28 de novembro de 2007

A origem da bagunça

Recentemente, meu amigo André Luiz deu início a um empreendimento realmente admirável, que é a publicação de uma série de postagens em seu blog acerca do velho problema das investigações históricas sobre Jesus. A quem se interessa pelo assunto, não posso deixar de recomendar que acompanhe essas publicações. Conheço meu amigo o suficiente para saber que ele possui um vasto conhecimento sobre o assunto, fruto de um profundo interesse que motiva seus estudos há décadas (embora o André não seja tão velho assim). E os dois posts já publicados confirmaram plenamente minhas expectativas de aprendizado. Inspirado por esse acontecimento, decidi escrever agora sobre um problema relacionado a esse, que já mencionei de passagem anteriormente: o da crítica textual. Também chamada de "ecdótica", termo criado por Henri Quentin em 1926, essa ciência busca reconstituir a forma original de um texto a partir das cópias conhecidas, todas as quais carregam distorções em maior ou menor grau. Andei estudando algo a respeito ultimamente, e achei o tema não apenas bastante interessante, mas também de importância óbvia para a adequada compreensão da mensagem de qualquer texto antigo. Pois todos os esforços de interpretação serão inúteis se não pudermos ter certeza, em primeiro lugar, de que estamos interpretando o texto correto, e não algum outro.

Apesar de meus estudos pessoais sobre o assunto não terem sido muito profundos, o tema em si é complexo demais para um post só. Hoje falarei sobre um aspecto bem definido, isto é, as origens dos erros que se introduzem nos manuscritos ao longo dos sucessivos processos de cópia. Sem isso não será possível abordar outras questões, como os critérios que orientam o julgamento entre variantes de uma determinada passagem ou a história das diferentes tradições textuais. Não posso, porém, falar sobre a crítica textual em geral, pois só conheço superficialmente sua aplicação a dois conjuntos de textos: o Antigo e o Novo Testamento, que, escritos em línguas e épocas distintas, possuem suas peculiaridades do ponto de vista da crítica textual, embora haja também muito em comum. Para a exposição a seguir, embora tenha me utilizado de outras publicações, minha principal fonte quanto à ecdótica neotestamentária é o livro Crítica textual do Novo Testamento, de Wilson Paroschi, uma obra para iniciantes que recebeu elogios até de Bruce Metzger, de Princeton, uma das principais autoridades mundiais no assunto. Para o Antigo Testamento, utilizei um capítulo de um livro de escopo bem mais abrangente, A survey of Old Testament introduction, de Gleason Archer, perito em línguas semíticas antigas. Sem mais delongas, portanto, apresento a seguir as principais fontes de erro na transmissão dos textos.

Em primeiro lugar, temos aqueles erros derivados simplesmente da falta de atenção do copista. Ela pode resultar na troca de posições entre certas letras ou palavras, assim como na substituição de certas palavras por um sinônimo (casos em que o copista foi provavelmente traído por sua memória). Também algumas letras, sílabas ou mesmo palavras inteiras aparecem repetidas em certos manuscritos; em outros, ao contrário, o copista transcreveu apenas uma vez uma seqüência de caracteres que deveria ser repetida. Algumas palavras, é claro, podem ser omitidas por distração, mesmo quando não estão repetidas. Um caso particularmente interessante e relativamente comum é a omissão de certos trechos que se encontram entre duas palavras iguais e próximas. Presumivelmente o copista, tendo memorizado e copiado o texto até a primeira ocorrência dessa palavra, enganou-se ao retornar ao manuscrito original, recomeçando a cópia a partir da segunda, resultando em um novo manuscrito sem o trecho intermediário. Em vários casos, erros assim podem ser prontamente identificados quando se comparam as variantes, pois o erro torna a frase sem sentido em virtude do fato de ela conter erros gramaticais ou não se adequar ao contexto. Mas essa identificação nem sempre é possível, principalmente no hebraico antigo, o qual, não possuindo representação gráfica para as vogais (que só foram inventadas por volta do século VIII pelos massoretas), dá margem facilmente a leituras alternativas válidas em decorrência desses erros de transcrição. Vale lembrar também, em conexão com isso, que na Antigüidade não existiam parágrafos, nem sinais de pontuação e acentuação.

Outra classe de erros provém de dificuldades que podemos chamar de "físicas". Essas podem ser de vários tipos. Por uma questão de economia de espaço ou por qualquer outra razão, a presença de espaços suficientemente nítidos não era algo comum nos manuscritos antigos. Assim, era natural que o copista fundisse duas palavras separadas ou cindisse em duas uma única palavra. Em outros casos, o copista simplesmente não entendia uma determinada letra e a substituía por outra de aparência semelhante. Ele pode ter sido induzido a erros dessa ordem por uma série de fatores: pode ter se baseado em um manuscrito muito velho ou mal conservado; o autor da cópia anterior talvez padecesse de certas inabilidades gráficas (leia-se "letra feia"); ou o copista possuía deficiências visuais que dificultavam a leitura, em particular o astigmatismo e a presbiopia (não nos esqueçamos que os óculos só foram inventados no século XIV). Há ainda situações em que a confusão é de natureza fonética, e não visual. Muitos manuscritos foram produzidos por escribas que não viam o original, o qual ia sendo ditado a eles por outra pessoa. Conseqüentemente, certas palavras eram ocasionalmente substituídas por outras de som idêntico ou semelhante. Todos esses erros eram facilitados, obviamente, caso o copista não dominasse a língua em questão. Deve ser observado ainda que os erros descritos neste parágrafo também podem derivar da pura distração, embora isso seja menos provável que nos casos descritos no parágrafo anterior. O que foi dito ali, aliás, permanece válido aqui: em certos casos o erro é prontamente identificável, mas em outras situações isso não ocorre.

