21 de janeiro de 2009

Areias invasoras

Neste texto discorrerei sobre um tema que está na minha mente há algum tempo. Ainda antes de ir à França, em outubro, eu havia concluído a leitura de um livro digno de nota, sobre um tema que julgo muito interessante. Trata-se do primeiro volume da série Um judeu marginal: repensando o Jesus histórico, cuja conclusão, a menos que eu esteja mal informado, não foi publicada até o momento. Fazia já um tempo que eu vinha pretendendo ler essa obra, tanto por sua reputação quanto pela de seu autor, o historiador americano John Paul Meier. Esse tomo inicial, intitulado As raízes do problema e da pessoa, me foi gentilmente emprestado pelo meu amigo Robson, e sua leitura me foi muito proveitosa. Farei aqui, de maneira um tanto informal e despretensiosa (inclusive por ter devolvido o exemplar há mais de três meses), alguns breves comentários a respeito desse livro e de certas percepções que resultaram de meu contato com ele.

Como profissional acadêmico, Meier nada deixa a desejar: é um escritor habilidoso e ocasionalmente engraçado, comunica suas idéias e argumentos com clareza e é homem de grande erudição. Por mais críticas que se lhe façam, como eu mesmo farei daqui a pouco, não é alguém cuja inteligência e conhecimentos devam ser tratados com desprezo. Eu apreciaria ter esse livro em casa para consulta, e suas análises enriqueceram meu conhecimento com muitos detalhes pertinentes. Ele trata com o merecido desdém obras popularescas que tentam negar a existência de Cristo - como os livros de George A. Wells ou o documentário Zeitgeist - ao não dedicar a esse tipo de bobagem mais do que uma contundente nota de rodapé. Há uma série de assuntos interessantes discutidos na obra, entre os quais as menções a Jesus na literatura rabínica, a doutrina da virgindade (perpétua ou não) de Maria, os diversos aspectos do contexto social e cultural da Palestina do século I e muitos pormenores filológicos envolvidos na compreensão das passagens dos evangelhos. Meier tem ainda o mérito de evitar especulações fúteis que vão muito além do que seus dados e critérios permitem concluir. E faz muito bem em combater certos excessos que têm sido cometidos por historiadores de orientação liberal em seu desprezo à historicidade dos evangelhos bíblicos. Creio que a leitura desse livro poderia ter um efeito muito benéfico para pessoas não cristãs mal informadas, embora inteligentes, que se habituaram a Frank Zindler e outras figuras sempre presentes nos sites de apologética ateísta, ou mesmo às ridículas reportagens sobre o assunto que costumam ser veiculadas pela grande mídia.

Os pontos altos do livro, para mim, foram dois: a defesa da autenticidade das duas referências feitas a Jesus no Antiguidades judaicas, de Flávio Josefo - o núcleo do Testimonium Flavianum e a menção à morte de Tiago, o irmão do Senhor - e a crítica à tendência hoje seguida por alguns acadêmicos (e todos os jornalistas), em especial John Dominic Crossan e seus comparsas do Jesus Seminar, de dar ao Evangelho de Tomé importância comparável àquela concedida aos canônicos. (De modo geral, aliás, Meier é muito consistente e persuasivo ao defender que a procura por informações históricas adicionais sobre Jesus, isto é, fora dos evangelhos, é pura perda de tempo.) Desses dois assuntos, que eu julgava conhecer o suficiente, o autor faz análises não apenas exaustivas, mas brilhantes, inigualadas por quaisquer outras de que eu já tenha ouvido falar. (Embora eu reconheça sem dificuldade alguma que esse comentário, vindo de alguém como eu, não chega a ser objetivamente um grande elogio.)

