22 de janeiro de 2008

Palhaçadas memoráveis

O momento é propício para o cumprimento de uma das dezenas de promessas que fiz neste blog ao longo do ano passado. Essa que pretendo cumprir hoje foi feita em agosto, na postagem intitulada Fragmentos de sensatez, em que publiquei uma porção de frases de Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), um dos meus escritores e pensadores preferidos. Neste mês, para alegria do público leitor cristão deste país, a Editora Mundo Cristão está publicando a tradução, a um preço bem acessível e prefaciada por Phillip Yancey, de um de seus melhores e mais famosos livros, o Orthodoxy, que está completando um século de existência. Ortodoxia é um livro belo, profundo, agradável e edificante; um dos melhores que já li, sem dúvida alguma. Concordo com Dale Ahlquist quando ele diz que todos deveriam não apenas ler esse livro, mas lê-lo todos os anos. O texto em inglês já é de domínio público, e pode ser acessado neste endereço. Quem preferir a tradução da Mundo Cristão pode comprá-la ou entrar em contato comigo, pois a tenho em formato PDF. (Não se trata de pirataria, é bom deixar claro; a própria editora produziu o arquivo e o disponibilizou promocionalmente em sua página por tempo limitado.) Mas não é sobre o livro que pretendo falar hoje, e sim sobre o autor. Ou, dizendo mais exatamente, sobre o estilo literário e argumentativo do autor, que justificaria por si só a minha admiração por ele, caso o conteúdo transmitido não fosse ainda melhor. Não sou, é claro, nenhuma autoridade no assunto, já que não li mais que sete dos seus livros. Mas isso foi mais que suficiente para que saltassem aos meus olhos certos aspectos sempre presentes na sua prosa. Quem quiser amostras pode ler o ensaio Em defesa do culto à criança, que traduzi e publiquei aqui em outubro, num post chamado Novas criações, e também o texto Sobre a leitura, traduzido e publicado há poucos dias pelo meu amigo Gustavo Nagel em seu blog.

Para mim, a maneira mais fácil de começar a descrever o estilo de Chesterton é comparando-o com um outro grande escritor europeu, Friedrich Nietzsche. A equiparação dos dois é imprópria sob muitos aspectos; aliás, sob quase todos. Mas os contrastes também ajudam na compreensão, assim como as semelhanças. E no momento, embora muitas comparações pudessem ser feitas, interessam-me apenas uma semelhança e uma diferença. A semelhança está no modo de expressão pouco usual, infindavelmente criativo, e no estilo de argumentação cheio de uma carga emocional própria e inconfundível e de apelos constantes à imaginação do leitor, um estilo repleto de figuras de linguagem e imagens mentais, avesso a uma clara e rígida seqüência de silogismos. "Poético" é a melhor palavra que encontro para definir tudo isso. Nietzsche e Chesterton são, ambos, poetas-filósofos. A diferença, quanto a esse aspecto específico, é que Nietzsche é muito poeta e pouco filósofo, enquanto Chesterton é muito de ambas as coisas. Essa diferença decorre dos próprios objetivos e pressupostos teóricos de cada um, mas não entrarei nesse assunto agora. O que importa é o resultado concreto em cada caso: Chesterton não apresenta seu argumento de maneira nua, mas o mostra devidamente fantasiado; talvez não seja injusto dizer que nos seus textos o argumento quase sempre aparece fantasiado de palhaço. Mas a fantasia se destina a chamar a atenção para o palhaço, a quebrar o torpor dos automatismos mentais que insistem em torná-lo imperceptível, não a ocultá-lo, e muito menos a substituí-lo. O leitor que empreender o esforço de separar mentalmente a retórica da dialética nos textos de Chesterton não ficará decepcionado; por baixo da fantasia haverá, ao menos na esmagadora maioria das vezes, um sólido argumento. No caso do tão celebrado escritor alemão, ao contrário, costuma restar apenas um punhado de contradições e arbitrariedades. É muito significativo examinar, sob esse ponto de vista, a maneira pela qual Chesterton utiliza o paradoxo, do qual, como já mencionei mais de uma vez, ele era considerado um autêntico mestre. Mas ele distinguia entre o paradoxo desprezível, definido no próprio Ortodoxia como "uma defesa meramente engenhosa do indefensável", e o paradoxo autêntico e válido, que é "a verdade plantando bananeira para chamar a atenção", conforme ele a definiu em The paradoxes of Mr. Pond.

