade ao retratá-los, mas também pelos objetivos que tem em vista ao escrever o relato. Ele pode omitir ou simplificar algumas partes que, de outro ponto de vista, poderiam ser consideradas muito importantes, sem que isso necessariamente constitua mentira, desonestidade ou incompetência - e sem que seu relato deixe de ser verdadeiro.
 
3. O terceiro exemplo é não-histórico; na verdade, fictício, mas que reproduz situações que podem muito bem ocorrer na vida real. Espero que esse exemplo sirva para mostrar a conexão entre os problemas da investigação histórica enquanto ciência e a vida, em sua complexidade e pessoalidade, dos personagens históricos que são alvo dessa investigação.

Suponhamos que eu vá ao shopping sozinho durante um dia comum no meio da semana. E que depois eu vá ao trabalho e conte sobre isso a um colega: "Hoje almocei no shopping e fui comprar um novo mousepad, porque o meu aqui está muito ruim. Sabe quem estava lá? O filho do chefe. Mas não pude conversar muito com ele porque estava com pressa de voltar logo ao trabalho". E suponhamos ainda que, chegando em casa, eu conte também à Norma, minha esposa, sobre a ida ao shopping, nos termos seguintes: "Fui até lá para comprar a lâmpada para substituir a da cozinha, que queimou. A loja não estava aceitando cartões, então tive de ir ao caixa eletrônico, onde enfrentei uma fila gigantesca. No caminho de volta à loja, encontrei o pastor e a mulher dele. Conversamos um pouco, depois vim embora".

Se tanto a Norma quanto meu colega de trabalho resolvessem escrever relatando nossa conversa, e um historiador racionalista tivesse acesso a esses relatos daqui a alguns séculos, concluiria que eu menti para um dos dois, ou para ambos. E, caso ele aplicasse a mim os mesmos critérios que alguns ateus de Superinteressante aplicam a Jesus Cristo, o historiador poderia até concluir que nunca existi. Sua conclusão estaria amplamente justificada por uma enorme quantidade de "contradições": os relatos não concordam quanto ao que fui fazer no shopping, nem quanto a quem encontrei lá; um diz que almocei lá, e o outro não; um menciona minha ida ao caixa eletrônico, e o outro não; e assim por diante.

No entanto, tudo se esclarece quando são ponderados os motivos que me levaram a fazer dois relatos diferentes. A Norma não conhece o filho do gerente, de modo que eu podia não ter razões específicas para mencionar sua presença no shopping. Da mesma forma, o colega de trabalho não conhece o pastor, nem teria interesse em saber de tal encontro. Eu posso ter ido até lá motivado principalmente pela lâmpada, e aproveitei para comprar o mousepad; ou vice-versa. E mencionar que almocei no shopping pode ter sido relevante para o meu colega, pois assim ele ficaria sabendo por que saí do trabalho um pouco mais cedo na parte da manhã; mas poderia não ter relevância alguma para a Norma, pois eu habitualmente não almoço em casa. E assim por diante. O historiador do futuro estaria completamente equivocado por deixar de perceber o fato óbvio de que esse tipo de seleção é algo que fazemos o tempo todo ao contar coisas às pessoas, ainda que não seja nossa intenção esconder nada de ninguém.

Além disso, convém notar também que alguém que quisesse reconstituir os detalhes de minha ida ao shopping não poderia fazê-lo por pura falta de dados, sobretudo se não tivesse a opção de me perguntar a respeito. Por exemplo: o episódio da loja de lâmpadas e da ida ao caixa eletrônico se deu antes ou depois do almoço? Antes ou depois da ida à loja de informática? Antes ou depois do encontro com o filho do chefe? Encontrei-o no trajeto entre as lojas, na praça de alimentação, na fila do caixa eletrônico ou no banheiro? Fiz no shopping outras coisas além das que mencionei em uma das duas conversas? Com base apenas nos dois breves relatos, que não tinham a menor intenção de ser exaustivos, apesar de verídicos, essas perguntas são todas irrespondíveis.

Acredito que, depois de explorados esses três exemplos, a conexão deles com o caso dos evangelhos se torna um tanto óbvia. Mateus e Lucas pretenderam dizer (e disseram) a verdade, mas não de modo exaustivo, e sim seletivo, enfatizando cada um aquilo que lhe pareceu relevante do ponto de vista dos objetivos de seus escritos e do público imediato a que se destinavam. Esses objetivos incluem as ênfases teológicas, mas não se limitam a elas. Essa inevitável seleção leva naturalmente à omissão de outros fatos que, embora verdadeiros, atrapalhariam o curso escolhido para a narrativa. De modo análogo, se eu escrever uma biografia do Pelé com ênfase em sua vida profissional, certamente desconsiderarei fatos que seriam relevantes para um biógrafo que tratasse primariamente de sua vida particular.

No caso da vida de Cristo, a coisa se torna um pouco mais complicada pelo fato de que os evangelistas, embora descrevessem de modo fidedigno os eventos, não escreveram biografias no sentido moderno. Prova disso é que Marcos e João não trataram de nada anterior ao início do ministério público de Jesus, e nenhum dos quatro tratou de coisa alguma que tenha ocorrido dos doze aos trinta anos de sua vida. O mesmo pode ser dito de fatos e situações que foram mencionados por alguns e omitidos por outros. Tais omissões seriam imperdoáveis em um biógrafo moderno, mas foram feitas porque os evangelistas entenderam que não era necessário relatar determinadas coisas para transmitir sobre Jesus Cristo aquilo que o mundo precisava saber, e continua precisando até hoje.