3 de outubro de 2011

Retrato bibliográfico

No perfil de minha falecida conta no orkut havia uma lista dos vinte livros mais importantes de minha vida. Outro dia lembrei que meu amigo Fernando Pasquini tinha uma lista semelhante, que depois sumiu, na lateral de seu blog Em busca de um nome. Então tive a ideia de fazer o mesmo aqui no meu blog. Mas os livros em questão são importantes demais para simplesmente aparecer na lateral do meu blog de uma hora para outra, sem uma explicação. Decidi, pois, fazer uma postagem para apresentá-los minimamente. É o que passo a fazer, sem deixar de registrar devidamente minha gratidão ao Fernando por ter me apresentado o Skoob. A lista está razoavelmente diferente da antiga lista do orkut, por várias razões, sendo que a principal delas resulta da mudança dos critérios de escolha. Depois de fazer uma pré-seleção dos livros mais importantes para mim, dentre tudo o que já li na vida, dividi esses bons livros em temas, segundo os meus interesses, e escolhi, dentro de cada tema, um número proporcional à quantidade total de bons livros que li sobre aquele tema, o que deve, de algum modo, refletir a intensidade do meu interesse por ele.

O resultado é deveras interessante, ao menos para mim mesmo. Mas alguns esclarecimentos precisam ser feitos. O primeiro deles é que, em uma seleção como essa, algum grau de arbitrariedade é inevitável. Escolhi vinte livros para a lista, mas deixei de fora outros vinte que poderiam perfeitamente ter entrado. Tive minhas razões para isso, mas estou consciente de que elas são em parte questionáveis, e os resultados poderiam ser um pouco diferentes se eu tivesse feito essa lista em outro momento.

Isso me leva ao segundo esclarecimento: ao selecionar esses vinte livros, não estou dizendo que são necessariamente os melhores que li, ou seja, que qualquer livro presente nessa lista é necessariamente melhor que qualquer outro que eu tenha lido e que não faz parte dela. Existe certo grau de subjetividade na decisão: escolhi esses livros por serem os melhores ou por serem os mais importantes para minha trajetória pessoal? A resposta correta é: nem só uma coisa, nem só a outra. Alguns livros que li eram muito ruins e, no entanto, fizeram enorme diferença na minha vida - ou porque continham verdades importantes a despeito de sua má qualidade, ou porque eram ruins a tal ponto que a porcaria adquiriu um caráter didático, ensinando-me, pelo mau exemplo, lições que seus autores jamais chegaram perto de aprender. Por outro lado, alguns livros notoriamente bons não deixaram em mim nenhuma impressão profunda, talvez porque não me senti pessoalmente implicado no tema de que tratavam, ou mesmo porque eu não estava à altura deles. A lista que apresento não contém nenhum espécime desse tipo: posso afirmar sem medo de errar que todos os vinte livros são bons e me influenciaram profundamente. Digo isso, é claro, porque avaliar a qualidade de um livro é muitas vezes arriscado, e é ainda mais arriscado avaliar sua influência sobre nós. Talvez alguma estorinha infantil que li aos cinco anos e de que já nem me lembro tenha, objetivamente, me influenciado mais que todos os que passo a mencionar. Mas, até onde me é possível avaliar, a lista que compus é razoavelmente justa.

O terceiro esclarecimento que faço é para não correr o risco de sofrer um julgamento errado por causa de minha seleção. É evidente que o fato de os livros estarem nessa lista não implica que eu não possa ter severos desacordos quanto aos conteúdos defendidos (ou, de alguma forma, transmitidos) em alguns deles. Em outras palavras, dizer que são ótimos livros e que me ensinaram muito não implica que sejam livros que só expõem, defendem ou pressupõem uma cosmovisão essencialmente ótima. O exame da lista tendo em mente a natureza de minha própria cosmovisão deverá bastar para deixar isso claro. Por exemplo, o fato de se encontrarem presentes quatro livros de C. S. Lewis e apenas um de João Calvino poderia levar alguém a pensar que minha cosmovisão está mais próxima à do primeiro, o que é falso. Da mesma forma, eu poderia ser acusado de ser antibrasileiro, filoamericano, modernista e misógino, já que, dos vinte livros, quinze foram escritos em inglês (nenhum em português), dezoito no século XX e todos por homens. E, em especial, o fato de eu não ter incluído a Bíblia nessa lista não significa nada além do fato de que, em minha opinião, incluí-la seria uma terrível covardia contra os demais livros. Apesar de tudo o que há de errado em mim, não posso deixar de ver nela a obra fundamental, tanto em qualidade quanto em influência sobre mim. Mas por que falo em "covardia"? Apenas porque seu Autor está presente em minha vida de um modo que é impossível a todos os demais.