Vejo também, entretanto, muito espaço para críticas, tanto a pontos específicos quanto à estrutura global e às próprias motivações da obra. O autor não deixa de cair na cilada do ceticismo excessivo em certos pontos, como ao negar a realidade histórica das narrativas sobre a infância de Cristo ou ao defender que o relato da concepção virginal de Jesus Cristo é fruto de uma tradição posterior, que não poderia de modo algum ter origem na própria mãe do Salvador. Aliás, o trecho do livro que defende esse postulado é um dos bem poucos nos quais a argumentação do autor parece-me inteiramente ridícula, mesmo segundo seus próprios pressupostos. (Admito, entretanto, que isso não significa que eu tenha uma resposta imbatível para cada detalhe no qual a posição de Meier conflita com a minha, de maneira geral. Significa apenas que vi pontos questionáveis, e alguns de defesa impossível, em número suficiente para concluir que seu ceticismo tende, às vezes, a ir além do que considero ser o limiar da sensatez.) Meier de fato não crê na virgindade de Maria e não a considera importante. Quanto a isso, e a várias outras coisas, seu espírito é mais ou menos o mesmo de Rudolf Bultmann, que julgava ser irrelevante para a fé cristã a própria realidade histórica da ressurreição de Cristo (contrariando frontalmente o ensino de Paulo em 1 Coríntios 15.14). A fim de que a comparação não pareça exagerada, devo dizer que, embora o autor de fato não seja tão liberal quanto poderia ser no que diz respeito às suas conclusões específicas sobre a historicidade das narrativas dos evangelhos, nem por isso é menos liberal em sua mentalidade. Uma evidência disso, em conexão com a questão que acabo de mencionar, pode ser encontrada na sua decisão de não se pronunciar sobre a realidade da ressurreição corpórea de Cristo, por achar que esse tema se encontra fora do alcance da investigação histórica. Dessa forma, ele recusa-se a priori a examinar os méritos relativos das diversas teorias sobre a origem das narrativas da ressurreição, perdendo a excelente oportunidade de descobrir se alguma delas tem mais fundamento histórico que as demais.

Aliás, embora atribuindo-lhe um sentido algo diverso, Meier endossa explicitamente a afirmação de Bultmann de que o Jesus histórico não é o Cristo da fé. Apesar disso, ele compõe sua obra com o propósito declarado de contribuir para uma elaboração moderna e mais apropriada da cristologia. Não parece lhe passar jamais pela cabeça que essas duas pretensões se excluem mutuamente. Em sua tentativa de sustentar ambas as idéias ao mesmo tempo, Meier apenas revela aquele desprezo muito comum pela compreensão tradicional e bíblica da fé cristã. Isso fica muito nítido numa nota em que ele desqualifica a posição de um outro estudioso - Edwin Yamauchi, se não me engano - alegando apenas que tal posição tende a favorecer um programa teológico conservador. Ora, Meier quer nos convencer - e enfatiza isso diversas vezes ao longo do livro - de que, se desconsidera certas condições impostas pela teologia, é apenas pela necessidade de manter, tanto quanto possível, a imparcialidade que se espera num historiador que cumpre diligentemente seu trabalho. Não pretendo afirmar que, ao proceder dessa forma, o autor esteja sendo hipócrita ou enganando os leitores. Mas algumas de suas declarações devem nos alertar acerca da possibilidade de ele não ser tão imparcial quanto supõe. Pois se a teologia não deve ser levada em conta, estudioso algum deve ter suas posições desqualificadas com base numa consideração sobre o tipo de teologia que favorecem.

Nesse sentido, ao pretender uma imparcialidade histórica calcada num desprezo quase explícito pela teologia tradicional e na busca de uma cristologia apropriada aos tempos modernos (eufemismo que significa "uma cristologia que se acomode aos dogmas filosóficos da modernidade"), Meier torna-se um exemplo ilustrativo daquele fenômeno ao qual se referiu Francis Schaeffer quando afirmou que "a alta crítica não sobreveio porque certos fatos a fizeram necessária, mas porque a filosofia humanista sobreveio primeiro". Além disso, ele serve também como exemplo da moderna tendência liberal do catolicismo. (Sim, pois Meier é católico romano, e a mera existência de pessoas como ele - e são muitas - já deveria servir de alerta contra o julgamento ingênuo de que o poder centralizador da Igreja Católica constitui salvaguarda eficaz contra a diversidade que o protestantismo, com sua inerente fragmentação institucional, não é capaz de conter.) O próprio Meier faz questão de lembrar-nos dessa tendência o tempo todo, citando todos os documentos oficiais da Igreja que possam respaldar seus posicionamentos. E nisso também sua predisposição é bastante evidente: ele dificilmente sente necessidade de justificar-se quando nega a historicidade de algo que é relatado nos Evangelhos ou aponta contradições nos textos bíblicos. Quando aceita algo que está escrito, contudo, ele gosta de mostrar que está sendo imparcial, que poderia, se preferisse, rejeitar esse algo sem qualquer problema. Não há dúvida de que o propósito de Meier com tais atitudes é conquistar a simpatia dos leitores afeitos à "intelectualidade" secular (estejam eles dentro ou fora das igrejas cristãs) e posar de racional, de iluminado, de moderninho. Mas há, naturalmente, um preço a ser pago: para quem, como eu, encontra-se em franca oposição a isso tudo, sua parcialidade é muito evidente, ainda que não o seja para ele próprio.