Não deixa de haver alguma dose de justiça na crítica, feita por alguns, de que Chesterton às vezes é um tanto obscuro. Isso se explica pelo fato de que ele é um daqueles sujeitos raros aos quais se aplica perfeitmente a frase que alguém usou para descrever o físico Murray Gell-Mann: "Ele tem cinco cérebros, e cada um deles é melhor que o nosso". Se Chesterton tinha cinco cérebros eu não sei, mas o fato é que não demonstra ter a menor dificuldade para pensar em cinco coisas ao mesmo tempo. Ele foi, mesmo antes da conversão ao cristianismo, um profundo conhecedor da natureza humana (e é por isso mesmo que acabou se convertendo), e as mais tênues e ignoradas conexões entre as coisas apareciam claramente aos seus olhos. Eis porque seus livros costumam conter alusões a uma miríade de temas, seja qual for o assunto principal. Isso contribui para fazer dele um escritor nada convencional, a ponto de levá-lo a aparecer como mero coadjuvante em sua própria autobiografia. (Ahlquist explica esse interessante fenômeno afirmando que Chesterton era humilde demais para gastar muito tempo pensando em si mesmo, e eu creio que ele tem razão.) Chesterton percebe intuitivamente certas verdades que mesmo as inteligências mais capazes dificilmente apreendem sem esforço, e isso contribui para fazer dele um escritor brilhante; mas também é em virtude do admirável poder de síntese decorrente daí que a leitura pode, ocasionalmente, se tornar algo penosa. O esforço compensa, sem dúvida, mas Chesterton requer atenção total; lê-lo distraidamente, ou com sono, é quase um sacrilégio, porque é um tremendo desperdício. Mas mesmo nos raríssimos momentos em que chega perto de ser chato, sua chatice não é de modo algum comparável à típica prolixidade acadêmica, quer do ponto de vista qualitativo, quer do quantitativo. Jamais usa vocabulário técnico; jamais é pedante; jamais peca pela falta de imaginação. Nesse sentido, o máximo de que se pode acusá-lo é de cometer excessos.

Entretanto, a vasta maioria das críticas que lhe fizeram era grosseiramente injusta. Muitos viram nele um sujeito frívolo, um sofista, nada mais que uma fonte inesgotável de frases brilhantemente criativas e bem-humoradas, mas vazias. Quem pensa assim não chegou perto sequer de compreender aquela notável figura, e muito menos de ter o direito de julgá-la. Desconfio que esse veredicto pode ser atribuído, quando não à pura má vontade do crítico, ao menos à sua falta de sensibilidade. Os textos de Chesterton se assemelham às próprias Escrituras Sagradas em certo aspecto: seu estilo é tal que ensina muito a quem se empenha sinceramente em compreendê-lo, ao mesmo tempo que o torna opaco aos que não desejam fazê-lo devidamente. Assim, é facílimo atribuir a ele as idéias mais bestas e contraditórias, e corroborar com citações cada acusação feita nesse sentido. Citar Chesterton é freqüentemente uma tentação irresistível, mas é também um tanto perigoso. A continuidade de sua argumentação e a consistência de seu pensamento são fortes a tal ponto que as frases que ele inseriu num texto normalmente já não são as mesmas quando retiradas dele. O leitor cuja consciência fragmentada é incapaz de apreender essa continuidade e essa consistência poderá elaborar uma lista infindável de ditos absurdos, sem jamais chegar a suspeitar das realidades subjacentes. Mesmo assim, acredito ser impossível que alguém permaneça imune à sua grandeza. O indivíduo incapaz de ler com todo o seu ser, empenhando adequadamanente a razão, a emoção e a imaginação, é incapaz de compreender Chesterton; ainda assim, sua leitura será, seguramente, um dos melhores antídotos possíveis para esse mal interior. Mesmo quando está errado, Chesterton tem alguma verdade a comunicar, e a exprime de uma maneira surpreendente, nada convencional. Aqueles inapelavelmente comprometidos com a rejeição dos valores defendidos por ele só têm uma saída: ignorá-lo por completo. E essa é, aliás, justamente a estratégia adotada pelo mundo moderno.