Não obstante, vários aspectos de minha personalidade podem ser vistos nessa lista, a começar por meus interesses. Deve haver também alguma explicação para o fato de que nenhuma das quatro ficções literárias nela presentes é uma ficção realista. De qualquer modo, é um retrato que ofereço de mim mesmo, sob um determinado ângulo. Mas meu objetivo não é apontar para mim mesmo, e sim para as obras que são importantes para mim, de modo que não convém me estender demais nessa autoanálise e ficar sem espaço nenhum para falar dos livros. Sem mais delongas, portanto, segue a lista, com umas poucas palavras sobre cada obra. Elas não aparecem em ordem de importância, e sim na ordem em que as li.

1. O Fator Melquisedeque: o testemunho de Deus nas culturas através do mundo (Eternity in Their Hearts [A eternidade no coração deles], em alusão a Eclesiastes 3.11), de Don Richardson; lido em 1999. Esse livro mostra, mediante a análise de muitos casos, que Deus preparou o mundo para o Evangelho, mantendo em muitas culturas pontos de contato pelos quais seus membros vieram ou poderiam vir a crer em Cristo. Levou-me a ver, com clareza até então impossível, a grandeza da soberania de Deus, inclusive sobre o mundo perdido.

2. Mais que vencedores: uma interpretação do Livro do Apocalipse (More than Conquerors, em alusão a Romanos 8.37), de William Hendriksen; lido em 2002. Esse foi o comentário bíblico que me levou não só a compreender o Livro do Apocalipse e sua mensagem, mas também a amá-los.

3. De Arquimedes a Einstein: a face oculta da invenção científica (D'Archimède à Einstein. Les faces cachées de l'invention scientifique), de Pierre Thuillier; lido em 2002. Livro que consolidou em mim a demolição de vários mitos sobre a ciência moderna, levando-me a vê-la como um empreendimento muito menos isolado da arte, das ciências humanas, da história, da cultura e da teologia do que eu supusera até então.

4. O Silmarillion (The Silmarillion), de J. R. R. Tolkien; lido em 2002. A mais vasta, rica e bela mitologia já composta por um homem só.

5. Cristianismo puro e simples (Mere Christianity), de C. S. Lewis; lido em 2003. Essa exposição de alguns dos fundamentos da fé cristã, feita com inteligência e beleza, abriu-me tantas oportunidades de santificação, do intelecto e da vida como um todo, que ainda não consegui descrevê-las de modo justo.

6. Filosofias da Índia (Philosophies of India), de Heinrich Zimmer; lido em 2004. Essa obra marcou meu primeiro contato mais profundo com uma fascinante cultura milenar estrangeira, abrindo as portas para um mundo cultural, filosófico e religioso completamente novo para mim.

7. O homem que foi Quinta-feira: um pesadelo (The Man Who Was Thursday: a Nightmare), de G. K. Chesterton; lido em 2004. Beleza literária, humor inigualável, alegorias desafiadoras, personagens pitorescos e extravagantes, imaginação incontida e impagáveis discussões sobre política, arte, filosofia e teologia no romance policial mais surreal do mundo.

8. As crônicas de Nárnia (The Narnia Chronicles), de C. S. Lewis, lido em 2004. Essa série infanto-juvenil em sete volumes é a coisa mais parecida que já vi com uma fantasia redimida, na qual, apesar das diferenças, Cristo brilha de modo perfeitamente reconhecível.