Há outros tipos de alterações que não se encaixam nos dois grupos definidos acima. O copista podia ser enganado pela própria evolução da língua quanto ao som, à forma das letras ou mesmo às regras gramaticais. O grego foi muito mais suscetível a isso que o hebraico, que mudou menos ao longo dos séculos, embora também haja interessantes exemplos de variantes textuais que se explicam dessa forma no hebraico. De qualquer forma, essas mudanças tornavam semelhantes certas pronúncias originalmente diferentes, ou modificavam certos costumes gramaticais ou gráficos e convenções de abreviação, ou alteravam a forma de certas letras (um campo inteiro de estudos é dedicado ao estudo desta última categoria de mudanças: a paleografia, que aliás é muito importante na datação dos manuscritos). De maneiras diversas, esses fatores acabaram sendo responsáveis pela introdução de certos erros, decorrentes da falha do copista em compreender as intenções do autor do manuscrito disponível. Um outro erro, muito diferente desses, embora também vinculado à incompreensão das intenções do copista anterior, diz respeito às anotações marginais feitas por este. Diversos acréscimos ao texto original explicam-se dessa forma: um copista introduziu uma palavra ou frase na margem do manuscrito em que copiava, a título de esclarecimento ou comentário pessoal. Posteriormente, outro copista empregou esse mesmo manuscrito para produzir sua própria cópia e, erroneamente, considerou essa nota marginal como parte do texto original, inserindo-a, portanto, no corpo do seu texto.

Até agora, no entanto, falei exclusivamente de variantes geradas de maneira não intencional. Estas constituem a quase totalidade das variações textuais do Antigo Testamento, mas possuem um papel muito modesto nos manuscritos neotestamentários, tanto em quantidade quanto em importância. A razão disso não é difícil de entender: os judeus tinham uma longa tradição de profundo respeito por seus livros sagrados e, ao que parece, esforçavam-se grandemente por preservar cada palavra deles em decorrência disso. Entre os cristãos primitivos, que se empenharam em transmitir os ensinos e narrações de Cristo e dos apóstolos, dificilmente haveria semelhante reverência pela letra dos textos. Eles consideravam importante transmitir a essência dos textos, e demorou várias gerações até que a tradição se consolidasse e o ambiente psicológico da Igreja estivesse preparado para que fosse atribuído aos textos sagrados o mesmo tipo de valor que os judeus atribuíam aos seus. A essa altura, porém, muitas alterações intencionais já haviam sido introduzidas. Passo a mencionar agora as principais dentre elas.

Quase todas as variantes intencionais são tentativas de harmonização, em algum sentido. Isso ocorre freqüentemente, por exemplo, em passagens que possuem fortes semelhanças entre si, fato que levou certos copistas a introduzir modificações em uma delas para reduzir suas diferenças em relação à outra. O mesmo ocorria em certos trechos nos quais o autor do texto fazia uma citação de outro livro, sem, contudo, preocupar-se em transcrevê-la letra por letra: alguns copistas resolveram fazê-la mais literalmente. Outros fizeram correções com o objetivo de remover contradições que enxergavam entre o texto em questão e outras passagens, ou com fatos históricos e geográficos conhecidos. Em outros casos, certas passagens foram adaptadas para uso litúrgico, e essas adaptações acabaram agindo no sentido inverso, influenciando a redação das cópias. Não poucos copistas corrigiram também erros gramaticais, ou pelo menos modificaram construções e palavras que lhes pareciam erradas, vulgares, ou demasiado incomuns. Certas partes do Novo Testamento contêm muitos hebraísmos que alguns escribas mais cultos gostavam de reescrever numa forma grega mais elegante. O principal problema, porém, reside nas transliterações de nomes estrangeiros, para os quais não havia qualquer convenção estabelecida, e esse fato é responsável por muitas variações. A existência de variações regionais na escrita e pronúncia do grego helenístico, já bastante coloquial pela sua própria natureza, conferia um incentivo adicional ao surgimento de variantes textuais. Há ainda um outro conjunto de alterações efetuadas com o objetivo de atenuar dificuldades de compreensão em certas passagens difíceis (alterações essas que envolviam, é claro, um esforço exegético, nem sempre acertado) ou mesmo de evitar dificuldades teológicas que o texto parecia impor.

O resultado de todos esses fatores, e outros que não mencionei, é uma bela bagunça, embora, no fim das contas, o grau de distorção dos textos não seja tão elevado quanto essa descrição talvez dê a entender num primeiro momento. Pretendo, numa postagem futura, ilustrar com exemplos as categorias que acabo de mencionar, a fim de fornecer maior nitidez ao panorama traçado. Mas isso tudo é apenas a descrição das causas do problema, sem a qual é impossível compreender a solução do mesmo.

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