Não posso encerrar estas breves e altamente fragmentárias considerações sem dizer que todas essas características que acabo de descrever não são resultado de uma premeditação brilhante feita por uma mente excepcionalmente capaz. A espontaneidade transparece em cada uma de suas linhas, e sem ela ninguém poderia ter escrito tanto e tão bem. Quando comecei a ler Chesterton desconfiei, a despeito das aparências, que algum rebuscamento deveria estar por trás de tamanho brilho. Mas logo me convenci de que não era nada disso. Pois todos os testemunhos de pessoas que o conheceram pessoalmente e todas as transcrições de debates e entrevistas em que tomou parte mostram exatamente aquela mesma personalidade que se revela nos livros. Percebi, então, que a razão pela qual devemos ler Chesterton com todo o nosso ser não é outra senão o fato de que era dessa forma que ele escrevia. Seus textos são espontâneos, profundos, criativos e alegres porque ele próprio era espontâneo, profundo, criativo e alegre. Tudo muito simples, mas nem por isso menos surpreendente.

16 de janeiro de 2008

Pedaços de bagunça

Dando prosseguimento ao tema iniciado em A origem da bagunça, em que descrevi as mais importantes causas da existência das variações que são objeto de estudo da crítica textual, este post ilustrará os casos ali descritos com exemplos retirados dos textos bíblicos, tanto hebraicos quanto gregos. Considero importante esse procedimento a fim de evitar que a descrição precedente se mostre demasiado abstrata, e assim induza a concepções erradas sobre a profundidade e a importância relativa das variantes textuais. Quase todos os exemplos foram retirados dos livros já citados de Paroschi e Archer. Usei exemplos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento sempre que foi possível, mas em alguns casos não fui capaz de localizar exemplos apropriados de um ou de outro. Em particular, a última parte não contém exemplos veterotestamentários, por razões já explicadas no post anterior.

Cabe observar que, seguindo a recomendação de Franz Schalkwijk em seu livro Coinê, uma introdução ao grego helenístico, optei por distinguir entre as letras epsilon e êta, kapa e khi, omicron e ômega, transliterando-as como "e" e "ê", "k" e "kh", "o" e "ô", respectivamente. Na verdade, Schalkwijk recomenda um traço horizontal no lugar dos acentos circunflexos, mas fiz essa substituição por temer que o navegador de algum leitor apronte uma confusão qualquer. Nem todos os autores que lidam com o assunto seguem a convenção proposta no livro didático mencionado. Julguei útil a sugestão de Schalkwijk por eliminar de modo relativamente simples as ambigüidades na transliteração. Esse método paga o preço de ignorar os sinais diacríticos, mas isso não chega a ser um grande problema, visto que eles não fazem parte dos manuscritos neotestamentários mais antigos. Dessa forma, deve ficar claro que a presença dos referidos acentos não diz muito sobre a pronúncia das palavras onde aparece e, em particular, não diz nada sobre a tonicidade das mesmas.