A fim de não nos restringirmos a esse papo, que alguns talvez considerem demasiado abstrato, convém que façamos a seguinte indagação: de que maneira isso tudo interfere na meta principal do livro, que é a de chegar a um retrato consistente do Jesus histórico? Sem tentar uma análise exaustiva dessa questão, ofereço um exemplo que, num sentido muito objetivo, considero bastante comprometedor e, subjetivamente, foi para mim a maior decepção proporcionada pelo livro. O problema não está em nada do que o autor disse, e sim no que deixou de dizer. Uma de minhas principais motivações para ler o livro foi a ânsia de entender melhor os debates sobre a data e a autoria dos evangelhos, bem como sobre o processo de formação dos textos (falei algo sobre esse ponto aqui). Ou seja, a questão é: quando, por quem e a partir de quê foi composto cada um dos evangelhos? Sobre as fontes e datas, Meier limita-se a declarar sua opinião e indicar publicações que a corroboram (o que é até compreensível, pois ele defende uma posição razoavelmente bem aceita, embora de modo algum unânime). No entanto, não há uma só palavra sobre a autoria. O que não significa, é claro, que Meier não tenha uma posição a respeito. Significa apenas que ele toma sua opinião como verdade e a utiliza ao longo de toda a obra sem qualquer fundamentação, discussão ou confronto com hipóteses diferentes. Na verdade, o leitor de Meier jamais saberá da existência delas se o tiver como única fonte de informação. E sua opinião diz que os evangelhos são baseados em fontes escritas e tradições orais fragmentárias, tardiamente compiladas e adaptadas por pessoas que nenhum contato tiveram com os eventos ou suas testemunhas. Essa é a hipótese de trabalho a partir da qual o autor julga a historicidade dos evangelhos, passagem por passagem, eliminando o material espúrio e purificando o restante de contaminações redacionais.

É fácil notar que tal procedimento não se justifica de modo algum se a hipótese for falsa. Se, por exemplo, o apóstolo João tiver sido de fato o autor (ou o redator-chefe) do evangelho que leva seu nome, como a tradição dos primeiros séculos unanimemente afirma, qual é o sentido em discutir seu texto como se fosse apenas uma colagem de fragmentos? Ou em que bases podemos negar a validade dessa tradição, se ela conta inclusive com o testemunho de Irineu de Lyon, cujo mestre, Policarpo, foi discípulo direto do próprio João? Se o Evangelho segundo Mateus foi composto pelo publicano que seguiu Jesus e tornou-se um dos Doze, como se sustentará a tese de que ele não poderia ter ouvido o relato da concepção virginal de Cristo da própria Maria? Levando em conta todos os aspectos dessa discussão, eu me sinto mais inclinado a respeitar e admirar um sujeito como Josh McDowell, que não é historiador, teólogo ou erudito de espécie alguma, e sim apenas um apologeta cristão que estudou o assunto por considerá-lo pessoalmente relevante. Suas análises da evidência histórica são menos profundas, e ele incorre às vezes em simplificações e falácias por falta de rigor metodológico ou por um fervor apologético algo excessivo. Mas McDowell também não é nenhum ignorante do assunto, e a estrutura global de sua argumentação é muito mais coerente que a do renomado historiador.

Qual seria a melhor maneira de interpretar o silêncio de Meier sobre questões tão fundamentais? Será que ele considera esses argumentos (e muitos outros, dos quais citei apenas uns exemplos) ridículos a ponto de não merecerem sequer menção? Talvez. Será que ele julgou desnecessário argumentar a respeito porque apenas os conservadores pensam de maneira diferente? É possível. Permanece, porém, o fato de que seus oponentes apresentaram argumentos, e ele não apresentou nenhum em resposta. Sendo assim, que direito teria o autor de reclamar se um leitor concluísse que ele ignorou pontos absolutamente fundamentais? Afinal, qualquer comentário bíblico começa pela contextualização histórica, pela discussão da data e local da composição, seu autor e as fontes utilizadas. Como exigir menos que isso de um livro que pretende ser uma investigação histórica rigorosa, e não um "mero" comentário exegético? Por todas essas razões, o que me parece é justamente isso: Meier ignorou questões elementares, e tal negligência compromete a validade de todo o seu método e, por conseguinte, de muitas de suas conclusões sobre a historicidade dos textos. É como uma casa construída sobre a areia, como diria seu objeto de investigação.