9. Ortodoxia (Orthodoxy), de G. K. Chesterton; lido em 2004. Uma defesa criativa, profunda, bem-humorada, sensata e sensível da fé cristã. Sua leitura, além de fazer bem à imaginação, me livrou de muitos dos modernos reducionismos.

10. Surpreendido pela alegria (Surprised by Joy), de C. S. Lewis; lido em 2005. Uma autobiografia intelectual e espiritual, repleta de uma introspecção e de uma pessoalidade extremamente ricas, além de lições importantes para a vida e para o pensamento.

11. A morte da razão (Escape from Reason [Fuga da razão]), de Francis Schaeffer; lido em 2005. Uma breve história do desespero moderno e pós-moderno e suas manifestações na filosofia, nas artes e na teologia, resultando em um dualismo intransponível entre cosmovisão e vida.

12. A abolição do homem (The Abolition of Man), de C. S. Lewis; lido em 2006. Um livro magistral, que começa na defesa da objetividade dos valores estéticos e crítica a certos programas pedagógicos, culminando num perplexo, mas preciso, diagnóstico do mal da mentalidade contemporânea, do materialismo e do cientificismo.

13. Notas para a definição de cultura (Notes towards the Definition of Culture), de T. S. Eliot; lido em 2006. Uma abordagem notável à alta cultura em busca das condições necessárias à sua existência. Foi uma das peças fundamentais em minha "conversão" ao conservadorismo, apesar de não falar de política (falei mais sobre isso aqui).

14. A divina comédia (La divina commedia), de Dante Alighieri; lido em 2007. Toda a riqueza da cultura medieval aparece aqui, nas belas roupagens do verso dantesco. Para mim, até que se prove o contrário, Dante é o maior poeta de todos os tempos. Escrevi mais sobre esse livro aqui.

15. A grande conversação: a substância de uma educação liberal (The Great Conversation: the Substance of a Liberal Education), de Robert Hutchins; lido em 2007. Escrito em defesa da educação liberal, que consiste na absorção direta dos clássicos, esse excelente opúsculo me fez ver o tamanho do buraco em que se meteu a educação moderna e, portanto, o quanto estou longe de ser um homem instruído.

16. Darwin no banco dos réus (Darwin on Trial), de Phillip Johnson; lido em 2008. É o melhor livro que já li sobre o evolucionismo. Expõe com clareza e rigor impecáveis o rombo epistemológico da teoria evolucionista, denunciando com igual contundência o papel religioso que ela ocupa na mentalidade científica contemporânea.

17. A rebelião das massas (La rebelión de las masas), de José Ortega y Gasset; lido em 2008. Mais que fazer uma análise brilhante da ascensão da mediocridade, este livro, escrito pelo filósofo das circunstâncias, me fez ver o quanto é importante conhecer outras histórias e culturas a fim de discernir apropriadamente a nossa própria.

18. As institutas da religião cristã (Institutio christianae religionis), de João Calvino; lido em 2009. Esses quatro volumes de exposição ao mesmo tempo sistemática, pastoral e apologética me levaram a ver não poucos desvios em minha cosmovisão, e a entender as razões de muito do que eu assimilara passivamente ao longo de minha educação religiosa.

19. A geometria fractal da natureza (The Fractal Geometry of Nature), de Benoît Mandelbrot; lido em 2009. Obra de um gênio da matemática, escrita com arte e paixão, defendendo uma tese original sobre a relação entre suas descobertas e o mundo físico. Ensinou-me que é possível e necessário escrever com o coração, inclusive sobre ciência. Fiz sobre esse livro, entre outubro de 2009 e janeiro de 2010, nada menos que onze pequenas postagens no Tamos Lendo!, as quais recomendo aos interessados.

20. Para compreender o islã: originalidade e universalidade da religião (Comprendre l'islam), de Frithjof Schuon; lido em 2010. Uma exposição bela e profunda sobre o espírito da religião islâmica de um ponto de vista sufi (ainda que algo heterodoxo), esotérico e tradicional (no sentido guénoniano).