Alterações não intencionais

A. Causadas pela falta de atenção do copista;

1. Trocas de posições entre letras ou palavras. Isaías 32.19 diz: "ainda que haja saraivada, caia o bosque e seja a cidade inteiramente abatida." "A cidade" é "h'yr", mas alguns manuscritos dizem "hy'r", que significa "a floresta". Na descrição da agressão a Jesus perante o Sinédrio, em Marcos 14.65, é dito que "os guardas o receberam com bofetadas". Mas há versões que substituem "receberam" ("elabon") por "arremessaram" ("ebalon").

2. Trocas de palavras por sinônimos. Podem ser encontrados exemplos em dezenas de passagens do Novo Testamento nas quais aparece a preposição "peri", sendo substituída por "hyper", ambas tendo, nesses contextos, sentido semelhante a "sobre".

3. Repetição de uma seqüência de caracteres. Ezequiel 48.16, que fornece as dimensões da futura cidade santa, descreve-a como um quadrado de quatro mil e quinhentos côvados de lado, mas o texto massorético diz "cinco quinhentos" ("hsm hsm m'wt") ao invés de apenas "quinhentos" ("hsm m'wt"). Um exemplo do mesmo tipo pode ser visto em Atos 19.34, onde há manuscritos que reproduzem duas vezes a frase "Grande é a Diana dos efésios!".

4. Supressão de uma seqüência de caracteres repetida. No contexto da guerra movida contra a tribo de Benjamim pelas demais tribos de Israel em retaliação à morte cruel imposta por membros daquela tribo à esposa de um certo levita, nos é dito que "Benjamim não quis ouvir a voz de seus irmãos" (Juízes 20.13) quando foi exigida a morte dos criminosos. Essa versão segue o texto massorético. Porém, provavelmente a versão correta foi preservada na Septuaginta, que, em vez de simplesmente "Benjamim", diz "os filhos de Benjamim". A diferença é causada pela repetição de três letras ("bnymn" e "bny bnymn", respectivamente). Em 1 Tessalonicenses 2.7 Paulo afirma de si e seus companheiros: "nos tornamos crianças entre vós". Mas alguns manuscritos dizem "nos tornamos carinhosos entre vós". A diferença deve-se à supressão de um letra repetida: "egenêthêmen nêpioi" no primeiro caso, e "egenêthêmen êpioi" no segundo.

5. Supressão de uma seqüência de caracteres não repetida. O profeta Isaías diz, em 8.11, que Deus lhe falou "com a força da mão" sobre ele, segundo o texto massorético, mas "com força de mão", sem artigos, de acordo com um manuscrito encontrado em Qumran. A diferença no hebraico deve-se a apenas uma letra: no primeiro caso, escreve-se "bhzqt hyd"; no segundo, "bhzqt yd".

6. Supressão de uma seqüência de caracteres entre duas palavras iguais. O texto massorético e o Targum dizem em 1 Samuel 14.41 apenas o seguinte: "Falou, pois, Saul ao Senhor, Deus de Israel." Mas a Septuaginta diz: "Falou, pois, Saul: Ó Senhor, Deus de Israel, por que tu não respondes hoje ao teu servo? Se a injustiça é comigo ou meu filho Jônatas, dá prova; e se tu dizes que é com o teu povo Israel, dá santidade, ó Senhor, Deus de Israel." A maior parte de Lucas 18.39 foi omitida em certos manuscritos pelo fato de estar entre duas frases idênticas: "E os que iam na frente o repreendiam para que se calasse; ele, porém, cada vez gritava mais".

B. Causadas por dificuldades "físicas";

1. Fusão de duas palavras em uma. No meio da descrição dos rituais do Dia da Expiação é dito que Arão deveria lançar sortes "sobre os dois bodes: uma para o Senhor, e a outra para o bode emissário" (Levítico 16.8), como diz a Septuaginta. Mas o texto massorético diz "para Azazel" ("l'z'zl"), criando um sério problema exegético mediante a introdução de um nome próprio inteiramente desconhecido em lugar de "para o bode emissário" ("l'z 'zl"). Um caso mais brando encontra-se no final da resposta de Jesus ao desejo de Tiago e João pela proeminência no reino vindouro. Segundo alguns manuscritos, Jesus disse: "all ois êtoimastai", "porque é para aqueles a quem está preparado". Segundo outros, a resposta foi "allois êtoimastai", "isso está preparado para outros".