14 de janeiro de 2009

Aventuras no berço do Ocidente - parte 3

No post anterior desta série sobre minha viagem à França relatei alguns fatos constatados em minhas andanças por Toulon e seus arredores. Agora vou escrever sobre outras coisas, enfatizando menos o ambiente e mais as pessoas, pelo menos num primeiro momento. Antes de falar dos franceses, contudo, abordarei os elementos estrangeiros (como eu mesmo) ali presentes. Dois desses elementos me surpreenderam por sua abundância. O primeiro, mais visível na universidade, compõe-se dos estudantes chineses. Dentro do campus, bem como nos pontos de ônibus das redondezas, ouvi conversas em mandarim quase tão freqüentemente quanto no próprio idioma local. Até no laboratório onde trabalhei havia uma estudante chinesa, tão simpática, aliás, quanto seu namorado (ou marido) francês. (O pessoal do laboratório é muito gentil e atencioso, de maneira geral.) O segundo elemento, mais presente no centro da cidade, é a população islâmica, facilmente distinguível pelos cabelos totalmente cobertos das mulheres. (Havia também uma representante dessa classe no meu local de trabalho.) É evidente que muitos são imigrantes, provavelmente oriundos das antigas colônias francesas da África setentrional. Mas uma boa parcela é claramente francesa, e sua presença em quantidades nada desprezíveis é o sintoma mais evidente que pude constatar do processo de islamização atualmente em curso na Europa, um fenômeno que, como tantos dos eventos mais importantes da atualidade, parece quase ignorado por nossa imprensa.

Aproveito para relatar que não apenas é fácil distinguir um europeu de um africano de origem árabe, mas também, depois que a gente se acostuma a ver rostos franceses o tempo todo, é até relativamente fácil distingui-los de outros europeus como, por exemplo, os marinheiros holandeses que encontrei no porto. Os próprios franceses, entretanto, não parecem ter a mesma facilidade com essas distinções: bem poucos percebiam que eu era estrangeiro, e muitos que vieram me atender, conversar comigo ou me pedir informações ficaram notavelmente espantados ao ouvir uma balbuciante tentativa de resposta (nas raras vezes em que eu compreendia o que me fora dito) ou um simples "pardon, je ne parle pas français". E os que percebiam que eu não era francês tendiam a inferir, por alguma misteriosa razão, que eu era inglês. Foi esse o caso do homem muito gentil a quem fui perguntar onde era o porto e que acabou me dando carona até lá, por ter ficado penalizado ao me imaginar percorrendo a pé o trajeto de dois quilômetros (um indício adicional de que os franceses de fato costumam andar muito pouco). Foi também o caso de um outro homem, tão atencioso quanto o primeiro, que me ajudou a encontrar um estabelecimento comercial que vendesse cartões telefônicos às onze da noite - uma proeza de fato quase impossível numa cidade onde até os ônibus são muito raros depois das oito. A tradicional rivalidade entre a França e a Inglaterra - rivalidade que remonta, segundo dizem, à Guerra dos Cem Anos - apenas torna mais notável a prontidão de cada um desses homens em me prestar ajuda mesmo antes de descobrir que eu era brasileiro.

Esses episódios inserem-se em aventuras mais longas que eu certamente narrarei em outra ocasião, de modo que não convém me estender sobre eles agora. Mas devo mencionar ainda, em conexão com esses comentários sobre a presença estrangeira no sul da França, que é mais fácil encontrar nas ruas um francês que fala espanhol do que um falante do inglês. E, embora eu não saiba dizer quanto ao primeiro desses idiomas, do qual conheço pouco demais, posso garantir que o inglês das pessoas que não trabalham na universidade é, em geral, muito ruim, tendendo ao incompreensível. (Algumas vezes eu de fato cheguei a me arrepender por ter aceitado a generosa oferta dos meus interlocutores que, vendo minha dificuldade com sua língua mãe, decidiram conceder a possibilidade de uma comunicação na língua inglesa. A essa altura, entretanto, era tarde demais para que eu dissesse "no, no, speak French, please!" sem parecer mal educado.) E, já que estamos falando em incompreensão, creio que o momento é oportuno para mencionar ainda o provençal, idioma específico daquela região, que hoje é falado por poucos e que guarda fortes similaridades com o italiano. Dizem, aliás, que com o português também. Mas quando, durante um almoço na casa do professor Stéphane, ouvi um CD de música provençal, não entendi uma palavra sequer; eu me saí até pior na compreensão desse dialeto do que com as músicas francófonas.

