17 de março de 2007

Os três primeiros pilares

"Pois assim como há quatro quadrantes no mundo em que vivemos, e quatro ventos universais, e como está a Igreja disseminada sobre a terra inteira, e o Evangelho é o pilar e fundamento da Igreja e o sopro da vida, assim é natural que tivesse quatro pilares, infundindo imortalidade de cada quadrante e comunicando nova vida às humanas criaturas." (Irineu de Lyon)

Mencionei num texto anterior que Albert Einstein tinha uma convicção inabalável na existência histórica de Jesus, o qual era visto por ele como o maior mestre de moral que já existiu. E mencionei também que o grande físico sustentava essa opinião com base nos ensinos de Jesus registrados na Bíblia, muito embora duvidasse da historicidade de grande parte dos eventos ali narrados. Por razões óbvias, essa questão da credibilidade das fontes é sempre crucial para a investigação histórica. No que se refere a Jesus, as principais fontes de que dispomos são os quatro livros da Bíblia comumente chamados de "evangelhos", e distinguidos entre si pelos nomes dos homens que a tradição cristã admite, desde os primórdios e de maneira unânime, como seus principais autores: Mateus, Marcos, Lucas e João.

Independentemente de qual seja o valor histórico desses documentos, não há dúvida de que ninguém que tenha alguma vez pensado acerca de Jesus pôde ignorá-los. E Jesus é uma figura de importância fundamental na história da nossa cultura e civilização. Não pretendo discutir hoje opiniões a respeito de sua identidade, sejam as de um amador eminente como Einstein ou as de um amador nada eminente como eu. Apenas discorrerei sobre os documentos em si, e mesmo assim de uma perspectiva muito limitada: pretendo esboçar algumas teorias que foram levantadas na tentativa de desvendar a história da formação dos evangelhos a partir da análise comparativa entre eles.

Pra começar, convém assinalar alguns fatos importantes. Quem quer que já tenha lido esses quatro textos, mesmo que uma vez só, apressadamente e aos dez anos de idade, certamente não pôde deixar de notar que o quarto evangelho difere de todos os outros três muito mais do que quaisquer dois deles diferem entre si. Os três primeiros são, por causa dessa semelhança que os une, denominados "sinóticos", e é deles que falarei mais detidamente agora.

Os sinóticos têm uma porção de diferenças importantes entre si, mas suas semelhanças são de fato surpreendentes. Não poucas passagens são iguais quase palavra por palavra. Comparando minuciosamente os textos gregos originais (segundo as melhores versões proporcionadas pela crítica textual), especialmente os trechos que aparecem em dois ou nos três evangelhos, os especialistas no assunto perceberam outro fato interessante. As semelhanças entre Mateus e Lucas são consideravelmente menos freqüentes que as de qualquer um dos dois com Marcos. Isso é verdade em vários sentidos, como quanto à proporção de passagens análogas ou à semelhança das construções de frases nessas passagens. Cabe observar ainda que Marcos é o mais curto dos quatro evangelhos, embora suas descrições que encontram paralelos nos outros sejam, individualmente, menos resumidas que nestes. Além disso, o enfoque de Marcos é predominantemente narrativo. Há bem poucos trechos discursivos ou dissertativos. Ele quase sempre se limita a registrar as andanças e os milagres: poucas palavras e muitos atos. Isso não acontece em Mateus e Lucas, e muito menos em João.

Esses são alguns dos fatos mais básicos a respeito do tema. As teorias que tentam explicar esses fatos, assim como muitos outros, são muito variadas, e há uma infinidade de questões envolvidas, muitas das quais são altamente técnicas. Eu não poderia ter a pretensão de pintar aqui um quadro tão abrangente, mesmo que eu dominasse suficientemente o assunto. Mas passo a descrever em linhas gerais os principais caminhos propostos na tentativa de elucidar o algo obscuro desenrolar da composição desses documentos que acabaram por transformar o mundo.

Muitos eruditos do Novo Testamento acreditam que a melhor explicação para esse conjunto de elementos é que Marcos é o mais antigo dos evangelhos, e os outros dois autores sinóticos utilizaram-no posteriormente como fonte para escrever suas próprias obras. Essa teoria tem sido muito popular pelo menos desde 1835, graças ao trabalho de Carl Lachmann. João pertenceria a uma tradição inteiramente independente, ou quase, que só viria a se tornar em livro algum tempo depois. Mateus e Lucas seriam, no fim das contas, pouco mais que expansões de Marcos, adaptando o conteúdo desse evangelho aos seus próprios propósitos imediatos e acrescentando-lhe informações provenientes de outras fontes.

E que outras fontes seriam essas? A mais famosa e controvertida candidata seria um certo documento que Julius Wellhausen chamou de Q (do alemão quelle, que significa "fonte"), ao mesmo tempo em que, numa curiosa coincidência acadêmica, J. A. Robinson lhe deu o mesmo nome por razões inteiramente diversas. Esse seria um documento complementar ao estilo de Marcos, registrando quase exclusivamente os sermões e parábolas de Jesus e dando pouco espaço a questões mais biográficas. Q seria, então, uma composição no estilo de alguns dos livros proféticos do Antigo Testamento, e há de fato boas evidências de que teria sido escrito originalmente em hebraico ou aramaico. Não há, na verdade, provas concretas de que esse documento tenha sequer existido, mas algumas referências indiretas ao menos sugerem essa possibilidade. Lucas afirma que seu evangelho é o resultado de intensas pesquisas sobre o assunto, o que possivelmente incluiu o acesso a documentos mais antigos. E Papias, um cristão do início do século II muito interessado nessas questões, e que conheceu e entrevistou pessoas que haviam convivido diretamente com os apóstolos, afirmou que Mateus compusera um texto em hebraico antes de existir a versão em grego. Alguns acreditam que esse pode ser o tão falado Q. Mas a principal razão pela qual o hipotético Q é tão aceito reside em suas conveniências teóricas: ele ajuda a explicar semelhanças entre Mateus e Lucas em passagens que não possuem paralelo em Marcos, bem como outras características daqueles que não podem ser explicadas recorrendo a este.