2. Cisão de uma única palavra em duas. Já foi sugerido que a forma original de Ezequiel 7.4 seria "segundo teus caminhos, tuas abominações estarão no meio de ti", e não "porque teus caminhos e tuas abominações estarão no meio de ti". A diferença teria sido causada pela cisão de "kdrkyk" em "ky drkyk".

3. Substituição de uma letra por outra de aparência semelhante. Para um exemplo em hebraico, vide o item C.2, abaixo. Em grego temos semelhanças entre as letras alfa, delta e lambda e entre epsilon e sigma, para dar exemplos apenas na forma uncial (ou "maiúscula") do alfabeto. Assim, Atos 15.40 diz que "Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu...", mas há manuscritos que dizem "tendo recebido" ("epidexamenos") ao invés de "tendo escolhido" ("epilexamenos").

4. Substituição de palavras por outras de som idêntico ou semelhante. A confusão entre "l'" ("não") e "lw" ("para ele"), de pronúncia idêntica, causou alteração no sentido de Isaías 9.3. Enquanto o natural seria "Tens multiplicado este povo, a alegria lhe aumentaste", alguns manuscritos dizem "a alegria não aumentaste". Outro exemplo bem famoso encontra-se na declaração de Paulo em Romanos 5.1: há uma versão que diz "Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus...", enquanto outra traz "tenhamos" ("ekhômen") no lugar de "temos" ("ekhomen").

C. Causadas por incompreensão por parte do copista;

1. Evolução da pronúncia. Um bom exemplo hebraico desse fenômeno vincula-se ao caso descrito abaixo, no item 3. No grego, temos a diminuição gradual da distinção fonética entre êta e epsilon, resultando em equívocos como o de Marcos 14.31, onde um copista escreveu "mê" em vez de "me", resultando na seguinte frase de Pedro: "Se não for necessário morrer contigo, de nenhum modo te negarei".

2. Evolução da forma das letras. Em certos períodos da história paleográfica do hebraico, as letras daleth e resh (D e R) tornaram-se praticamente indistinguíveis, assim como as letras vav e yod (W e Y). Daí decorrem, por exemplo, várias diferenças na grafia de nomes próprios, como de Dodanim para Rodanim em Gênesis 10.4 e 1 Crônicas 1.7.

3. Evolução das regras gramaticais. Especialmente durante os séculos III a I a.C., as letras alef, he, vav e yod (', H, W e Y, respectivamente) foram usadas como indicações da presença de certas vogais, tendo sido deixado parcialmente de lado seu uso original como consoantes. A causa provável disso está no fato de que o uso do aramaico se difundiu muito, e muitas pessoas perderam a familiaridade natural com o hebraico. Quando os soferim (uma ordem de escribas) decidiram restabelecer o texto original e eliminar a inovação relativamente recente, cometeram alguns erros, de modo que certas alterações desse tipo não foram corrigidas. Assim, o texto massorético de Amós 2.7, preservando um alef adicional, diz "pisoteiam a cabeça dos pobres" ("hs'pym") em vez de "ferem a cabeça dos pobres" ("hspym").

4. Incorporação de notas marginais. Uma nota desse tipo é o versículo 4 do quinto capítulo de João, que explica a razão da permanência de tantos inválidos junto ao tanque de Betesda. Ainda em João, outro provável enxerto, embora não se trate propriamente de uma nota explicativa, é o longo episódio da mulher adúltera, entre 7.53 e 8.11, um dos casos mais curiosos da ecdótica neotestamentária.