Toda essa questão de línguas estrangeiras rendeu também algumas das minhas experiências mais inusitadas. Durante meu primeiro passeio pelo centro de Toulon, enquanto eu fotografava o belo edifício que abriga o teatro municipal, fui interrompido por um homem que me dirigiu a palavra - em francês, naturalmente. Comuniquei-lhe minha ignorância do idioma, e ele logo repetiu em um inglês muito compreensível o que acabara de dizer: queria cinqüenta centavos para comer alguma coisa. Dei-lhe o dinheiro, ele agradeceu e se foi. Uma cena muito natural, talvez, mas enquanto eu tateava o bolso à procura de moedas não me saía da mente o seguinte pensamento: "Puxa vida! Um mendigo poliglota! Que país estranho!" Depois, pensando melhor, percebi ele não devia ser um mendigo. Não estava mal vestido, embora trajasse roupas simples, e visivelmente não era de ascendência européia. Era provavelmente um imigrante desempregado, talvez em situação ilegal. Não sei. Seja como for, o fato é que nada disso me ocorreu naquele momento, e é por isso mesmo que a situação pareceu-me deveras irreal e engraçada.

Mas logo descobri, com espanto ainda maior, que esse meu pensamento, embora talvez mal aplicado àquela circunstância específica, não deixou de captar algo verdadeiro sobre a realidade da França: o pedido de esmolas seguinte, que recebi duas semanas depois, foi feito por um mendigo autêntico e que parecia francês de verdade. E, no entanto, ao saber que eu era estrangeiro deu-me a opção de ouvir o pedido em inglês ou em espanhol. Além desses dois casos, houve apenas mais uma situação em que um homem me pediu dinheiro: um bêbado que, tarde da noite, queria uns trocados para comprar um cigarro. Não sei se era mendigo. Seja como for, desconfio que, objetivamente falando, os desabrigados da França meridional vivem uma vida até confortável, se comparada à dos andarilhos brasileiros. O melhor exemplo disso é um rapaz que costuma pedir esmolas em frente à loja do McDonald's, a menos de um quarteirão da praça central da cidade. Não pode haver dúvida de que ele é de fato um habitante das ruas, pois o vi dormindo ali mesmo na calçada todas as vezes em que passei pelo local num horário bastante avançado. Ao que parece, ele passa os dias sem tédio, pois, enquanto aguarda sossegadamente as moedas que são jogadas pelos transeuntes, vai ouvindo músicas com seus fones de ouvido. O sul da França é habitado por mendigos tão chiques que chegou a me passar pela cabeça a idéia de pedir-lhes recibo a cada esmola concedida.

Ao longo de meus trinta dias em Toulon e cidades vizinhas vi cerca de cinco mendigos (nem todos comprovados) e, conforme acabo de dizer, fui interpelado três vezes por algum possível representante dessa classe; índices muito baixos, levando-se em conta a quantidade de lugares que visitei e o tempo que gastei andando por aquelas bandas. A prosperidade material da França é visível também nisso, assim como em muitas outras coisas. É raro que alguém ganhe mais de quatro salários mínimos, mas o salário mínimo vale mil euros. E as habitações mais pobres da cidade, o equivalente francês das favelas (segundo ouvi de franceses que já moraram no Brasil), pareceram-me semelhantes a um prédio de apartamentos pequenos: sem luxo ou grande beleza, mas também sem goteiras, esgoto a céu aberto ou traficantes.

Falando em traficantes, lembro-me do que foi uma das experiências mais memoráveis de toda a viagem: a sensação de tranquilidade no que diz respeito à segurança pessoal. Toulon é uma cidade onde se podem deixar destrancadas as portas dos carros, e na qual é possível andar por todos os lugares, a qualquer momento, sem o mais ínfimo medo de assaltos ou outras formas de violência. Eis uma sensação que eu jamais havia sentido ao andar à noite por uma rua deserta no Brasil, nem mesmo no mais pacato recanto do interior paulista em que já estive. Mesmo que essa sensação de segurança tenha sido ilusória - e tudo leva a crer que não era -, ela permanecerá para sempre como uma das lembranças mais caras da minha estadia naquela terra. Sob esse aspecto, ao menos, a memória de Toulon remete a algo como um vislumbre do Paraíso. Talvez essa comparação pareça exagerada ao leitor; e é bom que soe dessa forma, pois ela é exatamente isso. Mas não se trata uma hipérbole sem propósito, já que comunica algo sobre a natureza da sensação. Eu mesmo me surpreendi com a intensidade do bem-estar proporcionado por essa segurança. Porém, estando ali e desfrutando daquele sentimento agradabilíssimo, não pude deixar de me lembrar do povo brasileiro, que geme sob uma criminalidade cada vez mais sufocante e alimentada pela negligência e pelo apoio efetivo dos governantes. Não, é claro, que essas realidades não fossem do meu conhecimento há um certo tempo. Mas foi apenas em minhas caminhadas noturnas por aquela terra à beira do Mediterrâneo que pude compreender o real valor dessa bênção da qual nós, brasileiros, temos sido privados.