24 de março de 2007

Dois discursos diabólicos

Depois de não sei quantos meses, finalmente consegui recuperar um dos meus vários livros que andam emprestados por aí. Trata-se do Surpreendido pela alegria (Surprised by joy), uma obra autobiográfica na qual C. S. Lewis não apenas nos conta como se converteu ao cristianismo (o que constitui o objetivo principal do livro), mas também relata uma porção de interessantes episódios de sua infância, adolescência e juventude e extrai daí uma profunda análise de si mesmo e de várias coisas mais. Pensei em falar mais sobre esse livro hoje, a fim de comemorar o retorno do meu exemplar, mas achei melhor deixar isso pra outro dia. Ainda assim, inspirado por esse acontecimento, vou escrever sobre um tema relacionado com ele.


Estive pensando que provavelmente a maioria dos leitores de Lewis conhece pouco de seu trabalho e suas idéias anteriores à conversão. Em grande parte, sem dúvida, isso se deve ao fato de que ele se tornou cristão relativamente jovem, aos 32 anos, de modo que quase todas as suas dezenas de obras foram escritas depois disso, incluindo-se aí, naturalmente, as que evidenciam uma maior maturidade. Porém, muitas das concepções de Lewis podem ser apreendidas com maior exatidão e profundidade se analisadas contra o pano de fundo das suas experiências de vida. Isso é verdade também para muitos outros escritores e intelectuais, mas é particularmente evidente no caso dele. É essa uma das principais razões pelas quais considero interessante conhecer também, por assim dizer, o Lewis pré-cristão.


Escritor por vocação e desde a infância, ele publicou seu primeiro livro em 1919, quando contava com 21 anos, usando o pseudônimo Clive Hamilton (Hamilton era o sobrenome de solteira de sua mãe). Intitulado Spirits in bondage ("espíritos em cativeiro"), o livro consiste de uma coleção de quarenta poemas, dos quais vários são muito belos, e outros tantos são no mínimo interessantes. Ao que parece, a maior parte desses poemas foi escrita entre 1915 e 1918, um período conturbado da vida do escritor: ele estudou intensamente para entrar numa universidade e, pouco depois de ser admitido em Oxford, foi enviado às trincheiras da Primeira Guerra Mundial.

Destacam-se nesses poemas vários aspectos da personalidade e dos pensamentos de Lewis nos anos de sua juventude, em especial seu pessimismo filosófico, seu incurável romantismo e, é claro, seu ateísmo. Conforme se depreende dos versos e das memórias expressas quatro décadas depois em sua autobiografia, as idéias dele nessa época, ao mesmo tempo em que padeciam de várias inconsistências fundamentais, possuíam uma série de particularidades muito interessantes. A fim de exemplificar isso, selecionei dois poemas de Spirits in bondage, o primeiro e o décimo-terceiro, sobre os quais farei alguns comentários. Ambos possuem o mesmo título, Satan speaks ("Satanás fala") e, embora não haja uma seqüência lógica ou cronológica bem definida ao longo dos quarenta poemas, esses dois estão intimamente relacionados, como pretendo mostrar.

Traduzi esses poemas a fim de facilitar o entendimento por parte de leitores que porventura não saibam ler em inglês. Mas devo advertir que, sendo esse o objetivo principal e não sendo eu um bom tradutor (e muito menos um bom poeta - aliás, não chego sequer a ser um poeta ruim), me preocupei apenas em captar o sentido dos versos, deixando de lado todos os aspectos estéticos possíveis. A fim de não prejudicar os demais leitores, porém, disponibilizei os poemas também na língua original.

O primeiro poema leva-me a fazer várias associações, em especial com a autodescrição dada por Krishna naquela célebre passagem do Bhagavad Gita (e conseqüentemente, é claro, com a canção Gita, de Raul Seixas) e com o poema The tyger, de William Blake. Não sei até que ponto Lewis conhecia a literatura religiosa hindu, mas é provável que ele conhecesse a obra de Blake, e é certo que não conhecia a de Raul. Mas não convém especular sobre os modelos literários do poeta, de modo que faço esse comentário apenas de passagem, e prossigo para o que mais importa, que é a mensagem transmitida em sua obra.

O Satanás de Lewis, conforme definido por si mesmo no primeiro poema, obviamente não corresponde ao ser que a tradição judaico-cristã designa por essa palavra, exceto pelo fato de que ele se opõe a Deus. Ele é a personificação poética do mundo material, da natureza, ou seja, da realidade como um todo, conforme vista pela filosofia materialista que Lewis então esposava. Satanás abarca tudo o que há de mais singelo e bonito, assim como tudo o que há de mais perverso e doloroso, não apenas no mundo natural, mas também na vida dos homens. Não poderia ser de outra forma, aliás, já que o materialismo, por razões óbvias, não pode admitir qualquer elemento imaterial na natureza humana, de modo que esta se torna qualitativamente apenas um subconjunto do universo físico, e não uma intersecção entre dois níveis de realidade.

As manifestações de Satanás escolhidas como exemplo para compor o poema mostram claramente que Lewis considerava que o aspecto tenebroso da realidade era forte o suficiente para eclipsar quase totalmente os bons aspectos. Aliás, a própria designação da natureza como Satanás é, por si mesma, bastante reveladora. O monismo materialista de Lewis era uma caricatura invertida do monismo espiritualista do sufismo islâmico e do Vedanta hindu. Ele subscrevia inteiramente a doutrina gnóstica, tão veementemente condenada pelo cristianismo histórico, segundo a qual o universo material é ontologicamente mau. A diferença em relação ao gnosticismo é que, segundo o materialismo, essa coisa ruim é tudo o que existe, não havendo, portanto, um lugar para onde se possa fugir. O pessimismo do jovem Lewis decorria diretamente do fato de que ele era um gnóstico em quase tudo, exceto no apego ao transcendente, que é o único ponto de acordo entre aquela doutrina e a fé cristã.