Alterações intencionais

1. Harmonização de passagens paralelas. Em Marcos 9.29, Jesus responde da seguinte forma à indagação dos discípulos sobre a razão pela qual foram incapazes de expulsar o demônio que atormentava um menino: "Esta casta não pode sair senão por meio de oração e jejum". Em Mateus 17.20, porém, a resposta é outra (embora não contradiga a anterior), de modo que o versículo 21, que reproduz a resposta dada em Marcos, provavelmente é uma tentativa de harmonização.

2. Correção de citações. Mateus 15.8 cita do Antigo Testamento nos seguintes termos: "Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim." A citação é de um trecho de Isaías 29.13, que diz o seguinte: "Este povo se aproxima de mim com a boca e com os seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim". Alguns manuscritos de Mateus trazem uma citação literalmente mais correta do texto profético.

3. Eliminação de contradições ou erros aparentes. O primeiro capítulo de Marcos introduz as citações dos versículos 3 e 4 da seguinte forma: "Conforme está escrito na profecia de Isaías" (versículo 2). Entretanto, apenas o quarto versículo refere-se a um trecho de Isaías, ao passo que o anterior é citado de Malaquias. Por isso, alguns copistas mudaram o texto para "Conforme está escrito nos profetas".

4. Influência retroativa de adaptações para uso litúrgico. Um exemplo famoso é a última frase da mais famosa oração da cristandade: "Pois teu é o reino, o poder e a glória para sempre. Amém." Essa frase, ao que tudo indica, não constava no original.

5. Correção de erros gramaticais. Em Lucas 4.1 é dito que, depois de ser batizado, Jesus foi guiado pelo Espírito Santo "no deserto" ("en tê erêmô"). Embora a expressão usada por Lucas não seja gramaticalmente incorreta, alguns copistas cederam à tentação de substituí-la por "eis tên erêmon" ("ao deserto").

6. Substituição de palavras vulgares. Quando em Marcos 7.5, os fariseus se queixaram a Jesus pelo fato de seus discípulos comerem com as mãos "por lavar", a expressão registrada, "koinais", foi considerada demasiado vulgar por certos copistas, que a substituíram por um sinônimo mais decente, "aniptois".

7. Substituição de palavras incomuns. Paulo escreveu a Tito (em 1.5): "Por esta causa te deixei em Creta". O verbo utilizado, "apelipon", é bem raro na língua comum da época, o que explica a razão pela qual certos escribas o substituíram por um sinônimo mais conhecido, "katelipon".

8. Eliminação de hebraísmos. Um hebraísmo particularmente comum em textos dos evangelhos, como em Lucas 2.6-10, é o uso freqüente (e até excessivo, tanto que nem todos aparecem nas traduções ao português) da conjunção "e", "kai". Esse uso não é típico da língua grega, o que fornece evidência de que ao menos certas partes dos evangelhos são traduções literais de textos ou discursos em hebraico ou aramaico.

9. Transliteração de nomes próprios. A cidade de Cafarnaum, na Galiléia, é um bom exemplo. Em alguns manuscritos seu nome é transliterado "Kafarnaoum", e em outros "Kapernaoum".

10. Interpretação de passagens difíceis. Um caso cheio de remendos encontra-se em Colossenses 2.2, em que Paulo, referindo-se aos cristãos que não o conheciam pessoalmente, afirmava interceder "para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham também toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo". Insatisfeitos com esse final abrupto e obscuro, muitos copistas fizeram diversas modificações, como "o mistério de Deus e Cristo", "o mistério de Deus", "o mistério de Cristo", "o mistério de Deus, que é o Cristo", "o mistério de Deus Pai em Cristo Jesus" e outros.

11. Alterações destinadas a evitar dificuldades teológicas. Um exemplo clássico encontra-se em Mateus 24.36, em que Jesus diz: "Mas a respeito daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos nos céus, nem o Filho, senão o Pai". Julgando, provavelmente, que a passagem negava a onisciência de Cristo e, por conseguinte, a sua divindade, alguns copistas omitiram as palavras "nem o Filho" nessa passagem.