Marcos e Q, porém, não podem ser considerados as únicas fontes para Mateus e Lucas. Sendo assim, é provável que, em última instância, todos esses textos sejam na verdade reuniões organizadas de fragmentos ainda mais antigos. Os eruditos da crítica de forma (uma escola de interpretação do Novo Testamento altamente influente na história dos estudos do século XX), entre os quais Martin Dibelius e Rudolf Bultmann, chamavam esses fragmentos de "perícopes", que seriam episódios curtos e independentes envolvendo Jesus: uma parábola, um trecho de sermão, uma conversa com alguém ou uma narrativa de algum milagre. As perícopes teriam circulado amplamente e em grande quantidade na igreja primitiva por escrito ou, mais provavelmente, via tradição oral. Os evangelhos e documentos semelhantes, escritos décadas mais tarde, seriam pouco mais que compilações de parte dessas unidades disponíveis, organizadas segundo os interesses e conhecimentos de cada autor ou grupo regional e postas numa seqüência narrativa lógica.

Há historiadores, porém, que não crêem que Marcos seja anterior aos demais evangelhos. Tem sido defendido nas últimas décadas que na verdade foi Marcos quem se utilizou de Mateus e Lucas como fontes e, nos pontos em que estes divergiam, ele se guiava ora por um, ora por outro. É relativamente fácil inverter dessa forma todos os argumentos já levantados em favor da precedência de Marcos. Os adeptos dessa teoria geralmente acreditam, tanto com base em considerações lingüísticas (e outras referentes à evidência interna) quanto no testemunho da tradição, que o evangelho mais antigo na verdade é o de Mateus.

Existe ainda um grupo de estudiosos que sustenta que, assim como em relação a João, a influência mútua dos evangelhos sinóticos, ou seja, dos mais antigos na composição dos mais recentes, foi praticamente nula. Segundo essa hipótese, as evidentes e abundantes semelhanças entre os respectivos textos explicam-se diretamente pela tradição oral, que, transmitida na forma de perícopes, seria, contudo, mais uniforme do que a descrição anterior pode dar a entender. Aqui não há muito espaço para Q e outros documentos hipotéticos. Para os adeptos dessa teoria, tais postulados são apenas artificialidades anacrônicas que inconscientemente projetam na comunidade cristã do século I características que na verdade pertencem à cultura moderna. Em ambientes como a cultura judaica daquela época, de onde emergiu o cristianismo, a tradição oral ocupava um papel muito mais importante do que hoje no que diz respeito à transmissão de informações, e portanto dispunha-se de uma grande quantidade de recursos mnemônicos para salvaguardar a fidelidade da informação transmitida. Alguns desses recursos são, aliás, evidentes nos evangelhos. Em decorrência disso, obtinha-se freqüentemente uma eficiência na transmissão que chega a ser quase inimaginável para pessoas que, como nós, vivem numa cultura quase inteiramente literária. Essa teoria também concede um papel mais importante à influência direta das testemunhas oculares dos eventos descritos nos evangelhos.

Esses são os temas básicos nas atuais discussões acadêmicas sobre o assunto. Não sei muito bem qual dessas teorias é mais forte atualmente, e devo avisar que deixei de lado uma porção de interessantes variações das teorias acima que também são defendidas por certos eruditos. Quanto a mim, embora tenha algumas opiniões sobre o que me parecem ser alguns pontos fortes ou fracos em cada uma, não vou expô-las aqui hoje. Provavelmente voltarei a falar esporadicamente sobre esse tema, ou outros relacionados, em posts futuros. Por enquanto, essa visão panorâmica serve pelo menos como lembrete dado por mim a mim mesmo para voltar a estudar, mais cedo ou mais tarde, essas questões nada simples. E nisso, é claro, aceito a colaboração de leitores que porventura conheçam o assunto melhor que eu.

Um comentário:

Fernando Pasquini disse...

Apesar de todas as divergências entre os estudiosos quanto à origem dos evangelhos, uma coisa fica certa: os "evangelhos" descobertos atualmente, intitulados por "Evangelhos de Maria Madalena e Judas" não tem nenhuma relação com os evangelhos que encontramos na Bíblia. Isto porque, apesar de alguns estudiosos já constatarem que os textos não datam da época dos verdadeiros, estes livros não possuem (creio eu) nada em comum com os evangelhos sinóticos, e segundo os estudiosos que você comentou, muito menos refletem uma literatura oral da Igreja primitiva. Sem esquecer o lado que consideramos fruto da inspiração divina, isto é, a perfeição em números, palavras e significados que só encontramos nos textos bíblicos autênticos. O que vem a parecer, portanto, é que se tratam textos de origens desconhecidas, provavelmente feito com o intuito de escandalizar a fé cristã. De um certo modo, Dan Brown nos tempos antigos.