Isso nos leva ao segundo poema, no qual, após ter se apresentado devidamente, Satanás discursa justamente contra esse Deus supostamente maior que ele próprio. É fácil notar que esses versos são uma paródia das advertências proféticas do Antigo Testamento contra a idolatria do povo de Israel. Satanás queixa-se de que ele, a única divindade realmente existente, é sistematicamente desprezado por seus súditos humanos, que insistem em buscar refúgio num fantasioso Deus transcendente ao mundo material, e promete castigá-los por sua infidelidade.

Refletindo em sua poesia uma das características mais marcantes da modernidade ocidental, Lewis convivia com um profundo e intransponível abismo entre o que lhe dizia sua razão e o que exigiam as demais necessidades psicológicas dele e de todo homem. A única rota de fuga passava pela negação da razão e da realidade. A religião era vista por ele como enganadora e perniciosa, no sentido de que prometia algo que não poderia ser encontrado em parte alguma. Tudo o que existe não parecia suficiente para contentar o ser humano, de modo que ele alimentava ilusões como a religião, a mitologia e os contos de fadas na vã tentativa de amenizar o sentimento de decepção decorrente daí. Estranhamente, o homem, mesmo não sendo mais que matéria produzida a partir de matéria, não parecia bem adaptado ao mundo de pura matéria. E a constatação desse interessante fato psicológico foi um dos importantes fatores que acabaram por transformar as concepções de Lewis muito mais do que ele mesmo esperava ou mesmo desejava aos 21 anos.

Satanás fala
Eu sou a Natureza, a Poderosa Mãe;
eu sou a lei, e não tens nenhuma outra.

Eu sou a flor e a fresca gota de orvalho,
eu sou a luxúria que coça em tua carne.

Eu sou a sujeira e a tensão da batalha,
eu sou a dor vazia da viúva.

Eu sou o mar que suprime o teu fôlego,
eu sou a bomba, a morte que cai.

Eu sou o fato e a razão esmagadora
que frustra a recém-nascida traição da tua fantasia.

Eu sou a aranha fazendo sua teia,
eu sou a fera de dentes ensangüentados.

Eu sou um lobo que persegue o sol
e eu o pegarei antes que o dia se acabe.

Satan Speaks
I am Nature, the Mighty Mother,
I am the law: ye have none other.

I am the flower and the dewdrop fresh,
I am the lust in your itching flesh.

I am the battle's filth and strain,
I am the widow's empty pain.

I am the sea to smother your breath,
I am the bomb, the falling death.

I am the fact and the crushing reason
To thwart you fantasy's new-born treason.

I am the spider making her net,
I am the beast with jaws blood-wet.

I am a wolf that follows the sun
And I will catch him ere day be done.

Satanás fala
Eu sou o Senhor vosso Deus, o mesmo que fez
as coisas materiais e ordenou todos esses sinais
acima de vós, e os fixou sob a raça
dos humanos, que se esquecem da face de seu Pai
e mesmo enquanto bebem da minha luz diurna
sonham com outros deuses quaisquer e desobedecem
minhas admoestações, e desprezam minhas santas leis,
muito embora seu pecado acabe por matá-los. Por causa dele
há sonhos sonhados em vão, um desejo nunca satisfeito,
e no íntimo da carne um fogo espiritual,
uma sede pelo bem que sua espécie não atingirá,
um retrocesso à selvageria,
uma aversão à vida que eu dei,
uma alma assombrada, torcida e para sempre dividida
entre a vontade deles e a minha - tanta coisa eu dou
enquanto avesso a mim o verme continua vivendo.
Eles odeiam meu mundo! Então que aquele outro Deus
venha dos espaços exteriores de falsa glória,
e deste castelo que eu construí sobre a Noite
leve embora os filhos do meu próprio pensamento para a luz,
se tal existir. Mas muito longe
ele caminha nos campos aéreos do dia sem fim,
e meus filhos rebeldes o chamaram por muito tempo
e chamaram em vão. Minha ordem ainda é forte,
e como eu não há outro que eu conheça.
Para onde o mamute foi esta criatura também irá.

Satan Speaks
I am the Lord your God: even he that made
Material things, and all these signs arrayed
Above you and have set beneath the race
Of mankind, who forget their Father's face
And even while they drink my light of day
Dream of some other gods and disobey
My warnings, and despise my holy laws,
Even tho'their sin shall slay them. For which cause,
Dreams dreamed in vain, a never-filled desire
And in close flesh a spiritual fire,
A thirst for good their kind shall not attain,
A backward cleaving to the beast again.
A loathing for the life that I have given,
A haunted, twisted soul for ever riven
Between their will and mine-such lot I give
While still in my despite the vermin live.
They hate my world! Then let that other God
Come from the outer spaces glory-shod,
And from this castle I have built on Night
Steal forth my own thought's children into light,
If such an one there be. But far away
He walks the airy fields of endless day,
And my rebellious sons have called Him long
And vainly called. My order still is strong
And like to me nor second none I know.
Whither the mammoth went this creature too shall go.

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